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Rasgação de seda

Clérambault e a tara pelos tecidos

RESUMO Livro perfila vida e obra do proeminente psiquiatra francês que emprestou seu nome à síndrome de Clérambault, obsessão amorosa tematizada em romance de Ian McEwan. Textos sobre a paixão erótica dos tecidos na mulher, histeria descrita pelo médico, constituem interessante capítulo da história da psiquiatria.

VIVIAN WHITEMAN

Em novembro de 1934, o psiquiatra francês Gaëtan Gatian de Clérambault, torturado por problemas de visão, ajeitou a poltrona de seu quarto diante de um espelho, em casa, nas imediações de Paris. Sentou-se nela segurando um revólver e deu tiro na boca. Deixava uma obra que se tornaria relevante para o diagnóstico das psicoses e para os rumos da psicanálise.

Sua carta de suicídio, confusa e carregada de culpa, está nos anexos de  "O Grito da Seda - Entre Drapeados e Costureirinhas: a História de um Alienista Muito Louco" [trad. Tomaz Tadeu, Autêntica, 160 págs., R$ 34].  O título de filme da "Sessão da Tarde" esconde um livrinho precioso que registra o legado único do dr. Clérambault (1872-1934).

As "costureirinhas" eram ladras de retalhos e roupas de seda. Flagradas roubando em lojas de tecidos, elas eram presas e levadas para o setor de psiquiatria da chefatura de polícia de Paris, onde Clérambault trabalhou de 1902 até morrer. O lugar reunia "a legião dos devastados de sempre das 'folies génitales' [loucuras genitais]", nas palavras de um ex-diretor da casa: "Os sádicos, os masoquistas, os fetichistas, os onanistas e os erotômanos de todas as espécies".

Comandante do departamento, Clérambault desenvolveu seu peculiar método de interrogatório, suas principais teorias e análises de caso. O livro reúne textos centrais de sua obra, como aqueles de 1908 e 1910, intitulados "Paixão Erótica dos Tecidos na Mulher".

As pacientes roubavam, segundo constata o médico, por um prazer específico, do qual faziam parte o ato do crime e o contato sensorial da seda com a pele e genitália. "A seda tem um fru-fru, tem um cri-cri que me faz gozar", diz o depoimento de uma delas, que "fez vários furtos em lojas de departamentos", registra o alienista.

Em comum, as pacientes tinham sintomas de histeria e problemas familiares. A relação delas com a seda tinha, evidentemente, caráter sexual. O objeto -retalhos ou vestidos inteiros- era escolhido segundo critérios como espessura, toque e até ruído que produzia quando roçado no corpo. Uma delas chega a ouvir o grito da seda, que dá o título à obra e a um filme de 1996, sobre a vida do psiquiatra.

DRAPEADOS Além desses textos e de artigos do psiquiatra espanhol José María Álvarez e da psicanalista francesa Danielle Arnaux, o livro traz uma comovente carta, na qual Clérambault descreve sua cirurgia de catarata, e seus curiosos textos etnográficos, fruto de extensa pesquisa iniciada no Marrocos, em 1910, sobre a técnica árabe de drapear tecidos.

Ao descrever a "tecnologia do drapeado", ele pormenoriza um esquema que parte de "um ponto de apoio inicial" do tecido (ombros e quadris) e de um "movimento gerador" (gestos que formam as dobras). Na teoria do "automatismo mental" (1927), observa Arnoux, Clérambault faz um paralelo entre a psicose e a técnica de drapear: ambos se estabelecem num ponto de apoio que seria um fenômeno mental neutro. Este, depois, seria formatado por um delírio temático -uma fantasia de perseguição, por exemplo. As "dobras" do tecido (o conteúdo delirante) podem ser diversas e bastante específicas.

EROTOMANIA A erotomania é uma síndrome altamente roteirizável: envolve amor, perseguição, é coisa de cinema e de romance best-seller. Ela também se sustenta somente a partir de um ponto de apoio, de um "ombro", que ele chama de "postulado inicial" -por exemplo, "ele me ama". E, a partir dele, faz brotar uma estrutura de "drapeados", curvas complexas e verdadeiros nós cegos.

Não por acaso, a patologia nasceu, em meio a relatos de crimes, da cabeça de um psiquiatra com ares de delegado. Clérambault não tratava, só diagnosticava, e por isso tinha pressa em dar nome aos problemas dos pacientes.

De maneira muito criticada, procurava arrancar confissões, como se arranca de um assassino a confirmação do homicídio, sem preocupações com os desdobramentos da situação dos doentes. Alinhavam-se de modo interessante a faceta do pesquisador de olhar delicado e a do psiquiatra durão, que interrogava psicóticos com modos policialescos.

