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Um Caravaggio para chamar de seu

O extraordinário hábito de contemplar a mesma tela por anos

RESUMO Especializado na cobertura de arte do "New York Times", Randy Kennedy acostumou-se, ao longo de uma década, a dedicar parte do tempo de suas visitas ao Metropolitan Museum a apenas uma pintura de Caravaggio, "A Negação de São Pedro". Neste texto, o repórter narra como "se apropriou" da tela.

RANDY KENNEDY

TRADUÇÃO PAULO MIGLIACCI

QUATRO ANOS ANTES de morrer, o romancista e dramaturgo austríaco Thomas Bernhard [1931-89] escreveu um de seus trabalhos mais divertidos, "Alte Meister" (velhos mestres). O texto é uma amarga comédia sobre um musicólogo chamado Reger, que por 30 anos visitou dia sim, dia não, a mesma sala do Kunsthistorisches Museum, em Viena, acomodando-se no mesmo banco para contemplar o mesmo retrato, o "Homem de Barba Branca", do pintor italiano Tintoretto (1518-94).

A devoção de Reger ao ritual é tamanha que ele conhece a mulher com quem viria a se casar enquanto contempla o quadro e mantém uma relação quase que de parentesco com o velho vigia que ocasionalmente lhe traz um copo d'água e impede que outros visitantes entrem na sala quando ele quer ficar sozinho.

"Na verdade, não sou doido", Reger insiste para um amigo. "Sou apenas uma pessoa de hábitos extraordinários, uma pessoa com o extraordinário hábito de ir dia sim, dia não, ao Kunsthistorisches Museum, durante anos, e me acomodar no banco do salão Bordone".

Não cheguei a esse extremo, mas há cerca de uma década visito regularmente um quadro -uma cena muito sombria e obscura- no Museu Metropolitano de Arte de Nova York (Met), que mostra a negação de Cristo por São Pedro.

O Met adquiriu a tela em 1997, e uma das coisas que me atraíram foi que o museu não anunciou de imediato que se tratava de um Caravaggio, o segundo a ingressar no acervo permanente da instituição e uma das poucas obras do pintor em exibição pública nos EUA -elas não chegam a uma dúzia.

"A Negação de São Pedro" não exibe o naturalismo lírico ou os personagens dissolutos, de olhar escuro e oblíquo, que caracterizam trabalhos iniciais do pintor, como "Os Músicos", pintado em 1595 e companheiro da peça posterior na galeria barroca do museu.

Nas obras mais conhecidas de Caravaggio (1571-1610), claro e escuro travam uma batalha cinematográfica que aqueceu o coração do diretor americano Cecil B. DeMille (1881-1959); em "A Negação de São Pedro", concluído nos meses finais e dolorosos da violenta vida do pintor, a escuridão quase sai vitoriosa, expressa por meio de pinceladas rápidas e grosseiras.

"Algo extremamente cru e esfarrapado", como Andrew Graham-Dixon descreve o quadro, na que talvez seja a única hipérbole em sua biografia do pintor, "Caravaggio: A Life Sacred and Profane", lançada em 2010.

17 SEGUNDOS Os curadores há muito lamentam o tempo exíguo que os visitantes dedicam a cada obra; uma pesquisa do Met, de 2010, constatou que o tempo médio de observação era de apenas 17 segundos. Por isso, adoraria dizer que fiz do Caravaggio meu ponto de peregrinação com o objetivo de incorporar a virtude da contemplação prolongada, qualidade pré-internet que permite o acúmulo de significados ao longo do tempo.

A verdade é que meu trabalho como repórter de arte me leva ao Met de maneira regular (e prazerosa) e, a cada vez que passei pelas galerias europeias do museu, visitei o quadro e me detive diante de seu amontoado de sombras.

Terminei por memorizar a posição exata da obra e, depois de uma entrevista, antes de tomar a direção do metrô, desenvolvi o hábito de me encaminhar até ela automaticamente, como alguém que, quase com timidez, ignora todos os convidados de uma festa, exceto a pessoa com a qual deseja falar.

