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Crítica

Vidas paralelas

Reflexos nos espelhos de Sontag e Barthes

PAULO ROBERTO PIRES
ILUSTRAÇÃO PAULO MONTEIRO

RESUMO Eruditos e abertos ao pop, a americana Susan Sontag e o francês Roland Barthes formam uma imagem espelhada e complementar da crítica cultural nas décadas finais do século 20. Diários e livros biográficos recém-lançados nos EUA, na França e no Brasil jogam luz sobre a vida e obra de ambos.

Susan Sontag viveu laboriosamente em função de ser Susan Sontag. Intelectual onívora, queria ler tudo, escrever sobre tudo, estar em todos os lugares. Para construir uma poderosa imagem pública, não economizou estridência, pegada pop e temperamento de diva.

Quando despontou, na Nova York do início dos anos 1960, viam-na como uma Mary McCarthy "reloaded". Mas, ao mirar-se no espelho de seu tempo, ela queria era enxergar um reflexo de Roland Barthes, com quem manteve uma prolongada relação de admiração que vingou como poucas nas brechas de seu avantajado ego.

O francês morreu em 1980, aos 64, de um atropelamento que muitos viram como suicídio. Aos 71, em 2004, a americana sucumbiu a uma terceira e violenta recidiva do câncer, que havia se manifestado pela primeira vez na meia-idade. Foram, cada um a seu modo e de lados opostos do Atlântico, duas das últimas encarnações do intelectual livre e independente do ponto de vista estético e político.

Barthes foi dos nomes mais influentes de sua geração, o professor com "p" maiúsculo que postulou uma "ciência dos signos" e jamais completou doutorado, o original intérprete da cultura de massas (em "Mitologias") que não se furtou a virar do avesso instituições literárias como Balzac ("S/Z") e Racine ("Sobre Racine") e chegou ao topo da vida universitária como titular do Collège de France.

Sontag também escanteou o PhD, mas foi presença apenas bissexta em salas de aula. Teve bom olho para a cultura popular, mas seu negócio era o alto modernismo europeu, que apresentava aos EUA não sem uma nota de esnobismo.

Virou cartum da "New Yorker", posou para propaganda da vodca Absolut e tornou-se, um tanto a contragosto, santa padroeira dos "gay studies". Em "Gremlins 2", os monstrinhos revoltados reivindicam: "Queremos civilização: música de câmara, Convenção de Genebra, Susan Sontag!".

Há ainda os pontos de contato anedóticos. E penso no jovem Barthes marcado pela tuberculose (doença estigmatizante que, no ensaio "A Doença como Metáfora", de 1978, Sontag compararia ao câncer que sofreu), nas viagens transformadas em "statements" políticos (ela foi ao Vietnã e a Sarajevo, ambos estiveram na China) e no interesse comum pela fotografia, que resultaram em duas referências na área -"Sobre Fotografia" (1977), e "A Câmara Clara" (1979), o último livro dele.

CRUZAMENTOS Essas vidas paralelas se cruzaram apenas esporadicamente, quanto ambos estavam no auge da carreira, nas décadas de 1960 e 1970. A ele Sontag dedicou dois comoventes textos, que encarnam como poucos sua ideia do ensaio como homenagem, exercício de admiração. Sobre ela, há duas menções ligeiras nas 5.744 páginas que somam hoje as obras completas de Barthes em francês.

A posteridade, proverbial em ironias e crueldade, expôs e continua a expor as dissimetrias na relação entre os dois, mas também seus vínculos mais fortes.

"Barthes, na falta de rótulo melhor, era chamado de crítico; e eu mesma disse que ele foi o 'maior crítico já surgido em qualquer país'. Mas ele merece é ser chamado, de forma mais gloriosa, de escritor. Sua obra é um imenso, complexo e extremamente discreto esforço de autodescrição, mas ele não podia livrar-se de suas ideias", anotou ela em 3 de abril de 1980.

Esse é último ano que cobre o recém-lançado segundo volume de seus diários, *"As Consciouness Is Harnessed to Flesh" [importado, Farrar, Straus and Giroux, 544 págs., R$ 71]* reunindo cadernos e notas produzidos a partir de 1964. O primeiro volume dos diários saiu no Brasil em 2009, pela Companhia das Letras.

