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História

Duas vezes Vieira

O jesuíta e estadista que cruzou o oceano cinco vezes

MANUEL DA COSTA PINTO

RESUMO

Dois livros recém-lançados -antologia com estudo crítico e biografia- discutem a concepção do padre Antônio Vieira do escravismo de índios e negros, sua relação com os cristãos-novos, seu cosmopolitismo e sua brasilidade. A despeito de sua importância, nova biografia apresenta equívocos pontuais.

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO

DUAS CONTRIBUIÇÕES Importantes aos estudos vieiristas e coloniais foram publicadas no Brasil, no final do ano passado. O crítico literário Alfredo Bosi apresenta uma coletânea de escritos do padre Antônio Vieira (1608-97), enquanto o historiador Ronaldo Vainfas propõe uma biografia do grande jesuíta.

Em "Essencial Padre Antônio Vieira" [Penguin Companhia, 760 págs., R$ 35], Bosi selecionou textos capitais de Vieira, elaborando um sofisticado estudo da obra e de seu tempo e mencionando outros escritos que poderiam constar de sua coletânea, como a descrição de Vieira sobre a pesca de tracajás no Amazonas, peça de pura literatura que mereceria ser estudada no ensino médio, ou a carta ao conde de Ericeira, na qual o jesuíta projeta todo o seu ego e seu grande orgulho intelectual.

UNIVERSALISMO A familiaridade de Bosi com os "Sermões" oferece ao leitor análises que ganharão destaque na bibliografia vieirista. Bosi lembra que as críticas de Vieira às iniquidades da Corte se inserem num pensamento fundado no universalismo cristão e adverte contra o "anacronismo" de entrever nestas passagens "o germe de princípios igualitários que tardariam mais de um século para abalar o Antigo Regime".

No tocante ao pensamento de Vieira sobre a escravidão indígena -que ele combatia- e a escravidão dos negros -por ele considerada legal e legítima-, Bosi denuncia "a flagrante injustiça" do jesuíta. A mesma denúncia é reiterada quando Bosi compara o implacável parecer de Vieira contra os negros fugidos em Palmares à sua defesa enfática dos índios fugidos dos colonos em São Paulo.

O debate sobre o escravismo constitui um ponto comum nos dois livros. Tanto Bosi quanto Vainfas expõem a incongruência com que Vieira protesta contra o cativeiro dos índios e defende a escravidão dos negros.

Talvez seja este o avanço mais importante que a atual historiografia brasileira, incorporada pela análise dos dois autores, acrescenta aos estudos vieiristas. Doravante, não será mais possível atribuir a Vieira o título de protetor universal de judeus, índios e negros.

O livro de Vainfas -"Antônio Vieira, Jesuíta do Rei" [Companhia das Letras, 352 págs., R$ 44]- tem outras análises concordantes com as da introdução de Bosi, mas seu escopo é naturalmente mais amplo, no contexto da coleção Perfis Brasileiros.

Deve-se lamentar que o editor tenha embargado as notas de rodapé. A tendência de publicar textos sem notas, vinda do jornalismo, é particularmente prejudicial aos livros de história, cujos autores são compelidos a ajuizar fontes e cotejar bibliografias densas.

A ausência dessas referências priva os leitores de tomar a medida da documentação tratada por Vainfas e das complexidades da literatura vieirista.

ALTERIDADE Vainfas é certeiro quando escreve: "A noção de alteridade era ausente, em Vieira, do ponto de vista etnológico. Os índios só valiam por terem suas almas abertas à palavra de Deus, nada mais".

Com a voga recente dos estudos de interculturalidade, é sempre bom lembrar que o objetivo central dos missionários era a evangelização dos indígenas e não o intercâmbio cultural.

Vainfas compara Vieira ao cardeal Richelieu, o grande ministro francês de Luís 13, e diz que Vieira "praticamente governou Portugal, à sombra" do rei d. João 4o. É interessante salientar que Vieira conviveu com políticos de Lisboa, diplomatas de Paris e Amsterdã, cardeais romanos, comerciantes de Rouen, feirantes de Cabo Verde, quitandeiras do Pelourinho, bugreiros e índios do Amazonas, cruzando o oceano cinco vezes.

Nenhum europeu de sua importância teve, naquela época, tal experiência sobre a Europa e o ultramar. Aliás, Vieira não hesitava em contrapor sua prática dos assuntos europeus e coloniais ao provincianismo dos ministros lisboetas.

Numa carta enviada de Roma a um diplomata em Paris, o jesuíta se queixava da pouca repercussão de seus relatórios políticos, enviados a gente graúda de Lisboa que não as entendia porque "nunca saiu daquele canto do mundo".

Bosi reserva bastante espaço aos "Sermões" e Vainfas também faz muitas menções a tais textos. No Brasil, sempre se prestou mais atenção aos "Sermões" do que às "Cartas" de Vieira, parcialmente editadas apenas em 2003 em nosso país por João Adolfo Hansen ("Cartas do Brasil", ed. Hedra), e ainda assim de forma truncada, como demonstrou a grande vieirista Adma Muhana.