Os métodos psiquiátricos de então despertaram a ira do escritor surrealista André Breton. Em seu romance "Nadja" (1927), dedicado a uma doente mental que vagueia por Paris, Breton faz um ataque aos alienistas que prefigurou as recentes campanhas antimanicomiais. Clérambault saiu em defesa da classe e escreveu: "A difamação constitui uma parte essencial dos riscos profissionais do alienista".

ROMANESCO O escritor britânico Ian McEwan captou o potencial policial-romanesco da erotomania em seu romance "Enduring Love" (1991), que já teve duas edições no Brasil: "Amor para Sempre" [Rocco, 1999] e  "Amor sem Fim" [trad. Jorio Dauster, Companhia das Letras, 2011, 292 págs.,R$ 46].  O best-seller ganhou versão cinematográfica pelo "007" Daniel Craig, sem o mesmo êxito.

Mas o que é, afinal, a erotomania? Uma psicose em que o doente fantasia, com certeza inabalável e resistente a todas as evidências contrárias, que é amado por alguém, em geral de posição social superior, muitas vezes famoso, que volta e meia nem sabe da existência do afetado pela síndrome.

George 5º tinha uma "fã" erotomaníaca. Ela era francesa e jamais trocou uma palavra com o monarca britânico em toda a sua vida. No entanto, cruzou diversas vezes o canal da Mancha: ficava plantada na porta do Palácio de Buckingham, esperando, e dizia que todos sabiam que o rei a amava, os dois só não eram vistos juntos pois ele era casado e havia o protocolo real. Via sinais "enviados" a ela em fotos, discursos, no comportamento da guarda real e no que mais botasse os olhos.

Da mesma forma, em manifestações contemporâneas o erotomaníaco pode acreditar que seu objeto de desejo (uma celebridade, por exemplo) lhe envia "recados" expressos nas cores das roupas, em declarações à imprensa etc.

A erotomania atinge mais as mulheres, que não raro permanecem até morrer no estágio da esperança. Os casos que afetam homens têm mais chances de descambar para ameaças e atentados. Além disso, alvos de erotomaníacos não raro desenvolvem distúrbios psicológicos decorrentes do estresse a que são submetidos.

No romance, um cientista torna-se alvo do amor erotomaníaco de um jovem recluso, religioso fervoroso com quem o protagonista troca frases na cena de um acidente que ambos presenciam.

Joe, o cientista ultrarracional e cético, é casado com uma pesquisadora obcecada pela obra do poeta John Keats (1795-1821). A relação passa por uma crise velada pois a moça não pode ter filhos. Jed Parry, o vilão maníaco, inicia uma escalada de perseguição a seu amado. A trama se desenvolve segundo os estágios clínicos da erotomania descritos por Clérambault: esperança, despeito e rancor.

O psicótico começa crente que seu amor um dia será retribuído. Depois, começa a nutrir sentimentos duplos, fazendo pouco do desprezo de seu amado, oscilando entre amor e ódio. Por fim, ressente-se e, em casos como o do livro, pode ficar violento. O mais interessante da síndrome é o modo como o doente parte do postulado inicial e a partir dele reorganiza o mundo para sustentá-lo.

Mesmo diante de desmentidos expressos e desprezo verbalizado de seu alvo, o doente cria explicações para que essas recusas sejam convertidas em "sinais" de que é amado por quem o persegue.

O trabalho de Clérambault é de fato intrigante. Sua obsessão pelo detalhe tem algo de detetive. Jacques Lacan, que foi aluno de Clérambault na chefatura dos "alienados", deu ao psiquiatra o crédito de ter sido seu primeiro grande mestre e ter influenciado sua teoria das psicoses, apesar de todas as divergências posteriores.

O livro de McEwan termina com um relato psiquiátrico sobre o "vilão" Jed Parry. Seu relatório mostra como o caso se encaixa no esquema da erotomania, exceto por um detalhe: Parry, quando faz o contato mínimo que o liga ao cientista, diz o texto, não teria como saber que aquele homem tinha uma posição/status superior ao seu.

Ora, o cientista e sua mulher frequentam o círculo intelectual de Londres. Na trama, passam por festas e jantares chiques, moram numa casa elegante. Parry não sabe disso quando o vê pela primeira vez. Mas há mais indícios.

O cientista é descrito como um intelectual meio almofadinha que, ao encontrar seu antagonista pela primeira vez, acabara de buscar a mulher no aeroporto, após uma longa viagem (quem iria desarrumado?) e um piquenique com ela, comprado num restaurante fino.

Na descrição de Joe, ele está no campo com a mulher, de camisa, enquanto Parry, um magrelo desempregado, usa jeans, rabo de cavalo e tênis com cadarços vermelhos. Os demais envolvidos são agricultores, um médico e um engenheiro.

Não é preciso ser genial para imaginar como as roupas do grupo dariam ao menos uma pista sobre a posição social de cada um. Clérambault, atento às "falas" da roupa, não deixaria essa passar. Elementar, meu caro McEwan.

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