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Inédito

Os caçadores de Vênus

A obsessiva busca pelas medidas do céu

ANDREA WULF
TRADUÇÃO VANIA CURY

No dia 30 de abril de 1760, aos 72 anos, Joseph-Nicolas Delisle, astrônomo oficial da Marinha francesa, dirigiu-se a uma reunião da Académie des Sciences, em Paris. Todas as quartas-feiras, os acadêmicos que atuavam nos campos da matemática e da astronomia se reuniam ali para discutir experimentos, projetos e pesquisas em curso.

Delisle precisou percorrer apenas uma pequena distância. As salas da academia ficavam no Louvre, a cerca de um quilômetro e meio, cruzando o Sena, de seu pequeno observatório no Hôtel de Cluny, centro administrativo da Marinha real.

[...] A dissertação que Delisle estava prestes a apresentar colocaria os acadêmicos em ligação direta com o maior projeto científico já planejado. Ele pediria aos colegas que aceitassem o desafio lançado por Edmond Halley, há 44 anos: dar vida a uma colaboração internacional destinada a observar o trânsito de Vênus, em vias de acontecer no ano seguinte, no dia 6 de junho de 1761.

Halley havia exposto a ideia revolucionária de que o trânsito de Vênus poderia ser utilizado como um instrumento astronômico natural -quase um parâmetro celestial. Se inúmeras pessoas ao redor do mundo assistissem simultaneamente ao trânsito completo o mais distante possível uns dos outros, ele explicou, cada qual veria Vênus passando na frente do Sol ao longo de uma trilha levemente distinta -dependendo das locações dos observadores, nos hemisférios norte e sul. O percurso de Vênus seria menor ou maior de acordo com cada uma das estações de observação.

Com a ajuda da trigonometria, esses percursos distintos (e as diferenças na duração do trânsito de Vênus) poderiam então ser utilizados para calcular a distância entre o Sol e a Terra. Era um método engenhoso, porque a passagem não tinha de ser "medida", mas apenas cronometrada -pela observação do exato momento da entrada e da saída de Vênus do disco do Sol. Os únicos equipamentos necessários para os observadores seriam um bom telescópio com lentes coloridas e escurecidas (para proteger da claridade) e um relógio confiável.

Desde a convocação à ação de Halley, em 1716, os astrônomos vinham tentando encontrar outras formas de medir o sistema solar. No começo da década de 1750, cientistas franceses haviam tentado calcular a distância entre a Lua e a Terra, com observações feitas simultaneamente na Cidade do Cabo e em Berlim. Observando a Lua dessas duas locações e com a ajuda da triangulação, eles acalentaram a esperança de medir o céu antes do trânsito de Vênus -mas os resultados não foram precisos o suficiente.

Durante anos, Delisle acreditou que poderia empregar o método de Halley para os trânsitos mais frequentes de Mercúrio -ele e outros astrônomos tinham observado vários deles-, mas acabou percebendo que Mercúrio ficava muito perto do Sol. Só o trânsito de Vênus ofereceria a oportunidade para fazer o cálculo.

OBSESSÃO

A tarefa de coordenar as observações do trânsito feitas em tantos lugares distintos demandaria um tipo muito particular de indivíduo -alguém tão tenaz, persistente e determinado que fosse capaz de unir astrônomos concorrentes e até nações em guerra.

Não havia ninguém melhor do que o próprio Delisle. Obsessivo, dedicava pouco tempo a qualquer outra coisa além da busca da ciência, devotando a vida às estrelas. Possuidor de um conhecimento enciclopédico e de uma ética do trabalho feroz, era um dos astrônomos mais respeitados da Europa.

Durante 22 anos, ele trabalhou em São Petersburgo, introduzindo a Rússia no estudo da astronomia, ao instalar um observatório e treinar astrônomos. Ele também transformou a sua viagem à Rússia numa grande turnê -não de arte e arquitetura, mas de homens científicos.

Em Londres, conheceu o velho Halley, em 1724, e discutiu com ele o trânsito de Vênus. Agora, que já tinha se tornado um viúvo idoso, Delisle vivia em Paris e passava a maior parte do tempo entre o Collège de France, onde residia e ensinava astronomia, e o seu observatório no Hôtel de Cluny, que ficava bem em frente.

[...] Nos anos que precederam o trânsito, Delisle estudou as tabelas astronômicas de Halley e concluiu que o astrônomo britânico estava ligeiramente equivocado -não em sua predição ou no chamado à ação, mas na escolha das melhores locações para realizar a observação do trânsito. O sucesso das medições dependeria das escolhas certas sobre as estações de visão.

