Biografia
Júlio Mesquita em quatro volumes
Uma vida que faz parte da história
RESUMO Numa narrativa que se estende por 1.740 páginas, distribuídas em quatro volumes, Jorge Caldeira retrata a vida de Júlio Mesquita (1862-1927). A trajetória do diretor e dono do jornal "O Estado de S. Paulo" entrelaça-se com momentos históricos importantes, a começar pelo estabelecimento da República.
LEÃO SERVATal como as musas de Homero, Jorge Caldeira abre sua monumental biografia de Júlio Mesquita com os momentos finais da odisseia desse protagonista do estabelecimento da República e do jornalismo moderno no Brasil. Mesquita era um homem recluso e de hábitos simples, embora ao longo da vida tivesse se tornado rico e influente. No início de 1927, aos 64 anos, cede à insistência dos filhos e decide participar do baile de Carnaval da elite paulistana, onde sua presença causa alvoroço e curiosidade entre os presentes.
O Brasil saía de anos sob o autoritarismo da gestão de Arthur Bernardes (que governou de 1922 a 1926 sob estado de sítio), e ensaiava uma abertura com Washington Luís. O dono do jornal "O Estado de S. Paulo" fora preso no governo anterior, acusado de colaborar com a Revolução de 1924, quando militares rebeldes ocuparam São Paulo, que ficou sob intenso bombardeio do Exército Nacional. Depois que foi solto, sofreu anos de censura em seu jornal, tempo em que se manteve distante da visão do público. Agora saía das sombras para as luzes do Carnaval. Há um tom de vitória naquela sua reapresentação à sociedade.
A muitos dos que ali estavam sua presença lembrava também que nos últimos anos "O Estadão", como já era chamado, passara a apoiar o oposicionista Partido Democrático e seu programa de renovação das instituições brasileiras, recém saído da primeira vitória nas urnas. Já a maior parte da elite paulista naquela festa apoiava o Partido Republicano, revolucionário quarenta anos antes e que Mesquita vira se tornar um partido corrompido.
Por isso, o episódio corriqueiro ganha na narrativa de Caldeira um caráter paradigmático. Enquanto anda pelo baile, conversa com a grande dama da sociedade, Olívia Guedes Penteado, senta-se pouco à mesa com sua família reunida e em seguida sai a caminhar até a sede do jornal, em que não entrava há algum tempo.
Ao flanar entre prédios de uma cidade em permanente ebulição, ele vai lembrando grandes momentos de sua vida na cidade que viu crescer de 31 mil para 700 mil habitantes desde que chegou de Campinas, em 1877, para estudar direito. Caldeira destaca especialmente a impressão que Mesquita tem ao passar pela rua Boa Vista, onde se lembra do primeiro encontro com Ruy Barbosa, em 1890, nos primeiros tempos da República, um encontro que marcaria profundamente sua personalidade jornalística e política.
De um episódio rememorado a outro, como na própria "Odisseia", o autor dispara a narrativa que ocupa 1.740 páginas distribuídas por quatro volumes percorrendo toda a história do Brasil de meados do século 19 ao ano de 1927. Até encerrar com a morte surpreendente do jornalista, acometido de um mal súbito.
Mesquita estava desde então por merecer uma obra do porte de "Júlio Mesquita e Seu Tempo", fruto de 15 anos de pesquisa e cinco de redação. O homem e seu jornal são símbolos do capitalismo paulista, associados pela esquerda contemporânea ao estigma de conservadorismo.
No entanto, o dono do "Estadão" se revela um "gauche" por toda a vida; participou até da versão imperial da "luta armada", quando jovem: republicano radical, ao combater a escravidão, participava de movimentos que ajudavam escravos a escapar e se refugiar em quilombos armados. Da mesma forma, defender a República no tempo do Império ou enfrentar as oligarquias da República Velha não eram lutas singelas, mas propostas de rupturas importantes.
INDEPENDÊNCIA O homem público se confunde com o empresário de jornal. Quando a República se implanta, ele afasta o jornal do partido. "O Estado" apoia o regime, mas a independência faz crescer sua credibilidade, o que faz crescer o número de leitores e isso atrai mais anunciantes, cujas receitas vão custear investimentos e permitir mais crescimento. Como narra Caldeira: "Em muitos momentos, os governos confrontavam a opinião --e nessa hora os artigos e os editoriais com posições alternativas ganhavam grande visibilidade. Além disso, anunciantes de diversos produtos precisavam de identificação com o leitor como fundamento para seus gastos em publicidade --e o jornal se pautava pela escolha dos anunciantes, não dos governos".
Ao longo das primeiras décadas da República, o "Estado" se afasta dos governos de seu antigo partido. Apoiará sucessivos movimentos de oposição, as candidaturas de Ruy Barbosa e teses propostas pelos tenentistas, o reformismo do Partido Democrático. O jornal encarnará um programa de modernização das instituições brasileiras, e isso não deixa de incomodar uma longa lista de adversários políticos. Todos, no entanto, vão se juntar em respeito diante da morte de Mesquita.
Desde o lançamento de "Mauá "" O Empresário do Império" (Companhia das Letras, 1995), sua biografia do Barão pioneiro da indústria, Jorge Caldeira tem trabalhado sobre histórias de personagens que influenciaram a política e a economia do país ao seu tempo. "Mauá", "O Banqueiro do Sertão" (Mameluco, 2006) e este "Júlio Mesquita e seu Tempo" concentram a atenção no desenvolvimento do capitalismo de São Paulo.
Além da economia, este livro acrescenta uma leitura sobre a evolução das técnicas e tecnologias do jornalismo, como expressa nos subtítulos dos volumes ("O Jornal de Prelo", "O Jornal de Rotativa" e "O Jornal Moderno"). Mesquita adotava novas máquinas e estilos jornalísticos alinhados com o que havia de mais inovador no mundo e assim impulsionava a penetração de seu jornal.
Esse interesse pela evolução do jornalismo dá ao livro uma nova leitura de fatos, como a guerra de Canudos (1896-97). Ao narrar a história sob o ponto de vista do periódico e em paralelo com o que faziam grandes jornais do mundo, Antônio Conselheiro surge como uma versão local do Doutor Livingstone, o personagem em lugar longínquo que o jornal vai buscar com seu intrépido repórter para quem não existem distâncias. Euclydes da Cunha é como um Stanley do "Estadão" (e a batalha final em que aparece o corpo do Conselheiro pode ser vista como nosso "I Presume"). O Canudos aqui não é o de "Os Sertões" ou de "No Calor da Hora", de Walnice Nogueira Galvão, que lê o conflito nas notícias da época. Caldeira coloca a cobertura no contexto de afirmação dos jornais: ao cobrir um episódio no fundo do sertão, "O Estado" afirma seu domínio sobre todos os rincões de um território que se torna nação.
Neto de Júlio Mesquita, Ruy Mesquita dizia que para ele a poesia tinha atingido o ápice com Fernando Pessoa e que, desde então, nada se comparava a ela. Talvez tivesse em mente um paralelo entre o avô e o poema "The Times": em muitos momentos, Mesquita talvez pensasse ombrear o grande jornal inglês ou seu xará nova-iorquino e "ter influência no mundo". E como exclama o poeta: "Santo Deus!... E talvez a tenha tido!"