Bosi e Vainfas conhecem a edição portuguesa das "Cartas", que, no meu entender, constitui a fonte mais segura e variada da obra vieirista. Vainfas chama a atenção para o fato que Vieira fez cortes e acréscimos nos "Sermões" antes de editá-los. Mas o rearranjo dos manuscritos foi ainda mais longe.

GAFE Vainfas escreve que Vieira, desconhecendo ainda revolta anti-espanhola e entronização do Duque de Bragança como d. João 4o em Lisboa, cometeu "uma das maiores gafes de sua trajetória política" ao elogiar a Coroa espanhola, num sermão pregado na Bahia em janeiro de 1641.

Ocorre que Vieira subtraiu o texto de sua edição dos "Sermões", publicada a partir de 1679. Só na edição de 1748, bem depois de sua morte, é que aparece este sermão, sem que se saiba se ele foi realmente pregado ou somente escrito. Se houve gafe, ela foi muito bem escondida por Vieira.

O mesmo não ocorre com suas cartas, conservadas por seus correspondentes, ou com seus relatórios políticos, arquivados na Corte. Por isso, convém distinguir os textos que Vieira escreveu e colocou na gaveta daqueles que ele assinou embaixo, mandou para a Corte e fez publicar.

Nas suas cartas, Vieira é mais direto. Vainfas aponta "o seu filossemitismo, seu apego ao Antigo Testamento", e Bosi sublinha o respeito de Vieira aos judeus e à religião judaica no manuscrito de "Clavis Prophetarum" (que ele nunca publicou).

Não obstante, Vieira também se exprimia num tom mais cru sobre os cristãos-novos. Numa carta de 1671, escrita a um influente aristocrata lisboeta, Vieira defende a anistia aos mercadores cristãos-novos, referindo-se a eles como o "esterco", "a imundície", que "fora do seu lugar suja a casa e posta no seu lugar fertiliza o campo".

ABRASILEIRAMENTO Vainfas faz uma análise esclarecedora das reviravoltas de Vieira no debate sobre os holandeses em Pernambuco. Mas penso que abrasileira demais Vieira, subestimando a concepção lisboeta e imperial da política do jesuíta.

Comentando o "Papel Forte", o portentoso relatório que Vieira redigiu em 1648 para apontar a fragilidade do império português, Vainfas afirma que a colônia mais valiosa era o Brasil e que Vieira abusava de "sofismas" ao mencionar as feitorias da Ásia, pois os holandeses já haviam sobrepujado os portugueses na região.

Ora, nesta época o Brasil era importante, mas a Índia e a Ásia portuguesa também. A tomada das praças portuguesas do Ceilão (atual Sri Lanka), o maior produtor mundial de canela, pela Holanda, só se completou em 1658, após dura e longa batalha. Cochim e a Costa do Malabar, na Índia só são perdidos em seguida. Até os anos 1670, Vieira ainda esperava ver Lisboa reconquistar ("restaurar") as feitorias asiáticas invadidas pelos holandeses.

Baseado na biografia de Vieira escrita por João Lúcio de Azevedo em 1920, Vainfas afirma que o sotaque abrasileirado de Vieira, crescido na Bahia, era "um atrativo a mais" para seu sucesso em Lisboa.

Sucede que o mesmo Azevedo publicou mais tarde uma carta de Vieira ao rei d. João 6º, na qual o jesuíta, mencionando as restrições feitas a André Vidal Negreiros, que se encontrava em Portugal e era seu candidato para o posto de vice-rei da Índia, diz que a fala brasileira era menosprezada em Lisboa. Bosi e Vainfas têm a biografia de Vieira escrita por Azevedo como referência principal.

Na circunstância, os leitores de Vieira continuarão lamentando a biografia do jesuíta que Charles Boxer planejou, mas não escreveu. Autor de dois preciosos estudos (que Vainfas não cita) sobre Vieira, o grande historiador britânico o considerava "o homem mais notável do mundo luso-brasileiro do século 17".

Margarida Vieira Mendes, a grande vieirista portuguesa precocemente falecida, contava que quando foi procurar o crítico Antônio José Saraiva para dizer que iria estudar a obra do jesuíta, Saraiva preveniu-a: olhe que Vieira é para vida inteira!

Mesmo sem praticar a fidelidade monogâmica que Saraiva recomendou a Margarida, muitos amantes intermitentes ou ocasionais da obra de Vieira terão grande prazer em ler os livros de Bosi e de Vainfas.

Com a voga dos estudos de interculturalidade, é bom lembrar que o objetivo dos missionários era a evangelização dos indígenas e não o intercâmbio cultural

Em carta de 1671, Vieira defende a anistia aos mercadores cristãos-novos, mas refere-se a eles como "esterco", que "fora do seu lugar suja a casa e posta no seu lugar fertiliza o campo"

Vainfas faz uma análise esclarecedora das reviravoltas de Vieira no debate sobre os holandeses em Pernambuco. Mas penso que abrasileira demais Vieira

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