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Imaginação

prosa, poesia e tradução

O mapa e o território

MICHEL HOUELLEBECQ

TRADUÇÃO ANDRÉ TELLES

O TRABALHO DE JED Martin foi muitas vezes apresentado como decorrente de uma reflexão fria e distanciada sobre a condição do mundo, e ele se viu transformado numa espécie de herdeiro dos grandes artistas conceituais do século precedente.

Foi, porém, num estado de frenesi que comprou, tão logo chegou a Paris, todos os mapas Michelin que viu pela frente -um pouco mais de 150.

Na manhã do vernissage, percebeu que fazia um mês que não pronunciava uma palavra, à exceção do "não" que repetia diariamente a moça do caixa (raramente a mesma, é verdade) quando esta lhe perguntava se ele tinha o cartão Club Casino, mas, mesmo assim, a hora marcada pôs-se a caminho da rue Boissy-d'Anglas.

Havia talvez umas cem pessoas, enfim, nunca fora bom nesse tipo de cálculo e, em todo caso, eram dezenas de convidados, e no início Jed mostrou certa preocupação ao constatar que não conhecia ninguém. Receou, por um instante, ter se enganado de dia ou de exposição, mas seu trabalho fotográfico estava de fato ali, pendurado numa parede no fundo, corretamente iluminado.

Após servir-se de um copo de uísque, deu várias voltas pela sala, descrevendo uma trajetória elipsoidal, fingindo-se mais ou menos absorto em suas reflexões, ao passo que seu cérebro não conseguia gerar nenhum pensamento, apenas surpresa ante o fato de que a imagem de seus ex-colegas também havia evaporado completamente de sua memória, apagada, radicalmente apagada; deviam estar perguntando se ele pertencia ao gênero humano. Teria ao menos reconhecido Geneviève, sim, estava certo de que teria reconhecido a ex-namorada, eis uma certeza à qual podia se agarrar.

Concluindo seu terceiro périplo, Jed observou uma jovem a contemplar suas fotos com grande atenção. Teria sido difícil não notá-la: não apenas era de longe a mulher mais bonita da noite como sem dúvida a mulher mais bonita que já vira. Com a pele bem clara, quase translúcida, os cabelos louros platinados e as maçãs do rosto salientes, correspondia exatamente à imagem da beleza eslava tal como popularizada pelas agências de modelos e revistas após a queda da União Soviética.

Na volta seguinte, ela não estava mais ali; tornou a avistá-la lá pela sexta volta, sorridente, com uma taça de champanhe na mão, no meio de um grupinho. Os homens devoravam-na com os olhos com uma avidez que nem sequer tentavam dissimular; um deles ficava simplesmente boquiaberto.

Quando passou novamente, na volta seguinte, diante de suas fotos, lá estava ela, agora sozinha. Hesitou por um instante, fez então uma tangente e plantou-se, por sua vez, em frente à imagem, a qual considerou, balançando a cabeça.

Ela se voltou para ele e olhou-o pensativamente durante alguns segundos antes de perguntar:

-É o senhor o artista?

-Sou.

Ela tornou a olhar para ele, mais detidamente, durante pelo menos cinco segundos, antes de dizer:

-Acho muito bonito.

Dissera aquilo com simplicidade, calmamente, mas com genuína convicção. Sem encontrar uma resposta apropriada, Jed voltou o olhar para a imagem. Tinha de admitir que, de fato, estava bastante satisfeito com ela. Para a exposição, escolhera uma parte do mapa Michelin do Creuse na qual figurava o vilarejo de sua avó.

Utilizara um ângulo de tomada bastante inclinado, a 30 graus da horizontal, ajustando o obturador no máximo para obter ampla profundidade de campo. Depois é que introduzira a imprecisão da distância e o efeito azulado no horizonte, utilizando camadas do Photoshop.

No primeiro plano estavam o lago do Breuil e o vilarejo de Châtelus-le-Marcheix. Atrás, despontando como um território de sonho, feérico e inviolável, estradinhas serpenteavam através da floresta entre as aldeias de Saint-Goussaud, Laurière e Jabreilles-les-Bordes. Ao fundo e à esquerda da imagem, como que emergindo de um lençol de bruma, distinguia-se ainda nitidamente a linha branca e vermelha da autoestrada A20.

-Faz muitas fotografias de mapas rodoviários?

-Sim... Sim, com bastante frequência.

-Sempre Michelin?

-Sim.

Ela refletiu por alguns segundos antes de lhe perguntar:

-Fez muitas fotos nesse gênero?

-Um pouco mais de 800.

Dessa vez, ela fitou-o, visivelmente atordoada, durante pelo menos 20 segundos, antes de prosseguir:

-Precisamos conversar. Precisamos nos encontrar para falar sobre isso. Pode achar estranho, mas... eu trabalho na Michelin.

De uma minúscula bolsa Prada, puxou um cartão de visita, que ele considerou estupidamente antes de guardar: Olga Sheremoyova, Departamento de Comunicação, Michelin France.

SOBRE O TEXTO A série de textos que a "Ilustríssima" apresenta em primeira mão traz trecho do romance "O Mapa e o Território", que rendeu ao francês Michel Houellebecq o Prêmio Goncourt de 2010 e também uma polêmica envolvendo trechos copiados da Wikipédia. O livro, que sai pela Record no início do mês que vem, conta a história de Jed Martin, artista famoso por fotografar mapas da Michelin e que se envolve num suspense depois de pedir a um fictício Houellebecq que escreva o texto para o catálogo de uma das suas mostras.

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