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Ciência

O desafio de Farber

A busca pela erradicação do câncer

SIDDHARTHA MUKHERJEE
TRADUÇÃO BERILO VARGAS

RESUMO
A série de trechos de livros que a "Ilustríssima" publica em primeira mão traz o Prêmio Pulitzer de não ficção de 2011, "O Imperador de Todos os Males: Uma Biografia do Câncer" (Companhia das Letras), que chega à livrarias no dia 24. O excerto narra descobertas de Sidney Farber (1903-73), o pai da quimioterapia.

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Dez quilômetros e meio ao sul dos hospitais de Longwood, em Boston, a cidade de Dorchester é um típico subúrbio que se alastrou da Nova Inglaterra, um triângulo encravado entre as áreas industriais a oeste e as baías verde-acinzentadas do Atlântico a leste.

No fim dos anos 1940, levas de imigrantes judeus e irlandeses-construtores navais, ferreiros, engenheiros de ferrovias, pescadores e operários de fábrica- se estabeleceram em Dorchester, ocupando filas de casas de tijolo e sarrafo, que serpenteavam ladeira acima pela avenida Blue Hill.

Dorchester reinventou-se como a quintessência do subúrbio familiar, com parques e playgrounds à beira do rio, um campo de golfe, uma igreja e uma sinagoga. Domingo à tarde, famílias iam para o Franklin Park andar pelas trilhas arborizadas ou contemplar avestruzes, ursos polares e tigres no zoológico.

Em 16 de agosto de 1947, numa casa em frente ao zoológico, o filho de um construtor naval dos estaleiros de Boston ficou misteriosamente doente, com uma febre baixa que ia e vinha sem seguir um padrão por um período de duas semanas, acompanhada de crescente letargia e palidez. Robert Sandler tinha dois anos. Seu irmão gêmeo, Elliott, era uma criança ativa e angelical de saúde perfeita.

LEITOSO

Dez dias depois da primeira febre, a doença de Robert piorou significativamente. A temperatura subiu. A tez passou de rosada para um branco leitoso fantasmagórico. Ele foi levado para o Children's Hospital em Boston. Seu baço, órgão do tamanho de um punho (em geral difícil de apalpar sob as costelas) que armazena e produz sangue, estava visivelmente aumentado, pesado como um saco cheio.

Uma gota de sangue ao microscópio de Farber revelou a identidade da doença: bilhões de células blásticas leucêmicas linfoides imaturas dividiam-se freneticamente, com os cromossomos condensando-se e descondensando-se como pequenos punhos que se abriam e fechavam.

Sandler chegou ao Children's Hospital apenas algumas semanas depois que Farber recebeu seu primeiro pacote do Lederle. Em 6 de setembro de 1947, começou a injetar no menino ácido pteroil-aspártico ou PAA, o primeiro dos antifolatos do Lederle.

(Autorização para realizar uma experiência clínica com remédio -mesmo um remédio tóxico- não costumava ser exigida. Os pais eram, vez por outra, superficialmente informados sobre a experiência; as crianças quase nunca eram informadas ou consultadas. O código de Nuremberg sobre experiências humanas, que exige consentimento voluntário explícito dos pacientes, foi esboçado em 9 de agosto de 1947, menos de um mês antes da experiência com PAA. É difícil imaginar que Farber, em Boston, tivesse ouvido falar na exigência desse código de consentimento.)

O PAA teve pouco efeito. Ao longo do mês seguinte, Sandler tornou-se cada vez mais letárgico. Passou a mancar, como resultado da pressão das células leucêmicas em sua medula espinhal. Apareceram dores nas juntas, além de outras dores fortes e migratórias. Então, as células leucêmicas infiltraram um dos ossos da coxa, causando fratura e provocando uma dor excruciante, indescritível.

Em dezembro, o caso parecia perdido. A ponta do baço de Sandler, mais densa do que as próprias células leucêmicas, caiu sobre a bacia. Ele estava retraído, apático, inchado e pálido, à beira da morte.

