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Primavera Árabe

Ruínas recém-construídas

O Egito e a revolução que ainda não ocorreu

VLADIMIR SAFATLE

Resumo

Um ano após a queda de Mubarak, um Egito ainda frágil e sob jugo do Exército busca reestruturar o poder político na tensão entre a Irmandade Muçulmana, disposta a fornecer assistência à população, e a social-democracia, que aspira ao ideal revolucionário. Do Cairo, Vladimir Safatle embarcou para Israel e Palestina.

KAREM YEHIA é um jornalista egípcio que se autodenomina "independente de esquerda". Durante os anos em que trabalhou para um dos principais jornais do país, "Al-Ahram", foi vítima de todo tipo de censura do regime de Hosni Mubarak. Não por acaso, um ano atrás ele era figura constante nas manifestações da praça Tahir que levariam à derrubada do ditador, em 11 de fevereiro.

No entanto, ele está proibido de escrever. No final de dezembro, sua mulher, uma dona de casa apolítica, foi presa enquanto ia ao supermercado e submetida a horas de interrogatório policial.

Quem visita Karem em seu apartamento encontra um desses edifícios que se espalham por todo o Cairo e parecem ter sido interrompidos pela metade. No Egito, há uma lei que isenta de imposto predial as construções inacabadas. Por isso, milhares de prédios parecem semidestruídos; no entanto, são habitados.

Esses prédios fornecem, de maneira involuntária, a melhor metáfora do Egito: uma sociedade que parece movida por um ímpeto de renovação, mas se perde no meio do caminho e aos poucos se desagrega.

O mais importante país do mundo árabe, tanto por sua influência cultural (cinema, literatura, TV) como por seus 81 milhões de habitantes, conheceu uma impressionante mobilização popular que, ao cabo de meses, derrubou o "presidente" Mubarak, no poder por 30 anos. Mas tal ímpeto de renovação não produziu uma substancial mudança no regime, como vemos na Tunísia.

"Os prédios inacabados do Cairo fornecem a melhor metáfora do Egito: a sociedade parece movida por um ímpeto de renovação, mas se perde e aos poucos se desagrega"

FORÇAS ARMADAS Descontentes com a tentativa de Mubarak em impor seu filho, Gamal, como seu sucessor, o Comando Supremo das Forças Armadas (Scaf) aproveitou para derrubá-lo e pôr em seu lugar uma junta militar encabeçada por Mohamed Tantawi.

O episódio da mulher do jornalista Karem Yehia mostra que a junta tolera a democracia apenas "até certo ponto", praticando, a partir daí, os mesmos hábitos que fizeram a fama do Exército nos anos Mubarak. "A revolução não está no poder. O poder está, na verdade, nas mesmas mãos. Ele só mudou de rosto", contou-me o jornalista.

De fato, uma das grandes questões no Egito é o destino das Forças Armadas -questão central também em países como Síria, Turquia e Argélia. Sua influência na vida política nacional vem do Movimento de 1952, que deu ao Egito moderno seu líder mais conhecido, Gamal Abdel Nasser (1918-70), com seu discurso nacionalista, laico e não alinhado.

Nasser produziu a versão egípcia de uma modernização que tinha, ao mesmo tempo, densidade popular e falta brutal de democracia. No entanto, "isso mudou depois dos acordos de Camp David", diz Karem Yehia, mencionando o acordo celebrado entre Egito e Israel em setembro de 1978, com mediação dos EUA, para a devolução da península do Sinai. "A ajuda financeira norte-americana foi uma grande porta para a corrupção das Forças Armadas e para o afastamento do nasserismo."

Hoje, as Forças Armadas são um Estado dentro do Estado. Responsáveis por quase 30% do PIB, elas comandam postos de gasolina, indústrias e vários serviços públicos. Para manter esse poder, estão dispostas a tudo.

"A junta militar tolera a democracia apenas "até certo ponto". "A revolução não está no poder. O poder está, na verdade, nas mesmas mãos. Ele só mudou de rosto", diz Karem Yehia"

IRMANDADE Neste caso, "tudo" significa um acordo com a Irmandade Muçulmana, grupo vencedor das primeiras eleições livres para a Assembleia Nacional, entre novembro e janeiro. As eleições resultaram em um Parlamento de 508 membros, dos quais 235 são do Partido da Liberdade e da Justica (ligado à Irmandade Muçulmana), 124 da Al-Hour (partido salafista), 38 do liberal Wafd e 30 do também liberal Bloco Egípcio. O resto está disperso entre pequenos partidos.

A vitória esmagadora da Irmandade Muçulmana era, de certa forma, esperada. Os primeiros momentos da revolução egípcia foram impulsionados por dois movimentos principais: Kefaya ("basta", Movimento Egípcio pela Mudança) e o 6 de Abril.

O primeiro é uma aliança formada em 2003, por um heterogêneo grupo de lideranças (marxistas, islamistas, nasseristas e liberais, entre outros). O segundo é um impressionante movimento de jovens universitários liderados por Ahmed Maher e que se serviram da internet e do Facebook para fortalecer sua força de mobilização.

