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O desertor

ISAAC BÁBEL

TRADUÇÃO NIVALDO DOS SANTOS

ILUSTRAÇÃO ANDRÉS SANDOVAL

O capitão Gémier era um homem superior e também um filósofo. No campo de batalha não conhecia vacilações, na vida cotidiana sabia perdoar pequenas ofensas. Diz muito de um homem o fato de não se ofender com pequenas coisas. Ele amava a França com um afeto que devorava seu coração, por isso seu ódio aos bárbaros que profanavam sua velha pátria era inextinguível, implacável, duradouro como a vida.

Que mais dizer sobre Gémier? Ele amava sua mulher, fez de seus filhos bons cidadãos, era um francês patriota, erudito, parisiense e amante das coisas belas.

E eis que em uma manhã de primavera, radiante e rosada, comunicaram ao capitão Gémier que entre as linhas francesas e as inimigas fora detido um soldado desarmado. A intenção de desertar era evidente, a culpa inegável. Levaram o soldado sob escolta.

- É você, Beaugé?

- Sou eu, capitão - respondeu o soldado, prestando continência.

- Você aproveitou a aurora para tomar ar fresco?

Silêncio.

- C'est bien. Deixem-nos.

A escolta retirou-se. Gérmier trancou a porta à chave. O soldado tinha vinte anos.

- Você sabe o que o espera, não? Voyons, explique-se.

Beaugé não ocultou nada. Ele disse que estava farto da guerra.

- Estou farto da guerra, mon capitaine! Granadas me impedem de dormir pela sexta noite...

A guerra lhe era repugnante. Ele não ia trair, ia entregar-se. Em uma palavra, aquele pequeno Beaugé foi inesperadamente eloquente. Disse que tinha apenas vinte anos, mon Dieu, c'est naturel, qualquer um comete erros nessa idade. Ele tinha mãe, noiva, des bons amis. Ele tinha toda a vida pela frente, aquele Beaugé de vinte anos, e corrigirá sua falta perante a França.

- Capitão, o que dirá minha mãe quando souber que me fuzilaram como o último miserável?

O soldado caiu de joelhos.

- Você não me comoverá, Beaugé! - respondeu o capitão. - Os soldados o viram. Cinco soldados assim como você, e a companhia está infectada. C'est la défaite. Cela jamais. Você morrerá, Beaugé, mas eu salvarei sua honra. No Quartel-General não será conhecida sua desonra. À sua mãe informarão que você caiu no campo de batalha. Vamos.

O soldado seguiu atrás do superior. Quando eles chegaram ao bosque o capitão parou, sacou o revólver e estendeu-o a Beaugé.

- Eis o modo de fugir ao tribunal. Mate-se, Beaugé! Eu voltarei em cinco minutos. Tudo deve estar terminado.

Gémier retirou-se. Nem um único som quebrou o silêncio do bosque. O oficial voltou. Beaugé o esperava encurvado.

- Eu não consigo, capitão - murmurou o soldado. - Faltam-me forças.

E iniciou-se aquela mesma ladainha: a mãe, a noiva, os amigos, a vida adiante...

- Eu lhe dou mais cinco minutos, Beaugé! Não me obrigue a andar sem necessidade.

Quando o capitão voltou, o soldado soluçava estirado no chão. Seus dedos, deitados sobre o revólver, moviam-se frouxamente.

Então Gémier levantou o soldado e disse, olhando-o nos olhos, com uma voz suave e cordial:

- Meu amigo Beaugé, talvez você não saiba como se faz isso.

Sem se apressar, ele tirou o revólver das mãos úmidas do jovem, afastou-se três passos e atravessou-lhe o crânio com um tiro.

Esse acontecimento foi relatado no livro de Gaston Vidal. E realmente, o soldado chamava-se Beaugé. É verdade que eu dei o nome Gémier ao capitão sem ter certeza absoluta. O conto de Vidal é dedicado a um certo Firmen Gémier, "em sinal de profunda consideração". Penso que a dedicatória é suficiente. Decerto o capitão chamava-se Gémier. E depois, Vidal declara que o capitão era realmente um patriota, soldado, bom pai e um homem que sabia perdoar as pequenas ofensas. E isto não é pouco para um homem: saber perdoar as pequenas ofensas.

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