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O fio tênue da ficção

Uma leitura de 'Mrs. Dalloway'

RESUMO A série de textos que a "Ilustríssima" apresenta em primeira mão traz trecho do posfácio de Alan Pauls para "Mrs. Dalloway", de Virginia Woolf, romance que ganha nova tradução pela Cosac Naify, por Claudio Alves Marcondes, no dia 26. Pauls vê aproximações e diferenças entre o romance de Woolf e "Ulisses".

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ALAN PAULS

TRADUÇÃO HELOISA JAHN

Hoje lemos "Mrs. Dalloway" como um exemplo acabado de ficção modernista. Quando o romance foi publicado, em 1925, um ano depois de "A Montanha Mágica" de Mann e três depois do "Ulisses "de Joyce, estava longe de dar essa impressão. A rigor, estava longe de ser algo muito definido.

Seus detratores, que não eram poucos, não lhe recriminavam tanto uma identidade indigna quanto uma certa invalidez, um conjunto de insuficiências ou impossibilidades, e lhe recusavam inclusive direito de assento na literatura clamando: "Isso não é arte!".

O que intriga, no caso, é que o diagnóstico de obra deslocada, doente, fora do lugar, também tolda os aplausos esporádicos que o romance de Virginia Woolf recolheu entre seus partidários. (O fato de que recriminação e encômio partilhem fundamentos é um fenômeno singular, comum nas conjunturas históricas em que a revelação do informe e a revolução das formas entram numa relação de sinonímia desconcertante: os anos 20 do século 20, por exemplo.)

Sem tomar minimamente partido, por exemplo, o jornal "New Statesman" abre um parêntese em suas reticências e louva "a qualidade cinematográfica" de "Mrs. Dalloway". O joveníssimo Richard Hughes compara a obra à pintura de Cézanne. No melhor dos casos, portanto, eram as correrias exogâmicas do romance, suas incursões no cinema ou na vanguarda das artes plásticas, nunca sua competência literária, o que parecia caracterizá-lo e dar-lhe algum valor.

"Mrs. Dalloway" fazia a maior impertinência que um livro é capaz de fazer: criava o alvo ao mesmo tempo em que cravava a flecha em seu centro. Por isso era difícil apreciar sua pontaria. Por isso, porque o alvo era tão insólito quanto a flecha e porque Woolf não havia recorrido ao escândalo para acertar erguendo a voz, como preferiam fazer alguns de seus contemporâneos, mas antes ao procedimento oposto, perturbando com uma sutileza evanescente e travessa, tão leve que nem sequer parecia premeditada, os limites da ficção e da própria identidade do romance.

Mesmo Woolf, um pouco atormentada pela reserva com que a crítica recebeu "Mrs. Dalloway", hesitava quanto à maneira de se referir à obra. Em seus "Diários", escrevia: "Acho que vou inventar uma nova designação para meus livros, em lugar de 'romance'. Um novo de Virginia Woolf. Mas o quê? Elegia?"

Hoje lemos como o cúmulo do literário um romance ao qual em sua época foi recusado o ingresso na literatura; um romance que nascia desafiando a ideia de que fosse possível existir algo como "o literário", com suas fronteiras, suas alfândegas e sua polícia de migrações. "Mrs. Dalloway" não é o primeiro caso nem será o último.

Talvez a história da literatura, tal como a da arte em geral, não seja senão a história dessas reviravoltas, desses processos de repatriação que determinam que uma coisa que em determinado momento encarnava o exterior radical de uma disciplina artística passe, com o tempo, a encarnar seu núcleo íntimo, sua interioridade mais representativa e exemplar.

IMPASSE Em meados dos anos 1920, Woolf não está inteiramente sozinha nesse impasse.

"Ulisses" acaba de entreabrir a porta pela qual ela se introduzirá na ponta dos pés, com os sapatos na mão. Na verdade, ela está lendo o romance de Joyce em agosto de 22, quando conclui "Mrs. Dalloway em Bond Street", um texto de meia dúzia de páginas que retoma e instala no centro de Londres os dois personagens de "A Viagem" (o casamento de Clarissa e Richard Dalloway) e que será o embrião, quase as primeiras 20 páginas, de "Mrs. Dalloway".

Há vários meses T. S. Eliot insiste na importância do calhamaço de Joyce, mas Woolf -osso duro de roer- não se convence. As primeiras 200 páginas a divertem, intrigam, desiludem. Um mês depois, concluiu sua leitura e cospe seu veredicto: "Um fiasco".

Sua opinião: "O livro é difuso. É insosso. É pretensioso, a obra de um trabalhador autodidata". Seu repertório de truques, sua vontade de impressionar, seus excessos de autoconsciência a irritam. Reconhece que foi atingida por "uma saraivada de chumbo miúdo", mas observa que o leitor não é atingido por "um disparo mortal em pleno rosto". Passado algum tempo, depois de ler uma resenha favorável publicada no "The Nation", matiza um pouco sua opinião e encontra um diagnóstico que fala quase tanto de seu próprio destino quanto do de Joyce: "Talvez a plena beleza de escrever nunca se revele aos contemporâneos".

