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Invencível poesia

Considerações sobre o que há num nome

MARIO SERGIO CONTI

RESUMO Jornalista retraça neste texto origem dos nomes dos três principais concorrentes ao Planalto. Em especial o nome Marina, que, reduzido do original Osmarina, batiza a candidata pessebista, é recorrente na literatura, associado a conquistas e catástrofes em mar, como em "Péricles, Príncipe de Tiro", de Shakespeare.

"O que há num nome?", pergunta Julieta na peça de Shakespeare. Ela própria responde que a rosa, com outro nome, continuaria a ter o mesmo suave perfume. Num nome não há nada, pois. Ainda assim, Julieta e Romeu se estendem na discussão acerca dos seus nomes, da necessidade de abandonarem a identidade para que vivam o amor de um pelo outro.

Num nome há restos da história e de mitos ancestrais. São sons e sinais gráficos cuja decifração, porém, se faz sempre no presente. O nome Édipo não significa apenas "pés inchados", como no grego antigo. Ele hoje é indissociável do complexo de Édipo, conceito criado por Freud com base no bebê que, com os pés amarrados e inchados, foi deixado para morrer num bosque. Assim, não se cumpriria a profecia de que mataria o pai e casaria com a mãe. Esse é o Édipo que vingou.

Os três candidatos com mais chance nas eleições presidenciais de hoje têm nomes pouco usuais.

Aécio vem do grego Aétios, que significa águia e, por associação, herói, vitorioso. O general Flávio Aécio foi considerado "o último dos romanos" pela bravura nas batalhas, embora o heroísmo não o tenha levado à vitória. Ciumento da sua valentia e receoso da sua popularidade, o imperador Valentiniano 3º mandou matar Aécio em 454 d.C.. Receberá o nosso Aécio o título de "o último dos tucanos"?

O general Aécio nasceu numa província romana que hoje fica na Bulgária, berço de Pétar Russév, o pai de Dilma. O nome da presidente aparentemente não tem nada de balcânico --ela o herdou da mãe, a professora mineira Dilma Jane Coimbra da Silva. Mas talvez não tenha sido desse jeito.

Dilma é a versão masculina de Delmo, ou Adelmo, que tem origem múltipla. O nome pode ter vindo do latim Dalmatia, Dalmácia, a região adriática que chega aos Bálcãs búlgaros. No alemão, há Adelhelm, que junta "edel", nobre, e "elm", elmo. De fato, a carapaça de laquê da presidente lembra às vezes um capacete. Dilma tem também origem espanhola: "del mar", vinda do mar, marina.

Com o quê se chega ao mais raro dos nomes dos candidatos. Raro porque Marina não foi a sua primeira alcunha. Ela recebeu na pia batismal, ao lado do nome Maria, o de Osmarina, provável feminino e diminutivo de Osmar.

Na infância, uma tia lhe deu o sensato apelido de Marina. Mas só com 27 anos, ao concorrer ao cargo de deputada estadual, ela deu uma de Lula, o seu líder de então: incorporou ao nome o apelido, mais fácil de ser guardado pelos eleitores. Oficializou-se assim Marina, nome rico como o mar em alusões literárias. Ele não está somente na canção de Dorival Caymmi.

O mar é palavra recorrente na obra de Shakespeare. "Pegar em armas contra um mar de problemas", aparece em "Hamlet". "O mar selvagem da minha consciência", em "Henrique 8º". "Teus olhos são um mar que flui e reflui num fluxo de lágrimas", em "Romeu e Julieta". "Cheio de agonias como o mar de grãos de areia", em "Os Dois Cavalheiros de Verona".

As imagens oceânicas do poeta costumam remeter ao inóspito, a fúrias desconhecidas que arrastam homens e navios para profundezas enigmáticas. Contra o mar, o único abrigo é a terra que serve de trono de reis, a fortaleza feita pela natureza contra a doença e a mão da guerra, o outro Éden --a Inglaterra, "essa pedra rara cravada no mar de prata", em "Ricardo 2º".

"Péricles, Príncipe de Tiro", é a peça em que o mar se faz mais presente, a ponto de a principal personagem feminina condensá-lo no nome Marina. A filha de Péricles se chama assim porque nasce no mar, no qual três naufrágios se sucedem. Eles separam pai, mãe e filha; matam e ressuscitam personagens. O narrador da peça chega a dizer: "Esse palco é barco, no convés/ Do qual fala o mareado Péricles".

A sociedade do mar-mundo é discutida por dois marinheiros. Um deles diz que fica "espantado como os peixes conseguem viver no mar". E outro lhe esclarece que os peixes "vivem como os homens na terra --os grandes devoram os pequenos". A metáfora vai além: a baleia brinca com os peixinhos, diz o mestre do barco, mas "termina por abocanhá-los de uma vez só". Seria Neca Setúbal uma baleia das finanças, e Marina, peixinho?

