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Literatura

O genro e o poeta

Como Manolo conheceu Drummond

LUCAS FERRAZ

RESUMO

Poeta e tradutor, Manuel Graña Etcheverry foi genro de Drummond, tendo feito de sua casa em Buenos Aires uma segunda e festiva "embaixada" brasileira. Deputado na Argentina de Perón, é autor da lei que instituiu o voto feminino. Aos 96, mantém o bom humor, a veia boêmia e tem livro de poemas lançado no Brasil.

Carlos Drummond de Andrade recebeu por carta, datada de Buenos Aires, 24 de setembro de 1949, uma apresentação do futuro genro, o advogado e poeta argentino Manuel Graña Etcheverry, então com 33 anos.

Conhecido como Manolo, o argentino narrou suas boas intenções para com a filha do poeta, Maria Julieta, mas, em vez de destacar suas virtudes, optou por reclamar da falta de dinheiro e descreveu todos os seus defeitos. "Não disse as qualidades porque não as teria", explicou depois.

O casal havia se conhecido na Embaixada da Argentina, no Rio, então capital federal, numa recepção organizada por Ivete Vargas, sobrinha-neta de Getúlio.

Maria Julieta representava o pai na festa e Manolo foi como convidado do amigo e deputado argentino William Cooke, um dos líderes históricos do peronismo. "Ivete era uma gordinha chata e muita feia", conta Manolo. "Mas Cooke, gozador que era, me chamou dizendo que eu poderia gostar da moça."

AMIGO

Uma semana depois, Drummond respondeu, chamando-o de "amigo". O poeta afirmou que ele e a mulher leram a carta, que "teve para nós o mérito de um cordial primeiro contato, feito de uma maneira tão pouco convencional, tão espontâneo, que nos causou uma grata impressão".

O pai resistiu -Maria Julieta era filha única, tinha 21 anos e acabara de conhecer o pretendente. Drummond só concordaria com o casamento, realizado 13 dias depois da recepção diplomática, ao ser confrontado por um de seus próprios versos, citado pela filha: "Depressa, que o amor não pode esperar!".

Treze anos mais novo que o sogro, Manolo mudou a rotina regrada da família. "Carlos acabou adotando o uísque das sete, um dos hábitos do papai", diz Luís Maurício Graña Drummond, 58, o segundo dos três filhos de Manolo e Maria Julieta. "Ele também se encantou com os frios típicos da 'friambrería' argentina."

O argentino, por sua vez, admirava costumes que Drummond cultivava desde os tempos em Minas, como o almoço servido antes do meio-dia, sempre com ovo frito, angu e um copo de leite.

Como se sabe, poeta e filha eram muito unidos, e quando ela mudou-se para Buenos Aires o itabirano sofreu. Escreveu a Manolo dizendo que a separação era "bastante dura a um casal que já não é rigorosamente jovem e não tem outros filhos com que se distrair". E ressaltou: "Somos bastante misantropos".

Genro e sogro fizeram-se bons amigos. Trocaram cartas e lições sobre métrica, e o argentino traduzia Drummond para o espanhol. Ele também mediou brigas do poeta com a filha.

"Maria Julieta era uma crítica muito severa dele, não somente do ponto de vista literário", lembra Manolo. "Eles se gostavam muito, mas ela às vezes se irritava com o jeito mulherengo."

LONGA VIDA

Manolo, 96, é a cara de Philippe Noiret no filme "O Carteiro e o Poeta", em que o ator francês vive o poeta chileno Pablo Neruda. O argentino só guarda uma sequela da longa vida: é surdo do ouvido esquerdo.

Ágil e ativo, está sempre envolvido em algum projeto ou investigação (segundo diz, científica, poética, matemática, sexual) e viaja com frequência com algum dos três filhos -Carlos Manuel, Luís Maurício e Pedro Augusto.

Sua admiração pelos moderados almoços de Drummond não significa que também beba leite às refeições.

Ao me receber no início de setembro passado em Déan Funes, onde vive há 12 anos, no norte da província de Córdoba, a 830 km de Buenos Aires, mal sentamos para almoçar e ele perguntou: "E aí, vamos de vinho ou cerveja?".

Acabamos dividindo com gosto uma garrafa de Malbec e à noite, no jantar, repetimos a dose com um Chardonnay.

Bebe bem, é bem-humorado e galanteador. Às argentinas, volta e meia faz questão de dizer: "Você não vota em mim, mas vota por causa de mim". E não é brincadeira.

Nascido em Córdoba em 1915, foi na vizinha Déan Funes que Manolo iniciou a carreira de advogado, nos anos 40. Nas eleições de 1946, aos 30 anos, foi eleito deputado federal na chapa que alçou à Presidência da República o general Juan Domingo Perón.

