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Sexo

Gritos, puxões e um aperto de mão

Um dia num set de pornô.com

RESUMO Fundada há quase 20 anos por um inglês que decidiu ganhar dinheiro com seu gosto por sadomasoquismo, a Kink.com é a maior produtora de conteúdo pornô fetichista do mundo. Como outras empresas do setor em San Francisco, ela busca contornar a pirataria e um projeto de lei que proíbe filmagens sem preservativos.

FERNANDA EZABELLA

NO SUBTERRÂNEO de uma antiga fortaleza de San Francisco, dois tambores azuis junto à parede armazenam quase 400 litros de uma substância imprescindível para as atividades do local. "É lubrificante, nós amamos lubrificante", diz a gerente Nic Rathert. Cada tambor, ela explica, dura três meses.

Na sala em frente, uma ruiva de longas pernas sardentas conversa com internautas através de uma câmera, enquanto o diretor James Mogul prepara sua parafernália. Ao passo que toma leite de um garrafão e conversa com seus dois assistentes, ele vai tirando cordas e mais cordas de uma mala de couro. "Hoje os três buracos estão liberados", avisa a ruiva, animada. Seu nome artístico é Penny Pax, e ela pede para ir ao banheiro antes de a filmagem começar.

A Kink.com, maior produtora de pornografia de fetiche do mundo, ocupa desde 2007 os cinco andares do edifício de tijolos aparentes que foi da Guarda Nacional dos EUA entre 1914 e 1976. O prédio no Mission, bairro situado no leste da cidade, conhecido pela inclinação artística e pela diversidade étnica, foi comprado por US$ 14,5 milhões (cerca de R$ 34 milhões) por Peter Acworth, um inglês que desistiu do curso de finanças da Universidade Columbia para investir em seu hobby S&M (sadomasoquista), no final dos anos 1990.

Hoje, o Kink.com agrupa cerca de 30 sites, todos de acesso pago, cada um dedicado a um fetiche e muitos deles contendo material ao vivo --como humilhação em público e luta livre. No final do dia, quando a casa está vazia, Rathert a percorre em tours de 90 minutos, pelos quais cada visitante paga US$ 25 (cerca de R$ 59). Durante o passeio, a gerente aponta detalhes de alguns dos 70 cenários usados nas filmagens, como uma sala de aula, um hospício, um açougue e uma sala de estar que ostenta uma jaula sob a escada.

A gerente, que por seis anos foi "dominatrix" --aquela que, nos atos sexuais S&M, faz o papel de dominadora--, tanto na vida real quanto na frente das câmeras, também organiza a Universidade Kink. Os cursos se destinam a iniciantes e os temas vão desde introdução ao BDSM (sigla para "bondage, dominação, submissão, masoquismo") até uma visão geral das leis do Estado acerca da prática, considerando aspectos como consentimento e definição do que é atentado ao pudor.

A Kink.com tem cerca de 400 funcionários, metade só na área de produção, sem contar os atores, contratados por empreitada. Rathert explica que boa parte deles são profissionais; outros são amadores que gostam de BDSM e querem fazer um dinheiro. Os salários variam de US$ 500 a US$ 1.300, algo entre R$ 1.180 e R$ 3.070, por vídeo, dependendo da experiência, do papel ou das cenas.

"RED" Penny volta do banheiro, e a porta do estúdio é fechada. "Você lembra das palavras de segurança?", Mogul pergunta à ruiva. "Red" (vermelho) é para parar tudo e desligar a câmera; "yellow" (amarelo) é para ir devagar. "Só não quero sair com marcas", ela pede. Penny volta a conversar com os 33 internautas on-line no momento e confessa que pensa em colocar implantes nos seios, ideia logo rechaçada pelos ouvintes.

O diretor faz alguns testes com as cordas em volta da cintura de Penny e pede para ela dar uma olhada numa mesa repleta de brinquedos sexuais. "Estão ótimos, menos este aqui, parece grande demais, não?", diz.

Acworth dá o ar da graça. Ele conta que desde pequeno gostava de ser amarrado e tem uma teoria própria sobre isso. "Minha mãe não me impunha limite algum quando eu era criança. Mandava meu pai à merda e fazia o que eu queria. Acho que essa falta de regras me fez querer ter regras, ser amarrado, subjugado", diz o inglês de 43 anos, que foi o modelo dos vídeos de estreia do Kink.com, lucrativo já no primeiro mês.

Quase duas décadas depois de fundado por Acworth, o portal tem de se valer da criatividade para despistar os maiores inimigos de sua rentabilidade, os piratas on- line. Os assinantes do Kink.com pagam entre US$ 14 e US$ 20 (de R$ 33 a R$ 47,20) por mês para poder ver cenas ao vivo, conversar e fazer pedidos aos atores e diretores, além de às vezes ter a oportunidade de ir ao estúdio ver as lutas livres entre mulheres peladas. "Coisas assim não dá para piratear", afirma Acworth. "A estratégia é criar uma comunidade e ter cada vez mais conteúdo ao vivo."

Outro obstáculo vem dos grupos pró-camisinha, que querem tornar obrigatório o uso de preservativos nos sets de filmagem da Califórnia. A lei foi aprovada no condado de Los Angeles em 2012, causando a dispersão da meca da indústria, a região do vale de San Fernando, que uma década atrás chegou a gerar US$ 4 bilhões, produzindo 5.000 filmes adultos ao ano. O número de pedidos de licenças para produções pornô em Los Angeles caiu 95% em 2013, já que muitas produtoras se transferiram para o vizinho Estado de Nevada, para a mais distante Flórida, na outra costa, ou, mais longe ainda, para o Leste Europeu e o Brasil.