Numa aula que deu em Nova York, em abril de 1947, o poeta W. H. Auden disse que o diálogo entre os marinheiros mostraria o comprometimento político de Shakespeare: "Os pescadores são bons porque têm que trabalhar para viver, e porque o que fazem é produtivo".

Em que pese a profusão de imagens marítimas, não há nenhuma evidência de que Shakespeare tenha estado ao menos uma vez no mar. Ele era um homem de rios: passou a infância à beira do Avon, em Stratford, e viveu às margens do Tâmisa, em Londres, tendo regressado ao lugar onde nasceu para passar a velhice.

MARUJOS Os marujos dos estudos shakespearianos penam para explicar a discrepância entre o pouco que se sabe da vida do poeta e a sua obra opulenta --e especulam adoidado: em "Shakespeare: O Mundo É um Palco "" Uma biografia", Bill Bryson recenseou 7.000 obras sobre o bardo na Biblioteca do Congresso americana. Para dar conta delas seriam necessários "20 anos de leitura, se lidas à velocidade de uma por dia".

Não entra nessa contagem uma das ideias mais extravagantes de Freud, justamente referente a nomes: Shakespeare seria francês, e se chamaria Jacques-Pierre. Apesar de equivocada, a intuição freudiana tem um fiapo de consistência, mas que ele ignorava: cálculos feitos com computadores mostram que na obra de Shakespeare há mais referências à França (369 citações) do que à Inglaterra (243).

Uma explicação para o peso obsedante do mar em "Péricles", e para as peripécias de Marina, está no gosto do público. O teatro era arte popular, e nenhum outro dramaturgo dava tudo por um efeito como Shakespeare, jogando conscientemente para a galera. E no seu tempo a audiência tinha uma enorme curiosidade em relação ao mar devido à Invencível Armada.

Em 1586, Elizabeth, a soberana protestante da Inglaterra, mandou matar Mary, rainha católica da Escócia, que havia tentado destroná-la. A Coroa espanhola, católica da Contrarreforma, mandou uma frota massacrar Elizabeth e a Inglaterra. Jamais se vira força bélica tão potente: a Invencível Armada ocupava 11 quilômetros do mar em formação de batalha; tinha 30 mil homens; 3.000 canhões; mosquetes às mancheias.

A expectativa dos católicos era varrer os protestantes, os evangélicos de então, primeiro da Inglaterra e depois da Europa. Mas não levaram em conta o conhecimento íntimo que os ingleses tinham de seu território marítimo. Nem a tecnologia britânica, sobretudo os canhões de ferro fundido, bem mais letais que os espanhóis.

Em três semanas a Invencível Armada foi reduzida a frangalhos: 17 mil marinheiros espanhóis foram trucidados; a Inglaterra não perdeu um só navio. Manteve a Inquisição longe de si e se preparou para expandir seu império pelos mares do mundo inteiro.

As peças históricas de Shakespeare captam o patriotismo inglês proveniente da vitória. Já "Péricles" mostra o mar como cenário de hecatombes, separações, desventuras e mortes. Mesmo que seja pouco representada hoje em dia --e mais na França do que na Inglaterra; Ulysses Cruz a dirigiu aqui em 1995 --"O Príncipe de Tiro" foi a peça de Shakespeare que teve maior público ao estrear.

Ela faz parte do seu último lote de escritos, produzido depois das obras-primas. Como não figurava na edição inaugural das peças de Shakespeare (o primeiro fólio), passando a integrar o cânone 40 anos mais tarde, há uma discussão interminável entre os eruditos acerca do texto.

Difícil e sombria, ela trata de incesto, abandono existencial e perda do poder. Dada como morta ao nascer, com direito até a um epitáfio, Marina é sequestrada por piratas e vendida a um bordel. Miraculosamente, mantém a pureza, reaparece no final e reencontra o pai numa cena tocante. Se a Marina do Acre perder as eleições, terá direito a um belo epitáfio, ainda que composto pela sua inimiga Dioniza, como ocorre em "Péricles, Príncipe de Tiro"?

Em setembro de 1930, Marina reaparece num poema de T. S. Eliot, que transitava então do alto modernismo para a regressão das formas poéticas. Com o título de "Marina", nele quem fala é Péricles. Só a epígrafe do poema não é de Shakespeare. "Quis hic locus, quae regio, quae mundi plaga?" está em "Hércules Furioso", a peça que Sêneca escreveu em 54 d.C.. É o protagonista quem pergunta: "Que lugar é este, qual reino, qual parte do mundo?".

A indagação retoma a relação entre pai e filha de "Péricles". Édipo às avessas, Hércules é enfeitiçado e, no transe, mata os filhos. Ao acordar com as mãos ensanguentadas, se pergunta onde está. A "Marina" de Eliot tem muito da perdição de Hércules. Mas o mar, a morte, os escombros de navios que o poema justapõe, tudo remete ao reencontro de pai e filha da peça de Shakespeare. O nome Marina, resto de outras artes e outras histórias, reaparece então em toda ambiguidade: é o pássaro que sibila perdido na neblina do tempo.


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