David Rieff, seu filho e editor póstumo, sustenta que os diários são a autobiografia possível de uma autora que, apesar do proverbial exibicionismo, era avessa à primeira pessoa confessional.

Publicamente, Sontag preferia dizer-se a partir de outrem, exatamente, aliás, como Roland Barthes: em cada autor de eleição, em cada teoria desenvolvida sobre, por exemplo, o cinema de autor, ou Proust, ambos muito frequentemente falavam sobre si mesmos.

INTIMIDADE Apesar de celebridades, sempre conseguiram resguardar a intimidade.

"Susan Sontag, a Construção de um Ícone", biografia fofoqueira de Lisa Paddock e Carl Rollyson publicada em 2000, foi a investida mais pesada contra a ensaísta, listando namoradas e entrevistando desafetos.

O autor de "Fragmentos do Discurso Amoroso" foi poupado, mas apenas em vida: em 2006, "Les Derniers Jours de Roland Barthes" (os últimos dias de Roland Barthes), do jornalista Hervé Algalarrondo, pinta o retrato de um homem deprimido e às voltas com casos de amor infelizes.

A discrição possível terminou quando os dois tiveram seus papéis íntimos tornados públicos -Sontag vendeu, ela mesma, seu acervo pessoal para a Universidade da Califórnia (UCLA), e Barthes teve seu espólio depositado na Biblioteca Nacional da França. Há, nesses arquivos, inéditos e dispersos, além de muito objeto de cobiça para potenciais biógrafos.

Sontag, por exemplo, é protagonista involuntária de "Dreaming in French: The Paris Years of Jacqueline Bouvier Kennedy, Susan Sontag and Angela Davis" [importado, University of Chicago Press, 272 págs., R$ 71].

No livro, breve e bem pesquisado -um dos primeiros a apresentar os documentos da UCLA-, a professora de literatura Alice Kaplan narra a influência intelectual francesa sobre três mulheres que marcaram de formas distintas a vida pública americana.

Mais interessada em ideias do que em escândalos, Kaplan conta como, depois de ler "Nightwood" (1936) o romance de Djuna Barnes (1892-1982) que virou um culto gay, Sontag abandonou filho e marido para passar a primeira de muitas temporadas em Paris, vivendo como as personagens do livro e namorando uma jovem jornalista, Harriet Sohmers Zwerling.

Na volta, Philip Rieff, que foi seu professor e com quem ela se casou aos 18 anos, a processou por "lesbianismo" numa frustrada tentativa de ter a guarda de David.

VETERANA Dali em diante, Susan Sontag passou quase todos os verões europeus na cidade. Sentiu-se em casa quando chegou, estudante sem um tostão no bolso que frequentava mais cafés do que a universidade, e já era uma veterana parisiense no período em que ocupava um luxuoso apartamento no Quai des Grands Augustins, à beira do Sena.

Foi sepultada no Cemitério de Montparnasse, a poucas quadras do escritor que mais marcou a sua vida, Samuel Beckett, e a poucos passos de Simone de Beauvoir, um modelo de intelectual.

De Barthes, ganham edição brasileira em junho os "Cadernos da Viagem à China", documento da visita que fez ao país em 1974 com o grupo da revista "Tel Quel", então engajado no maoísmo.

Entediado, anotou impressões e comentários e jamais trabalhou o material, tão distante do soberbo livrinho que escreveu em seu outro confronto com o Oriente, "O Império dos Signos" (1970), resultado de uma viagem ao Japão.

O desconforto com a viagem espelhava as dificuldades com o engajamento explícito. Em *"Roland Barthes - Au Lieu de la Vie" [importado, Flammarion, 562 págs., R$ 67]*, extensa e pretensiosa biografia publicada no início do ano, Marie Gil demonstra como a ideia do "neutro", tema de um de seus últimos cursos, percorre toda a vida do crítico.

Não se trata do não engajamento ou de evitar o posicionamento: o neutro tal como Barthes o concebia é uma recusa ativa aos lugares de significação literal ou, como ele dizia, ao cultivo da "atopia", do não lugar, em vez da utopia, de promessa de uma transformação.

Apesar de inflar de interpretações intelectuais o que já havia sido mapeado em "Roland Barthes", biografia de Jean-Louis Calvet publicada em 1990, Marie Gil está engajada num projeto que evita "ler um texto a partir da vida" em benefício de "identificar uma verdade da vida entranhada no texto, na escritura".