MELHORA

Em 28 de dezembro, entretanto, Farber recebeu uma nova versão de antifolato de Subbarao e Kilte, aminopterina, substância química com uma pequena mudança na estrutura do PAA. Farber pegou a droga logo que ela chegou e começou a injetá-la no menino, esperando, no máximo, que o câncer regredisse um pouco.

A resposta foi significativa. A contagem de células brancas, que aumentara astronomicamente -10 mil em setembro, 20 mil em novembro, quase 70 mil em dezembro-, de repente parou de subir e manteve-se num patamar. Então, o que foi ainda mais notável, a contagem começou, de fato, a cair; as células blásticas leucêmicas gradualmente diminuíram, até quase desaparecer.

No Ano Novo, a contagem tinha caído para quase 1/6 do valor mais alto alcançado, chegando perto do nível normal. O câncer não desaparecera -ao microscópio, ainda eram glóbulos brancos malignos-, mas se acalmara temporariamente, congelado num impasse hematológico, no gélido inverno bostoniano.

Em 13 de janeiro de 1948, Sandler voltou à clínica, andando por conta própria pela primeira vez em dois meses. O baço e o fígado tinham diminuído tão espetacularmente que suas roupas, como notou Farber, ficaram "frouxas no abdômen". O sangramento parou. Seu apetite tornou-se voraz, como se ele tentasse compensar os seis meses de refeições perdidas.

Em fevereiro, Farber notou que ele estava tão ágil, nutrido e ativo como o irmão gêmeo. Por um breve instante, Robert e Elliott Sandler voltaram a parecer idênticos.

TURBILHÃO

O retrocesso da leucemia de Sandler -sem precedentes na história- lançou Farber num turbilhão de atividades. No começo do inverno de 1948, havia mais crianças em sua clínica: um menino de três anos, levado com a garganta inflamada, uma menina de dois anos e meio com caroços na cabeça e no pescoço, todos mais tarde diagnosticados com leucemia linfoblástica aguda.

Inundado de antifolatos de Yella e com pacientes que deles precisavam desesperadamente, Farber convocou mais médicos para ajudá-lo: um hematologista chamado Louis Diamond e um grupo de assistentes, formado por James Wolff, Robert Mercer e Robert Sylvester. Farber tinha deixado os diretores do Children's Hospital furiosos com sua primeira experiência clínica. Com esta, a segunda, ele os deixou enlouquecidos.

Os funcionários do hospital decidiram tirar todos os internos de pediatria da unidade de quimioterapia (eles achavam que a atmosfera nas enfermarias com pacientes de leucemia era desesperada e experimental demais, e, portanto, imprópria para o aprendizado médico) -em suma, deixando para Farber e seus assistentes a tarefa de cuidar sozinhos dos pacientes.

Crianças com câncer, como observou um cirurgião, costumavam ser "enfiadas nos recessos mais distantes das enfermarias". Estavam em seu leito de morte, de qualquer maneira, diziam os pediatras: não seria mais bondoso e nobre, insistiam alguns, simplesmente "deixá-los morrer em paz"?

Quando um clínico sugeriu que os novos "químicos" de Farber fossem usados em crianças com leucemia apenas como último recurso, Farber, recordando-se de seu trabalho anterior como patologista, gritou de volta: "A esta altura, o único produto químico de que precisariam seria fluido de embalsamamento".

Farber equipou um quarto dos fundos de um pavilhão perto dos banheiros, improvisando uma clínica. Sua pequena equipe foi abrigada em diferentes espaços não utilizados do departamento de patologia -em quartos dos fundos, poços de escada e escritórios vazios. O apoio institucional era mínimo.

Seus assistentes afiavam as próprias agulhas para medula óssea, prática tão antiquada quanto exigir de um cirurgião que amolasse suas facas num esmeril.

A equipe de Farber acompanhava a doença nos pacientes com meticulosa atenção para os detalhes: cada contagem de sangue, cada transfusão, cada febre era anotada. Se a leucemia seria derrotada, Farber queria que cada minuto dessa batalha fosse registrado para a posteridade -mesmo que ninguém mais estivesse disposto a assistir à luta.

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