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Imaginação

Prosa, poesia e tradução

O nosso reino

VALTER HUGO MÃE

A LOUCA SUICIDA, pobre coitada, perdera todos os filhos num só dia.

o mais novo de manhã, a caminho da escola, tomado pelos lobos que desciam à aldeia naqueles anos antigos, ainda os muros não se tinham levantado para separar a vila dos lugares tão sombrios do arvoredo. o filho mais velho perdeu‑o a seguir, entrado ele em casa com a notícia, saiu em berros para saber de seu pai, que acudisse ou a mãe morreria de desgosto. foi ao saber do pai, agarrado manhãzinha à leiteira, que se viu amaldiçoado. logo a leiteira, saia porca, se aproximou da sua boca aberta e lhe espetou um arpão no peito. o pai a falir de vergonha, o adultério como crime hediondo, e a leiteira sem escrúpulos a espetar‑lhe o arpão também.

a minha avó é que contava que havia um terceiro filho, muito estranho e reservado, que avistou da janela do seu quarto o corpo do irmão na boca dos lobos, e, assim que a mãe o chamou em agonia, atirou‑se janela abaixo para bater com a cabeça na pedra do tanque.

naquele dia a louca suicida enlouqueceu, não dizia coisa com coisa, e sabia‑se na vila que algumas frases pareciam da bíblia, como profecias, mas era sem razão que a queriam ver. a minha avó contava que ela enlouquecera porque a morte entrara na cabeça dela em demasia e pelos outros. não morrera, mas os dela sim, e a morte estava a chama‑la, que fosse, não devia esperar. quando a libertaram, um só segundo lá no quarto do doutor mateus, ela fugiu e, dizia quem viu, correu como um cavalo para o rochedo no rio e de lá saltou num grito de fúria. morreu de imediato, o seu corpo delicado abriu‑se em dois com o choque da água. parecia ter‑se feito pedra aquele rio tão límpido.

o doutor mateus, muito velho e rabugento, quando ia à missa detestava que lhe falassem da história. dizia‑se que tivera tempo para dar um sentido às coisas que a louca dizia, que saberia coisas, que era como se soubesse coisas da bíblia que não estavam lá. eu achava que o doutor mateus era só um velho tonto a querer chamar a atenção, se soubesse de algo o homem mais triste do mundo já o teria levado. na missa, eu nunca ficava perto dele. mas dele, sem saber por quê, não suspeitava eu.

quando recuperei os sentidos percebi que estava vivo.

perceber assim que se está vivo é coisa de funda alteração. além de perder o tino, roga‑se ao céu perdão, lamenta‑se e fica‑se a saber que deus não quer que morramos. não era a nossa hora, ainda merecíamos, e eu sabia o que isso significava, ficar mais tempo vivo era merecer. durante uns cinco dias internaram‑me no centro de saúde da vila. então, havia um centro onde podíamos ficar doentes. a dona hortênsia era quem cuidava de nós, não era bem uma enfermeira, era uma parteira muito experiente que se deixara ali ficar por falta de partos. era uma excelente pessoa que eu aprendi a adorar e a ver como um ser impregnado das bondades de deus.

no início, assim que entrei, vinha muito perto de mim e estendia as mãos no meu corpo a massaja‑lo. o doutor brito deixava‑a fazê‑lo porque era muito suave, parecia existir quase só a emissão de um calor a partir da sua pele, como emanação de uma cura maior feita a partir do pensamento. sorria, dizia que eu era um rapaz cheio de sorte e que estava muito feliz por ter a oportunidade de me conhecer. deus seja louvado por ter permitido que eu te conheça, que cada pessoa que conhecemos é uma alma com quem poderemos estar no paraíso, se formos bons. porque cada pessoa que conhecemos traz uma peça do nosso caminho até ao senhor, e nós só precisamos de a guardar, de a preservar com cuidado, e esperar até o completarmos.

durante aqueles dias a minha cabeça mudou em relação a muitas coisas. a primeira foi a convicção de que eu seria uma presa próxima para os oficiais da morte. afinal eu estava ali para ficar, porque poderiam ter‑me aberto a porta do céu ou do inferno e não o fizeram, era ali que eu ficaria, como uma liberdade que me garantiram. estava livre. a segunda convicção que criei foi a de que o bem, a sua prática, era uma dádiva. só os bons persistiam e ascendiam, que alguns podiam persistir mas descer, porque na vida havia mal a segurar os tolos para que trabalhassem em favor do inferno. por isso os maus se salvam da morte a cada passo, e iam ficando, para competirem conosco, os bons, pelo espaço, pelo único espaço garantido.

[...]

quando o manuel me visitou em casa, duas semanas depois, eu atado à cama por mais cinco dias ainda, entrou no meu quarto a medo. sem me encarar, deixou‑se ali ficar, e eu olhei‑o sem palavra durante minutos, num silêncio suspenso interminável como se estivéssemos numa descompressão antes de sair de baixo de água.

então eu afirmei eloquente, abandonaste‑me, mas quero muito que sejas meu amigo porque eu sou teu amigo. e podias ter fugido comigo pelo campo abaixo e ter saltado do rochedo, mas agora não quereria nunca que tivesses morrido porque eu não morri. e agora quero que sejas o primeiro a saber da resolução que tomei para combater todo o mal que existe, para lutar contra quem nos quiser magoar ou matar, eu decidi entregar‑me a deus através da única maneira ao nosso alcance, farei de todos os meus atos um ato de bondade, até que dentro de mim só o que é bom se manifeste e eu seja bom também, eu vou ser santo. terei poderes com o tempo, aprenderei a curar os corpos e a salvar almas, saberei entender a voz de deus e deixarei de temer os seus olhos, pois eles estarão sobre mim em constante piedade. queres ser santo comigo, manuel. seremos os dois, há tanta coisa para fazer, tantas pessoas que morrem, seremos incansáveis a salvá‑las.

[...]

quando regressei à escola os miúdos tinham medo de mim. contava‑se que eu tinha estado morto e regressara como um fantasma que conseguiu recuperar o corpo. saltou do rochedo da louca suicida, vem possuído pelo espírito dela, diziam alguns. os meus pais disseram‑me que foi ela quem o encontrou, que os peixes lhe tinham comido a carne mas ela fez uma magia e os peixes vomitaram tudo, disse outro rapaz.

chamaram‑me nomes, que me fosse embora, se queria estar morto que morresse longe dali. a minha professora, a professora blandina, protegeu‑me com os braços e mandou‑nos entrar.

na sala, entre o manuel e a germana, afundei‑me na cadeira de tristeza e declarei que não era verdade, que estava vivo e não havia morrido, só cristo ressuscitou e dizê‑lo de outra pessoa era heresia.

SOBRE O TEXTO A série de trechos de livros que a "Ilustríssima" publica em primeira mão traz trecho do segundo capítulo de "o nosso reino" (2004), primeiro romance da tetralogia em letras minúsculas do português valter hugo mãe. O livro, que será lançado no final de março, pela Editora 34, segue a história de um menino obcecado pela ideia do bem e do mal. Da tetralogia, na qual cada livro corresponde a uma fase da vida, foram lançados no ano passado "o remorso de baltazar serapião" (Também pela Editora 34), sobre a juventude, e "a máquina de fazer espanhóis" (Cosac Naify), sobre a velhice.

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