Muitos fatores contribuem para sua reserva em relação ao "Ulisses": a origem de classe (fonte do desdém com que proletariza Joyce), certa cultura do pudor (especialmente alérgica ao exibicionismo joyciano), o imaginário "feminino" da modéstia, da graça e do acaso (tão hostil às pirotecnias literárias).

O único fator de que Woolf não parece ter nenhuma consciência é a especularidade. Woolf lê Joyce e é como olhar num espelho que anuncia o que está por vir. Lê no "Ulisses" a versão viril, empolada, narcisista do programa que ela mesma adotará em "Mrs. Dalloway" e mais tarde radicalizará em "Entre os Atos" e "As Ondas".

Não se trata, a rigor, de uma paternidade. O antecedente imediato de "Mrs. Dalloway" é o conto "Mrs. Dalloway em Bond Street", no qual Clarissa sai para comprar luvas para a festa que oferecerá naquela noite e evoca, a caminho da loja, a notícia da morte de um jovem promissor comentada na véspera numa recepção diplomática.

O mediato se reporta a 20 anos antes, a uma obra de teatro que Woolf planejava escrever a partir de uma ideia muito simples e abstrata (muito explorada, por outro lado, por certo cinema contemporâneo): "Os personagens serão um homem e uma mulher -eles vão crescer -nunca vão se encontrar -nunca chegarão a se conhecer- mas o tempo todo você sente que eles estão cada vez mais próximos um do outro. Toda a tensão estará nisso."

CÂMERA "Mutatis mutandis", esse é o conceito de "Mrs. Dalloway", romance em estéreo que acompanha de perto, quase a incitá-los com a insídia de uma câmera na mão, os percursos independentes de Clarissa Dalloway (Lady mundana de Westminster, casada com um parlamentar conservador, que não sabe pensar, nem escrever, nem sequer tocar piano: somente dar festas) e Septimus Warren-Smith (ex-soldado, vítima de um trauma de guerra, que fala com os mortos, acredita que as árvores estão vivas e anuncia em viva voz o plano que rumina há meses: suicidar-se).

Clarissa e Septimus partilham uma cidade, ruas, parques, incidentes, blocos de tempo, e estabelecem estranhas relações poéticas (consonância, repercussão, rima, inversão), mas nunca chegam a tocar-se, da mesma forma como Leopold Bloom e Stephen Dedalus, os personagens centrais do "Ulisses", se medem, se refletem e se ignoram no mapa de Dublin.

Mesmo não sendo paterna, a marca de Joyce é flagrante: ela imprime a "Mrs. Dalloway" uma estrutura espaço-temporal precisa (tal como a do "Ulisses", a ação do romance de Woolf se caracteriza pela unidade de tempo e de lugar: circunscreve-se a um único dia -uma quarta-feira de junho de 1923 - e a um espaço público: o centro da cidade de Londres) e uma dinâmica particular (a deambulação, a travessia, a trajetória urbana), impõe-lhe um material (a vida comum do lugar comum por excelência: a cidade moderna) e uma técnica literária (o stream of consciousness, que Woolf reformula à sua maneira, cindindo-o a golpes de montagem e miscigenando-o com as indeterminações alucinadas do discurso indireto livre).

E contudo uma outra coisa em "Mrs. Dalloway" resiste a seu precursor irlandês imediato, uma espécie de indiferença radical, ao mesmo tempo inconfundível e delicada, como se a poética de Woolf -que encontra aqui sua primeira realização categórica- fosse ao mesmo tempo mais e menos que a de Joyce, sua superação e seu empobrecimento.

Essa diferença põe em jogo uma certa arte da desproporção: uma defasagem, digamos, entre a língua e o mundo. Os contemporâneos de Woolf (e mesmo a própria Woolf), uma vez mais, só conseguiram perceber essa singularidade de modo negativo, como se fosse um déficit e não a formidável potência que é.

Lytton Strachey descreve-a muito bem quando conclui a leitura do romance. Amigo íntimo, leitor confiável, parceiro e sócio pleno do falanstério artístico-amoroso de Bloomsbury, o autor de "Eminentes Vitorianos" situa nessa singularidade os problemas que, a seu ver, fazem de "Mrs. Dalloway" uma obra ratée, aquilo que Woolf traduz para o idioma de sua própria susceptibilidade como "um livro que parece um tanto oco", "uma pedra com fissuras".

Strachey utiliza a palavra "discrepância": uma espécie de abismo intransponível entre o "ornamento (extremamente belo)" e "o que acontece" no livro (coisas de caráter "bem comum", "sem importância").

Malgrado toda sua admiração, mais a perspicácia e a boa vontade com que lê o livro, Strachey, que opina que "Mrs. Dalloway" tem "mais gênio que tudo o que [Woolf] já escreveu", reproduz em seus senões a argumentação padrão com que a época antagoniza a poética de Woolf: excesso de técnica e de arrumação, deslumbramento verbal, exibição de virtuosismo retórico que gira no vazio.

Na poética de Woolf -e nesse ponto o lúcido Strachey parece estar de acordo com seus contemporâneos mais obtusos- há palavras demais e realidade de menos.

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