De forma mais direta e simplista, Christian Gury parte para cima de Barthes armado de sua escrita militante da causa gay -são quase 30 livros, que tratam de direitos civis a episódios da história literária francesa. Pelo título, *"Les Premiers Jours de Roland Barthes" [os primeiros dias de Roland Barthes, importado, Editions Non Lieu, 231 págs., R$ 36]* pega carona no livro de Algalarrondo, mas prefere a especulação aos fatos.

No texto principal, eivado de "semiotices" típicas dos diluidores de Barthes, Gury investiga como o escritor teria manipulado a narrativa de sua infância para tornar mais "romanesca" a precoce orfandade paterna. Mas há um ensaio "extra" que, curiosamente, abre o volume: nele, o autor conta como conheceu Barthes nas noites do domingo do Arcadie, clube gay que marcou época na França. E tome indiscrição sobre como Barthes se insinuava para os rapazes e para o próprio Gury, que não se furta a publicar trechos de um diário aborrecidíssimo.

SEXUALIDADE Infância e sexualidade estão, aliás, entre os traços fundamentais que unem biograficamente Barthes e Sontag e espelham suas vidas e obras. Ambos foram marcados pela morte do pai -ele com menos de um ano, ela aos cinco- e pela presença ostensiva da mãe, nas versões amorosa e castradora, respectivamente.

O que Barthes nutria pela mãe pode ser aquilatado por "A Câmara Clara", escrito sob encomenda do "Cahiers du Cinéma" e em que, barthesianamente, fala da fotografia para dizer de suas relações com a memória e a morte e, é claro, com a morte de Henriette. Nos diários, Sontag resume o que Mildred lhe legara: "A mulher horrenda estava sempre desafiando meus sentimentos, dizendo o quanto eu a tinha feito infeliz, que eu era 'fria'".

Ao que se saiba, Barthes nunca sustentou um relacionamento conjugal de qualquer forma: há menções a namorados esporádicos. Ele morou com a mãe até a morte dela, menos de três anos antes de ser atropelado.

Da homossexualidade falava por meio de Proust e em vários outros momentos de sua obra, mas recusava a militância própria de sua época. Sete anos depois de sua morte, veio a público "Incidentes", diário da melancólica relação com garotos de programa que seu amigo e editor, François Wahl, disse ter publicado na certeza de que o autor faria o mesmo.

Para desolação de grupos de feministas e homossexuais que nela se inspiraram, Sontag tampouco fez da sexualidade uma bandeira. As namoradas que se sucedem vertiginosamente no diário jamais foram assumidas publicamente, numa blindagem que não poupou nem sua última companheira, a fotógrafa Annie Leibovitz. "Fui salva para a sexualidade -pelo menos parcialmente- pelas mulheres", escrevia ela, apenas privadamente, em 1973, quando uma intelectual de seu perfil facilmente tornaria público esse tipo de reflexão.

"Dos 16 anos em diante, as mulheres me descobriram, me cortejaram, se impuseram a mim emocionalmente e sexualmente. Fui violentada pelas mulheres e não achei isso tão ameaçador. Como sou grata às mulheres -que me deram um corpo, que tornaram possível até mesmo que eu fosse para a cama com homens."

HESITAÇÃO Mas a identidade fundamental entre Barthes e Sontag não está, é claro, em uma relação de causa e efeito entre vida e obra. E o que se pode desentranhar, tanto de uma vida quanto de outra, é uma firme recusa e uma renitente hesitação.

De forma resoluta, ambos se esquivam de um lugar definido na divisão rígida do trabalho intelectual. Não por um acaso, elegem o ensaio como forma privilegiada de expressão e, previsivelmente, são muitas vezes desprezados por sua não especialização.

"Se minha carreira foi universitária, não tenho, entretanto, os títulos que dão geralmente acesso a tal carreira", diz Barthes na aula inaugural do Collège, definindo-se como um "sujeito impuro" em uma tradição de "invenção disciplinada". "E se é verdade que, por longo tempo, quis inscrever meu trabalho no campo da ciência, literária lexicológica ou sociológica", prossegue ele, "devo reconhecer que produzi tão somente ensaios, gênero incerto onde a escritura rivaliza com a análise."

