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Arquivo aberto

Memórias que viram histórias

A frase de Flusser

Munique, 1990

ANDRÉ VALLIAS

EM FEVEREIRO de 1987, rumei para a Alemanha sem muito na bagagem: um vago propósito de permanecer um ou dois anos, matrícula num curso intensivo de alemão, portfólio com poemas visuais, mochila abarrotada de roupa para o frio e alguns contatos que colhera entre amigos e conhecidos.

Os de Ignácio de Loyola Brandão já me valeram na chegada a Frankfurt, onde esperei em vão pela mochila, que jamais receberia de volta. Telefonei ao editor angolano Theo Mesquita, que, muito solícito, me disse o que fazer e ainda me buscou no aeroporto.

Da artista Giselda Leirner, eu levava uma carta de recomendação a Vilém Flusser, filósofo tcheco-brasileiro que eu só conhecia de artigos da revista "Arte em São Paulo".

Qual não foi minha surpresa, algum tempo depois, ao deparar-me com ele estampado na principal revista semanal alemã, "Der Spiegel", em longa entrevista sobre os impactos da revolução eletrônica.

Nascido em Praga, em 1920, Flusser veio ao Brasil em 1940, fugindo do nazismo, e aqui permaneceu até 1972. De volta à Europa, radicou-se no sul da França, vindo a se tornar -especialmente nos países de língua alemã- arauto e pensador das novas mídias.

Eu, que jamais havia cultivado qualquer interesse por aparelhagem técnica, terminei a leitura da matéria decidido a adquirir um computador assim que pudesse.

Após quatro meses estudando alemão e vivendo do dinheiro que trouxera, comecei a me virar com trabalhos temporários. Logo arranjaria emprego no arquivo de uma pequena emissora de TV. A vida tomava curso imprevisto e veloz. No ano seguinte, eu já era um homem casado e pai de família.

Minha filha nasceu em setembro de 1988, trazendo consigo -graças às benesses do Estado social alemão- a quantia necessária para que eu comprasse meu primeiro computador: um PC 386, com 4 MB de RAM e 80 MB de disco rígido.

Flusser logo respondeu a carta que lhe enviei. Colocou-me a par da mostra "Em uma Palavra!", sobre poesia e música visuais, organizada por Dietrich Mahlow.

Só vim a encontrá-lo no início de 1990, quando esteve em Munique para falar no museu Villa Stuck. Encontramo-nos no saguão do hotel. Estava com amigos, aos quais me apresentou como "poeta concreto brasileiro". A conversa não chegou a deslanchar, atrapalhada por constantes interrupções.

Irritou-se quando citei que o Rio teria sido cofundado pelo alemão Heliodor Hesse (filho do poeta neolatino Eoban Hesse), que partira de São Vicente, com uma tropa de índios, para socorrer o sobrinho do poeta Sá de Miranda na guerra contra os franceses. Flusser aferrou-se em atribuir a Villegagnon a fundação da Cidade Maravilhosa!

Perguntou-me se eu escrevia. Como andava reticente com a aplicação desse verbo àquilo que fazia de modo tão não linear, respondi-lhe "não". Ao que retrucou: "Se não escreve, não pensa por si próprio". Uma frase que me acompanha desde então, incômoda, na lembrança.

Por fim, convidou-me a assistir a sua palestra "Sobre o Futuro da Oficina", da qual guardei só a provocativa declaração "os desempregados são os pioneiros do futuro" e o prazer de ter podido vê-lo brilhar em seu elemento natural: a fala.

Em novembro de 1991, finalizei a impressão da plaquete "De Versos", uma série de superfícies em 3D que construí digitalmente a partir da representação gráfica dos quatro esquemas métricos fundamentais da antiguidade -iambo, troqueu, anapesto e dáctilo.

Enviei um exemplar ao filósofo, ansioso por sua reação. Semanas depois, recebi, consternado, o envelope de volta. Custei a decifrar o motivo da devolução, displicentemente grafado à mão: "Falecido".

Flusser morreu no exato dia em que eu lhe fizera a remessa, 27 de novembro de 1991, num acidente de carro em que foi a única vítima, por estar sem o cinto de segurança, ao retornar de uma viagem a sua cidade natal.

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