No entanto, foi com a presença da Irmandade Muçulmana que o movimento ganhou organização e mais densidade popular. "Demos assistência social e médica durante as manifestações da praça Tahir", diz o responsável pela comunicação da Irmandade Muçulmana, Ali Al-Fatah. Ele lembra que a Irmandade existe desde 1928, atuando em mais de 60 países. Sua influência vem da mistura entre religião e assistência social.

Um exemplo de tal sensibilidade social é esta afirmação de Al-Fatah, questionado sobre a posição da Irmandade relativa ao porte do véu e do "niqab": "Temos problemas mais importantes do que legislar sobre roupas. Queremos mostrar que somos capazes de trazer justiça social e garantir o bom funcionamento da economia".

De fato, esse pragmatismo teria permitido à Irmandade Muçulmana estabelecer acordo com as Forças Armadas, criando uma espécie de partilha de poderes que não está longe do que vemos hoje na Turquia. No entanto, muitos duvidam das verdadeiras aspirações da Irmandade: "Eles têm uma agenda oculta e podem, a qualquer momento, agir em conjunto com os salafistas", diz Georg Ishak, líder do Kefaya, referindo-se ao grupo radical muçulmano ligado à linha hegemônica da Arábia Saudita.

Muito do sucesso da Irmandade vem da peculiaridade da revolução egípcia. "Esta é uma revolução sem líder, sem ideologia. O grupo mais organizado foi o mais preparado para se beneficiar dos frutos dos acontecimentos", diz Hassan Nafta, professor de ciência política da Universidade do Cairo.

Ou seja, a natureza espontânea dos acontecimentos egípcios era, ao mesmo tempo, sua novidade e sua fraqueza.

Por isso, assim como na Tunísia, a revolução passou para as mãos daqueles que não eram seu primeiro motor. No entanto, ao contrário da Tunísia, a presença dos grupos muçulmanos organizados foi claramente presente no processo revolucionário. O que não significa que os egípcios foram às ruas para gritar slogans islâmicos ou para lutar por maior presença da religião na política.

Eles acreditam que os grupos religiosos são os mais qualificados para implementar uma verdadeira política de proteção social e de luta contra a desigualdade.

A razão disso não é difícil de entender. Tais grupos sempre estiveram presentes nos setores mais pobres da população, dando assistência em meio à impressionante miséria que encontramos em cidades como o Cairo, com seu esgoto a céu aberto e lixo amontoado nas ruas. Mais uma vez fica claro como a verdadeira força destes grupos islâmicos não é a religião, mas a assistência.

O Egito demonstra como o chamado "choque de civilizações" é, no fundo, uma invenção rasteira de intelectuais conservadores ocidentais para esconder o verdadeiro processo, a saber, como experiências profundas de desigualdade social levam populações a reconstruírem sua dignidade apelando a laços com uma tradição reinventada e rígida. Tradição que pode lhes dar a impressão de serem, enfim, escolhidos.

"Os grupos religiosos sempre estiveram presentes nos setores mais pobres, dando assistência em meio à miséria do Cairo, com seu esgoto a céu aberto e lixo amontoado"

6 DE ABRIL No quadro revolucionário, porém, o grupo que mais se destaca por sua novidade é o Movimento 6 de Abril. Composto por jovens universitários que se mobilizaram para apoiar a grande greve de 2008 em El-Mahalla El-Kubra, eles são os principais alvos da repressão atual.

Decididos a não participar da eleição que a Irmandade Muçulmana levou, seu principal alvo são os militares. "Eles nunca nos darão liberdade e democracia. Não havia sentido em participar de uma eleição comandada por eles", afirma Mohamed Tarek, ativista de Alexandria. "Com a Irmandade Muçulmana é possível conversar, mas o Exército simplesmente nos mata", diz Ahmed Maher, líder do Movimento 6 de Abril.

A própria figura de Maher, 31, em nada se assemelha ao perfil tradicional do militante. Engenheiro, ele me recebeu no requintado escritório onde trabalha: uma empresa responsável por algumas das principais obras do país, como o aeroporto do Cairo e a Biblioteca de Alexandria.

Suas análises são objetivas e ponderadas: "Precisaremos de pelo menos seis anos para alcançar algo parecido com uma democracia. Teremos de esperar a população notar que a Irmandade Muçulmana não conseguirá realizar suas promessas econômicas. Isso não é possível mantendo o poder do Scaf".

O movimento que ele representa impressiona pela "flexibilidade ideológica". Nele encontraremos esquerdistas, islamistas e liberais, entre vários outros. "Isso ocorre porque a era dos partidos acabou. Precisamos de organizações mais flexíveis, que possam cooperar com várias ideologias."

Mas, se perguntarmos qual seria o eixo ideológico do Movimento 6 de Abril, ouviremos: "Algo próximo da social-democracia. Justiça social, luta contra a desigualdade, Estado liberal do ponto de vista das liberdades individuais e forte do ponto de vista de sua capacidade de intervenção na economia".

Certamente há que meditar muito nesta ironia: o movimento que impeliu a sublevação popular mais influente dos últimos se diz próximo da social-democracia clássica. Fica a questão de saber que época é esta na qual até mesmo um ideal social-democrata real acaba por ser revolucionário.

"Para um líder do Movimento 6 de Abril, "Teremos de esperar a população perceber que a Irmandade Muçulmana não conseguirá realizar suas promessas econômicas""

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