BIFE COM FRITAS Fica clara aí uma identidade sutil entre o analista perspicaz que se ocupou do bife com fritas, do Marquês de Sade e do discurso amoroso, e outra que se embrenhou pela filosofia, Wagner, pornografia e Artaud. "Gênero incerto", o ensaio que Barthes assim define é de tal forma livre que pode aqui e ali dissolver seus próprios limites. E é nesse ponto que ambos chegam à dúvida que marcou profundamente suas obras.

"Está se tornando impossível para mim escrever ensaios", anota Sontag em 1978. "desconsidero a separação (um dogma) entre o ensaio e a ficção. Na ficção, posso fazer o que faço no ensaio, mas não vice-versa".

E, de forma mais surpreendente, a intelectual não poucas vezes arrogante registra em 1980: "Devo desistir de escrever ensaios porque essa prática se torna inevitavelmente uma atividade demagógica. Pareço ser o arauto da certeza que não tenho nem estou perto de ter."

Mais até do que Barthes, que foi ator na juventude e cortejou seriamente o teatro na década de 1950, Sontag experimentou diversas formas de expressão, tendo escrito e dirigido dois filmes de ficção e um documentário, além de ter atuado como diretora de teatro e dramaturga. Mas o que nutria sua dúvida era mesmo a literatura.

"Não quero ser uma professora e não quero ser uma jornalista, quero ser uma escritora que é também uma intelectual", diz ela numa entrevista de 1980. Espelhada no modelo francês, mais para Marguerite Duras (a quem criticava) do que para Simone de Beauvoir (a quem admirava com reservas), estreou em livro, em 1963, com um romance, "O Benfeitor".

E dedicou seus últimos anos a dois outros, "O Amante do Vulcão" (1992) e "Na América" (1999). Identificada, como ensaísta, com a defesa e a promoção das vanguardas, a Susan Sontag ficcionista mostrou-se surpreendentemente convencional, optando por narrativas históricas longas e grandiloquentes. Já Barthes, que ela comparou uma vez a Diderot, escritor "disfarçado" de pensador, marginal na pele de burguês, não chegou a concretizar seus planos.

Não por um acaso, batizou "A Preparação do Romance" aquele que seria seu último curso -o terceiro dado no Collège e publicado postumamente. Nas aulas, meditava sobre as possibilidades de reinvenção do trabalho intelectual na literatura. O tempo do luto era, para Barthes, o tempo de gestação de uma nova forma de escrita em sua obra, que ele batiza "romance", mas que não necessariamente obedeceria às regras do gênero.

RUPTURA Assim como Proust, que, em crise pela morte da mãe, hesita entre o ensaio que vinha praticando e o romance que iria consagrá-lo, Roland Barthes impõe-se uma dúvida que se quer transformadora.

"Será que tudo isso significa que vou escrever um romance? Não sei", diz ele na reveladora conferência "Durante Muito Tempo, Fui Dormir Cedo", batizada com a primeira frase de "Em Busca do Tempo Perdido".

"Não sei se ainda será possível chamar 'romance' à obra que, desejo e que aguardo venha romper com a natureza uniformemente intelectual dos meus escritos passados", afirma. Empenhado no livro que batizaria, em citação a Dante, como "Vita Nova", produziu dezenas de fichas de notas e oito laudas de lacônico planejamento.

A ideia de ruptura e renascimento pela literatura, bela, foi o último e mais forte vínculo entre Roland Barthes e aquela que em seu belo elogio fúnebre lembra a saudação constante: "Susan, toujours fidèle".

Ambos viam a escrita como a forma de vida viável. Nada que ele não tivesse advertido ao leitor de "Roland Barthes por Roland Barthes" e que até pode em algum momento ter sido tomado como pirueta retórica: "Tudo isso deve ser considerado como dito por um personagem de romance".

Sontag queria era enxergar no espelho um reflexo de Barthes, com quem manteve uma relação de admiração que vingou como poucas nas brechas de seu avantajado ego

David Rieff, filho e editor póstumo de Sontag, diz que os diários são a autobiografia possível da autora que, apesar do exibicionismo, era avessa à primeira pessoa confessional

Infância e sexualidade estão entre os traços fundamentais que unem biograficamente Barthes e Sontag. Ambos foram marcados pela morte do pai e pela presença ostensiva da mãe

Barthes nunca sustentou um relacionamento conjugal. Da homossexualidade falava por meio de Proust e em outros momentos de sua obra, mas recusava a militância de sua época

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