Por ser o único deputado do primeiro governo de Perón que ainda está vivo, Manolo tem credenciais para julgar o general de maneira impiedosa: "Era um grande filho da puta", diz. "Estava envolvido em tudo o que movimentasse mais de US$ 100 no país. Era um típico general, frio, não tinha amigos, parentes, nada. Evita era mais humana."

Prova disso é a reunião que Manolo teve com a primeira-dama na residência presidencial. Por determinação dela, chegou às 7h. Encontrou-a cercada por manicure e cabeleireiro. "Para minha surpresa, ela só queria falar amenidades."

Na Câmara, Manolo tornou-se acidentalmente o relator da lei nº 13.010, que instituiu o voto feminino na Argentina.

Estava ao lado de Perón e Eva, no balcão da Casa Rosada, em setembro de 1947, quando o general discursou para uma multidão no ato de promulgação da nova lei.

No ano seguinte, em 1948, "desiludido", já enveredado nas letras, abandonou a política. "Eu tinha uma visão muito idealista e ainda deixei o cargo com dívidas, tive que vender algumas coisas para acertar contas." Até hoje, ele vive da aposentadoria do Legislativo.

A última vez que viu Evita foi numa recepção. "Esperei numa longa fila para falar com ela. Quando chegou minha vez, ela me perguntou o que eu queria. E respondi: 'Nada, estou aqui apenas para cumprimentá-la'. 'Mas você não tem nenhum pedido, não quer nada?', me perguntou ela. 'Não, só quero te dar um abraço', eu disse. Ela começou a chorar".

BUENOS AIRES

Durante os 21 anos em que foram casados, Manolo e Maria Julieta moraram em Buenos Aires.

Com a ajuda dos influentes padrinhos -Gustavo Capanema, ex-ministro da Educação de Vargas e chefe de Drummond, e Augusto Frederico Schmidt, poeta, empresário e um dos homens mais bem relacionados nas décadas de 40 a 60-, assumiu o posto de advogado do Banco do Brasil na capital argentina.

Maria Julieta, que tinha dispensado uma bolsa de estudos em Paris para se casar, dava aulas no Centro de Estudos Brasileiros, ligado à embaixada, que ela dirigiu entre 1976 e 1983 (coincidentemente o período da última ditadura do país), tendo criado um selo, Iracema, para editar autores brasileiros.

Além da obra do sogro, Manolo traduzia autores como Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Augusto dos Anjos, Cecília Meirelles e Vinicius de Moraes.

A residência do casal, nos anos 1960, virou uma segunda e festiva embaixada.

"Lembro das ótimas festas em casa, o Vinicius aparecia com mulatas, que ele tirava não sei de onde, das bebidas, era um ambiente muito rico", conta Carlos Manuel Graña Drummond, 61, o primogênito do casal.

Sem gosto por viagens, Buenos Aires seria a única cidade no exterior que Drummond conheceria. Esteve lá no nascimento dos netos Carlos Manuel (1950) e Luís Maurício (1953); em férias nos anos 60 e 70; e em 1979, quando foi diagnosticado o câncer que mataria sua filha oito anos depois.

"Carlos adorava andar por Buenos Aires. E, naturalmente, se encantava com as livrarias", diz Manolo. Uma vez o poeta foi a um encontro organizado por Jorge Luis Borges, mas acanhou-se e foi embora sem se apresentar.

Ao reeditar a obra de Drummond, a Companhia das Letras publica nesta semana, pela primeira vez no Brasil, a *"Antologia Hede" [tradução do autor, 168 págs. R$ 37]*, o principal livro de Manolo, de 1954 (uma reedição do próprio autor foi feita em 1995), que desapareceu de todos os sebos portenhos. A curiosa obra narra, em forma de pastiche, a cultura, religião, linguagem, costumes e a literatura de um povo primitivo, inteiramente criado por ele.

A obra foi elogiadíssima por amigos e conhecidos do sogro, como Manuel Bandeira, João Guimarães Rosa, Paulo Rónai e Abgar Renault.

O folclore reza que até mesmo Otto Maria Carpeaux, um dos maiores eruditos de seu tempo, teria contado a Drummond que ficara impressionado com as citações e estudos usados no livro. Galhofeiro, Manolo se delicia com a história, pois tudo foi inventado por ele, até a tese de Harvard citada nas notas.

Em Deán Funes, onde vive só numa casa simples abarrotada de livros, Manolo me levou para conhecer seus amigos: pintores, vizinhos, a "gata" da secretária de Cultura local, o prefeito. Num final de tarde, quis que fôssemos ver os pássaros nas palmeiras da praça central.

Antes de nos sentarmos à mesa de um café, uma empinada moça cruzou nosso caminho. Sem perder a passada, cochichou:

"E lá se vai um belo par de peitos, orgulhosos, austeros, cortando bravamente o ar."

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