Sem parar, passo dolorosamente por Hans Memling, um de meus favoritos, por Bosch (c. 1450-1516) e pelos robustos lavradores de Bruegel (c. 1525-1569), comendo seu mingau de almoço, dobro à esquerda diante do duque loiro e janota de Van Dyck (1599-1641) e, quando chego ao Sansão de Guercino (1591-1666) e suas costas gloriosamente contorcidas, sei que estou bem perto. A galeria seguinte, ocupada quase inteiramente por Caravaggio e seus seguidores, raramente está lotada, mesmo sem um guarda para manter os demais visitantes fora da sala.

"A Negação de São Pedro" costuma ficar em um cantinho, desdobrando sua história num desconfortável close-up, feito uma peça de Paixão de Cristo que fosse encenada num elevador; à direita, Pedro, abatido e calvo, os olhos vermelhos de lágrimas; à esquerda, um guarda do sumo sacerdote Caifás, quase indistinto em meio às trevas de um pátio noturno; no centro, a acusadora de Pedro, uma das servas do sumo sacerdote, que segundo a Bíblia o identificou ao guarda como seguidor de Jesus.

Na parede, o quadro parece ainda mais turvo do que nas reproduções -a maior parte da luz, fraca, vem por sobre o ombro direito do guarda e incide sobre Pedro, que está fazendo um gesto universal de inocência, voltando as duas mãos na direção do peito como se protestasse: "Quem, eu? Imagina. O senhor pegou o pescador errado".

Por muitos anos, em minhas visitas, eu olhava principalmente para Pedro, para sua expressão que combina fraude e derrota. Mas, quanto mais olhei, mais pareceu que o santo -como representação simbólica da fragilidade humana e da fé que embasa a doutrina católica- não era o ator principal no drama. Essa posição cabe à serva, cujos olhos, refletindo a luz, de algum modo se tornam o centro da pintura. Seus olhos parecem ter perdido o foco, como se ela não olhasse para o guarda, mas para dentro de si mesma.

Não importa a doutrina da Contrarreforma que o quadro tenta demonstrar. A hesitação e a humanidade da serva no momento da acusação é que se tornaram, para mim, o tema e a força da obra.Não importa se isso tem justificação histórica ou não, nem se foi essa a intenção de um Caravaggio alquebrado, já no fim da curta vida.

Um dos resultados de contemplar um quadro por tanto tempo é que é possível imaginá-lo em detalhes, de modo que o quadro se torna seu, de maneira muito concreta -uma pintura diferente da que qualquer outra pessoa poderá ver.

Outro resultado é que você se sente abandonado caso o quadro não esteja no lugar de costume (ele está emprestado até o segundo trimestre do ano que vem).

Quando corri à galeria um dia desses e descobri que ele não estava lá, foi como se um amigo íntimo tivesse desaparecido e mudado de identidade por obra de um programa de proteção a testemunhas.

Em "Alte Meister", de Bernhard, Reger contempla o seu Tintoretto ano após ano em parte para tentar decompô-lo, para se animar com a ideia de que não existe perfeição no mundo, nem mesmo em uma obra-prima. Ele também teme estar certo. "Cuidado ao penetrar no mundo da arte", diz. "Você arruinará todas as obras, até mesmo aquelas a que mais ama."

Pode ser, mas esse é um risco que aconselho todo mundo a aceitar. Depois de mais uma década em companhia de Caravaggio, ainda não consegui encontrar qualquer imperfeição.

Publicado no "The New York Times"

NO BRASIL

Uma exposição e um livro trazem a arte de Caravaggio para o Brasil em 2012. De 26/7 a 23/9, o Masp apresenta a mostra Caravaggio e Seus Seguidores (até 15/7 em Belo Horizonte), com telas como a "Medusa" e o "São Jerônimo". E a Cosac Naify recém-lançou "Caravaggio" (160 págs., R$ 79), estudo clássico de Roberto Longhi, com prefácio de Lorenzo Mammì.

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