Ponto Crítico
TEATRO | "O CAMPO DE BATALHA"
Gangorra de sentidos
Tubulações clandestinas furtaram a água do rio Amazonas. A Terceira Guerra Mundial eclode com a crise hídrica. Dois soldados enfrentam-se pela vitória de seus exércitos. Essa é a premissa da peça "O Campo de Batalha", em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo até 6/4.
Os sintomas relativos à espetacularização da guerra, analisados por Guy Debord (1931-94) em sua obra, ecoam de maneira contundente na dramaturgia de Aldri Anunciação --também ator da montagem, ao lado de Rodrigo dos Santos. O foco da história, que começa com cada fuzileiro apontando sua metralhadora para a cabeça do inimigo, rapidamente desloca-se do drama particular dos guerreiros para a complexa engenharia de poder de um sistema rizomático global.
O comando de guerra --voz em off de Fernanda Torres-- observa cada movimento dos combatentes, como um Big Brother orwelliano, e determina as instruções a serem seguidas. Como em terra de cego quem tem um olho é rei, quando anuncia a interrupção temporária da batalha, devido ao desabastecimento total das munições, o soldado com a única bala sobressalente adquire a condição de "o homem mais poderoso do planeta", nas palavras de seu oponente.
Essa supremacia, contudo, revela-se ilusória, uma vez que o combatente permanece gravitando submisso na órbita das instâncias militares superiores, que transformaram a contenda em um panóptico digital transmitido ao vivo pela internet.
Como o clímax de tensão ocorre no princípio da encenação, não existe um arco dramático convencional. Embora haja um ponto de inflexão discreto, quando uma pequena reviravolta faz com que a situação de dominação se inverta entre eles, a história tem uma linearidade previsível, com cada soldado defendendo suas ideologias e teses mais do que a própria vida. O texto carece da inventividade ficcional e do alcance filosófico de "Namíbia, Não", peça anterior do autor, que tematizava uma situação fantástica em que todos os cidadãos com "melanina acentuada" seriam compulsoriamente enviados de volta para a África.
Mas, se os dilemas éticos e as reflexões sociopolíticas suscitadas pela dramaturgia não prezam pela originalidade de seus argumentos, a direção de Márcio Meirelles tem a habilidade de potencializar cenicamente o enredo. Acostumado a elencos grandes e viçosos, que incorporam canto e dança em montagens que trazem um vigor ritualístico aos palcos, o encenador desta vez surpreende ao trabalhar com elementos mínimos, nessa peça dialógica para dois atores.
No sugestivo cenário de Nello Marrese, os soldados equilibram-se em uma gangorra, ainda parcialmente conectados aos seus paraquedas, inclinando seus corpos de um lado para o outro de acordo com o peso de seus argumentos. Sobre essa estrutura pendular, os atores demonstram que estão bem ensaiados quanto ao ritmo das ações físicas, embora se atrapalhem com a velocidade do texto em algumas falas.
A direção de Meirelles, partilhada com Lázaro Ramos e Fernando Philbert, acentua uma mudança de registro interessante no meio do espetáculo. Se no início predomina a dicção realista, uma explosão que amputa membros dos combatentes faz com que a encenação se torne mais alegórica, deixando os personagens quase indiferentes à sua nova condição física.
Esse desvio para o simbolismo potencializa novas camadas de significação do texto, que ganha um realce onírico com as projeções de vídeos e os efeitos sonoros. Na última cena, após mais uma explosão, sobram somente as "cabeças pensantes" dos soldados. Com apenas seus rostos emoldurados pelo desenho de luz, privados da materialidade de seus corpos, fazem alusão ao niilismo beckettiano de "Oh Os Belos Dias" ("Happy Days").
Ambos representam, enquanto aguardam sem esperança o destino final de seus crânios em um poço de dejetos, a falta de sentido da vida e da morte diante dos desígnios de uma ordem social superior inacessível aos cidadãos-combatentes paralisados pela imobilidade de seu "status quo".