Quando Delisle apresentou seu plano e explicou onde Vênus apareceria, seus colegas acadêmicos foram conduzidos a uma viagem imaginária pelo mundo -de Pondicherry, na Índia, a Vardo, no Círculo Ártico, de Pequim a Paris. Halley previra que o trânsito visto da baía de Hudson, no continente norte-americano, seria 18 minutos mais curto do que nas Índias Orientais.

Mas, como Delisle informou a seus colegas acadêmicos, ele encontrou "resultados muito diferentes dos do senhor Halley". Segundo as próprias previsões, Delisle alegou que o trânsito seria apenas dois minutos mais curto na baía de Hudson -não suficientes para ajudar os cálculos- e, de qualquer maneira, a maior parte dele ocorreria durante a noite.

A maior diferença nas cronometragens poderia ser alcançada se as locações nos hemisférios norte e sul fossem postas em pares. Delisle sugeriu que Tobolsk, na Sibéria, era uma escolha ideal, assim como o Cabo da Boa Esperança -o tamanho da duração do trânsito, conforme observado dessas posições, diferiria em mais de 11 minutos. A fim de tornar a seleção mais fácil, ele apresentou um mapa do mundo, o seu assim chamado "mapa-múndi".

[...] Ao examinarem o mapa, os cientistas logo perceberam as melhores locações, embora ficasse claro que muitas delas eram bem distantes e de difícil acesso. O trânsito completo poderia ser visto na China, na Índia e nas Índias Orientais, assim como próximo ao Círculo Ártico, no norte da Escandinávia e na Rússia -sendo que a locação da Sibéria experimentaria o trânsito mais curto, e as Índias Orientais, o mais longo.

A apresentação de Delisle aos colegas, na Académie des Sciences em Paris, era parte de uma campanha bem mais ampla. Ele mandara imprimir seu mapa e as explicações do trânsito, a fim de enviá-los para seus contatos internacionais -mais de 200 cientistas e astrônomos em Amsterdã, Basle, Florença, Viena, Berlim, Constantinopla, Estocolmo, São Petersburgo e inúmeras cidades da França.

Ao mesmo tempo, os jornais franceses anunciavam e descreviam o mapa, trazendo a discussão sobre o trânsito para o domínio público. Delisle demonstrou ser um discípulo valioso de Halley. O seu mapa-múndi havia sido recebido por todo astrônomo em atividade da Europa e publicado em diversos periódicos científicos. Delisle não conseguia pensar em mais nada -seus aposentos no Collège de France, em Paris, haviam se transformado na sala de controle do projeto e na agência coletora de todas as comunicações a ele relacionadas.

BURROS DE CARGA

Até que Delisle pedisse a seus colegas astrônomos que organizassem as suas expedições para o trânsito, a maior parte deles tinha vivido uma vida de infindáveis rotinas tediosas: passando as noites de frio ao relento ou engajando-se em cálculos matemáticos complexos.

[...] A descrição do cargo para astrônomo-assistente, no Observatório Real de Greenwich, era tristemente honesta: buscavam-se homens que fossem "infatigáveis no trabalho duro e, acima de tudo, burros de carga obedientes" -normalmente, essas características e requisitos não costumavam ser associadas aos viajantes que corriam o mundo e aos exploradores heroicos.

Era um esforço audacioso; e agora, com o envio das petições e faltando pouco mais de um ano para o trânsito acontecer, chegara a hora de Delisle coordenar as observações e decidir quem iria para onde. Tendo em vista que o alcance comercial dos países europeus se estendia por todo o globo, fazia sentido utilizar as rotas coloniais existentes para viajar rumo às locações mais remotas.

Halley já tinha sugerido a exploração das possessões imperiais de cada país, aconselhando os ingleses a viajarem para a baía de Hudson e para a Índia, os franceses para as suas plantations em Pondicherry e os holandeses para o seu entreposto comercial de Jacarta -e Delisle aquiesceu.

Para os astrônomos, os trânsitos ofereciam a possibilidade de revelações científicas e de uma nova compreensão do universo. Mas eles também sabiam que havia outras oportunidades apresentadas pelo projeto que eles poderiam aproveitar. Caso os observadores estacionados ao redor do mundo fossem bem-sucedidos, as medidas tiradas por eles também ajudariam a melhorar a navegação -essencial para qualquer império mercantil e potência naval. Pois, lado a lado com o crescimento dos impérios e dos ideais do Iluminismo, o século 18 também se tornara o berço do capitalismo.

À medida que novos mercados importadores e exportadores se espalhavam pelo mundo inteiro, a navegação acurada havia se transformado num ramo da ciência que proporcionava riqueza e poder. Esse fato, como acreditava Delisle, ajudaria a convencer monarcas e governos a financiar pelo menos algumas das expedições.

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