"Isso me preocupa, claro. Estamos mirando Las Vegas agora, talvez passemos a ter um estúdio por lá", diz Acworth. Em meados de agosto, o projeto de lei foi arquivado por um grupo de legisladores do Estado. Seus proponentes, liderados pela democrata Isadore Hall e pela fundação Aids Healthcare, prometem insistir em 2015.

Atualmente, atores e atrizes são obrigados a fazer exames médicos a cada 14 dias, embora não exista fiscalização. Em 2004, 2009, 2010 e 2013, foram reportados casos de pessoas infectadas com o vírus da Aids ou com outras doenças, interrompendo as produções por meses. A indústria argumenta que filmes com camisinha não vendem e que o uso prolongado do preservativo durante as filmagens causa erupções cutâneas e escoriações que podem facilitar a transmissão de doenças.

"Não somos contra o pornô, não queremos acabar com o negócio, apenas proteger o artista", afirma Michael Weinstein, presidente da Aids Healthcare Foundation.

A ex-corretora de imóveis Colette Field, dona do X-Art.com, ecoa parte das queixas de Acworth. Field e seu marido mantêm o site de apelo fashion desde 2007 --ele, que é fotógrafo, já tinha um site, com modelos nuas, que ela achava viável transformar em algo mais apimentado, porque não encontrava na internet "pornô de bom gosto".

Calculando ter hoje quase 100 mil assinantes, que pagam cerca de US$ 20 por mês, Field recorda que, no começo, eram só os dois e uma câmera. "Arrumávamos as luzes, eu cuidava do cabelo e da maquiagem, nem assistente tínhamos e não gastávamos com locação."

Para evitar as consequências da lei da camisinha, sua produtora passou a filmar mais no exterior. Seu maior inimigo não vem, portanto, dos cuidados com os profissionais --que, no seu caso, podem ser modelos que nunca fizeram pornô e topariam fazer com seus namorados. Para a empresária, o problema real são os sites que copiam o clima "pornô chique" e os 80 mil piratas que baixam seus vídeos ilegalmente por mês.

Sua empresa lidera o número de processos por direitos autorais no país, mais de 1.300 no último ano. Proliferam especulações de que o site proteja pouco seus vídeos propositalmente, usando-os de isca para abrir processos cujos acusados chegam a pagar até US$ 30 mil em reparações. Field rebate: "Ir atrás destes caras custa caro, mas qual é a escolha? Se não formos, ninguém mais vai querer fazer filmes eróticos. Vai ser tudo ordinário, gratuito, cheio de comercial".

CALABOUÇO Enquanto isso, no calabouço de Mogul, decorado com um tapete persa e iluminado por duas torres de luz, o diretor tem uma furadeira na mão e usa luvas pretas empapadas de lubrificante. Penny está nua e suspensa no ar, amarrada pelas pernas dobradas e braços levantados. Ela pede para parar de girar porque está ficando tonta.

A furadeira serve para fazer mais um buraco numa caixa que serve de base para as cordas, modificando assim a suspensão. Os brinquedos da mesa vão aos poucos sendo introduzidos, provocando em Penny uma série de risadas e gemidos um tanto perturbadores. Um vibrador é ligado entre suas pernas, e pregadores pendem de suas partes íntimas, ao passo que um chicote corre solto, em especial pelos seus pés.

Penny parece atingir um orgasmo --vários, aliás--, com gritos guturais nada sexy. Até que ela cede: "Minhas mãos estão ficando dormentes", diz. De imediato, ela é desamarrada e recebe beijinhos do mestre (em inglês, "top", o equivalente masculino de "dominatrix").

Mogul, que não diz a idade mas aparenta estar na casa dos 40, entrou para o Kink.com em 2005, e é um dos dez diretores do estúdio. Três dos sites do grupo são responsabilidade dele. "Desenvolvi minhas habilidades através das minhas experiências em festas nos anos 90 em Seattle. A gente ensinava e aprendia com os outros", lembra. Ele vive com uma atriz pornô e é pai de uma menina. "Nossa vida sexual não é fácil. Precisamos deixar de lado várias coisas do trabalho para conseguirmos ficar juntos de verdade. Não levamos nossos rituais para os estúdios --nem nossos brinquedos."

Seus vídeos não têm roteiro, e as ideias vêm de fantasias pessoais e de conversas com os atores (ao assinar seus contratos, eles preenchem uma lista de coisas que querem ou não fazer no dia). "É como música, você aprende o lado técnico, depois esquece o que sabe e apenas faz. É improvisação."

É o fim do dia no set. Um de seus assistentes veste luvas para retirar os objetos usados em cena e colocá-los num balde vermelho. Mogul dá mais um gole no garrafão de leite e começa a guardar suas cordas. Penny está exausta, molhada de suor, mas sorri o tempo todo.

Ela volta a se sentar numa cadeira para falar com os internautas e recebe uma toalha para se enxugar. "Foi intenso!", diz. "Mal dormi na noite passada, estava tão ansiosa", completa a atriz e modelo, que veio de Los Angeles para a gravação. Na saída, ela jura que gozou quatro vezes e se despede com um "aperto de mão pornô": só nossos cotovelos se encostam.

O diretor faz testes com as cordas em volta da cintura de Penny e mostra a ela uma mesa com brinquedos sexuais. "Estão ótimos, menos este, parece grande demais, não?"

"É como música, você aprende o lado técnico, depois esquece o que sabe e apenas faz. É improvisação", analisa James Mogul, experiente diretor de pornôs do portal Kink


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