Índice geral Ilustrissima
Ilustrissima
Texto Anterior | Índice | Comunicar Erros

Imaginação

Prosa, poesia e tradução

Lavie na luz medonha

JULIANA FRANK
ILUSTRAÇÃO DEBORAH FALEIROS

Dezesseis anos. Virgem. Os cabelos em desalinho. Sem dinheiro no bolso para encarar a liberdade.

-Vovó Ingratidão, me empreste um dinheiro, preciso conhecer a vida.

-Lavie, na rua não há vida, só violência.

Vovó tem no rim uma pedra que endureceu de paixão.

-Mamãe Improvável, me empreste um dinheiro?

-Seu pai tem uma amante chamada Geysy Mary! O pai dessa moça é multimilionário, dono de uma fábrica de pasta de dentes! E ela não tem filhos, é bonita como um pássaro, sem filhos, ouviu?... Lavie, não me aborreça.

Mamãe Improvável é sempre assim, me nega qualquer tostão.

- Papai Cifrão? Preciso de uns níqueis. Ninguém vai longe com 16 anos, 30 dinheiros.

Papai Cifrão se pôs todo garboso, inflou o peito na minha frente, pensou me eclipsar. Como se eu invejasse sua riqueza. Quem não tem medo da inveja, como papai, são aqueles que sabem que a alegria não vale nada, é apenas uma barganha no inferno.

Não pedi à titia deprimida, costureira e suicida. Ela mora nos fundos da minha casa. E eu nunca sei direito se ela é irmã de papai Cifrão ou de mamãe Improvável.

Fiz uma mala singular: um pente, uma blusa roubada, um abridor de latas infeccioso, uma pilha, um post-it com desenho de caule, um pote com cascas de machucados, um CD do Joy Division e uma raspa da parede do meu quarto. Únicas coisas únicas.

Saí chutando latas. Mas não é preciso chutar latas, sonhos ou girassóis. É preciso encurtar o caminho da bosta, chutar o supositório do cu do mundo e deixá-lo sufocar.

Andei com meus longos e desvaídos braços por três ruas, subi seis ladeiras, desci as mesmas de tobogã. Gastei meus 30 dinheiros com coxinhas, vinis velhos, fósforos. Ninguém é feliz nesta cidade. Decidi morrer. Mas minha morte não seria uma pilhéria. Como o último espasmo de dignidade que me sobrara, prometi: não, de modo nenhum seria motivo de chacota.

Um pensamento me preocupou: uma virgem no paraíso? Morta, eu instantaneamente seria rebaixada a uma daquelas santas que fazem triagem. "Triagem, não. Morrerei dissoluta. Preciso romper o lacre virginal" -decidida, me dirigi a um bar infecto da São João.

Sentei, travei o cotovelo no balcão. Era cedo, a luz do sol ainda incomodava as retinas. Avistei um homem com a barba comunista, a tosse poética e um relógio aristocrático.

-Que horas são?, perguntei.

-Seis e nove, garantiu.

-Que horas são agora?

-Falta um minuto para o próximo minuto.

-Desculpe o incômodo, mas que horas são agora?

-São seis e nove quase deixando de ser. São seis e nove mais 30 segundos. Me deixe em paz, pirralha, você me fez perder 30 segundos.

-E que horas são agora?

-São seis e nove quase deixando de ser. São seis e nove. Que diferença faz se você é só uma adolescente disfuncional? Por que tanto pergunta? Menina, saiba logo de saída que não existe ninguém feliz em horários pares, apenas nos ímpares. O que faz as pessoas dos nossos tempos, digo, dos nossos tempos serem felizes é uma mera questão pontual. Tudo depende do humor do cuco. Do ponteiro em sua bateção infinita. Às seis horas estão todos borocoxôs em São Paulo. Os que mentem que estão felizes e falsificam um sorriso no rosto não me ludibriam. Porque são seis horas e as drogas capazes de levar alguém à radiação são vendidas apenas mais tarde. Procure às seis horas o homem que arrasta chinelos carregando uma escopeta ou um princípio de incêndio e saberá que a felicidade demorará algumas horas a chegar na cidade pendular.

-Sei que não é uma boa hora, mas não tenho dinheiro.

-Ah, o metal vilão! Posso te oferecer cinco reais, sabe contar?

-Como assim? Tive ábacos na infância.

-Ótimo. Então não faz muito tempo. Vá até a São João, conte 30 ônibus.

-Para quê?

-Para eu aproveitar sua ausência e desfrutar meus pensamentos. Em troca da paz, te darei cinco reais. Não posso compartilhar elucubrações com você, sua mente adolescente é em princípio deletéria para meus propósitos...

-Não preciso de dinheiro, nem de pensamentos. Quero mais é morrer.

-Se atire na frente de um ônibus e não me apoquente.

-Não posso morrer virgem ou serei alvo de hostilidades nozalémdoz além. Penetre, chuche o pau na minha imaculada buxinga, o tempo urge e preciso morrer. Estreie-me e me mate, me pise como um chiclete mascado! Eu imploro!

-Deus me queimaria os olhos.

-Primevo, ratazão! Nego Deus e provo sua inutilidade!

O homem me deu um chute na bunda. Eu sabia, simplesmente sabia que ele iria fazer aquilo. Mas não quis me importar. Um chute a mais ou a menos já não fazia muita diferença.

Não sei por que meu coração começou a me dar marteladas quando vi um menino de beleza apolínea sentado a uma mesa. Ele lia o jornal de ontem, muito interessado. Fui ao seu encontro planejando o que dizer. Oi, meu nome é Lavie, sou filha de papai Cifrão e mamãe Improvável, ele agora tem uma amante e ninguém me dá quinhão. Não! Oi, sou Lavie, tenho uma coleção de cascas de machucados e fósforos. Não!

Sou Lavie, provo a inutilidade de Deus e rogo ser penetrada. Não! Sou uma adolescente e sinto ardores sexuais, por favor, me mostre seu membro se este não estiver deveras maleável. Não! Sou Lavie, tenho 16 anos e preciso comê-lo com as mãos, tenho fome de pau e de morte. É isso! Vou dizer isso a ele. Fui me aproximando do moço. Ele me ignorou como se eu fosse um inseto inoportuno. Levantou e saiu do bar.

Vencida, fui para casa. Minha família não tinha dado pela minha falta. Resgatei uma enorme corrente e ofegante me dirigi ao lustre.

Ao entrar na sala para jantar, papai Cifrão me encontrou, sua única filha, pendurada na forca, com um vibrador musical girando a todo vapor no meio das pernas, a língua de fora e os olhos pulando das órbitas, mandando um último estertor: foda-se!

Texto Anterior | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.