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Notícias da Corte

O Segundo Reinado em biografia e ensaios

RESUMO O Segundo Reinado e a figura de dom Pedro 2º vêm à baila em biografia escrita pelo especialista norte-americano Rodrick J. Barman e em ensaios de Alexandre Eulalio (1932-1988). A leitura cotejada das obras ressalta diferenças de perspectiva entre o historiador e o ensaísta ao focalizar os mesmos eventos históricos.

LILIA MORITZ SCHWARCZ

FOI O HISTORIADOR Jacques Le Goff quem disse que "a história é filha de seu tempo". Se ela se parece à primeira vista com uma mecânica seriação de fatos, o que importa é a interpretação que se dá a eles. É nessas situações que simples circunstâncias viram, nos termos de Paul Veyne, "acontecimentos"; ou, na acepção de Marshall Sahlins, "eventos".

Se nosso calendário é marcado por datas e personagens, raras vezes eles ganham significado cultural ou escapam à cronologia fácil. É nessas ocasiões que um mero acidente se torna momento de inflexão na historiografia.

Paradoxal é a posição da biografia, sobretudo quando se pensa nessa vocação crítica da história. Verdadeira voga em finais do século 19 e inícios do 20, a narrativa biográfica era em geral laudatória e partia do pressuposto de que só governantes e membros da elite mereciam atenção.

O problema é que trajetórias isoladas viravam destinos exemplares, ou conferia-se a um só personagem a realidade de toda uma geração. De lá para cá, a voga tem sido outra: se as biografias estão de volta, têm perdido seu caráter de consagração.

No caso brasileiro, poucos figurantes mereceram tanta atenção como o Imperador Pedro 2o, assim como seu longo reinado, que terminou com a proclamação da República: golpe para alguns, revolução para outros -um "evento", em ambos os casos.

O Segundo Reinado é o tema de duas obras recém-editadas no Brasil. Bem distintas em suas formas literárias -biografia e ensaio-, ambas são compostas por textos escritos alguns anos atrás.

"O Imperador Cidadão: d. Pedro 2o e a Construção do Brasil, 1825-91", que a Editora Unesp lança até agosto, foi originalmente publicado pelo historiador americano Rodrick J. Barman em 1999. "Tempo Reencontrado - Ensaio sobre Arte e Literatura" [Editora 34, 272 págs., R$ 49] é uma coletânea de textos de Alexandre Eulalio, morto em 1988, com organização de Carlos Augusto Calil.

Os dois livros podem ser apreciados como bons romances, tal o grau de aventura e suspense. Mas os desafios são diversos, assim como o alcance das narrativas. A biografia de Barman inscreve-se no gênero de modo tradicional: elege a cronologia como fio condutor.

FICÇÃO Começamos com o nascimento e vamos até a recuperação da figura do monarca, que morreu no exílio, mas voltaria nos anos 1930 -tempos de Getúlio Vargas- como grande mecenas, sábio e visionário da nação.

Barman tem tal domínio sobre os documentos que, em alguns momentos -o casamento de d. Pedro, as frustrações de e com Isabel, suas tentativas de aproximação íntima com a Condessa de Barral-, temos impressão de estar lendo uma boa obra de ficção.

D. Pedro não perdia a oportunidade de demonstrar seu afeto à condessa. Depois da morte de Teresa Cristina e já no exílio, o imperador deposto teve a oportunidade de rever a antiga amiga, estando os dois viúvos e assim desimpedidos.

Barman resolve a fatura: "A condessa havia mantido contato próximo com d. Pedro e Isabel desde a chegada deles a Lisboa. Ao visitar Cannes, ela cumpria seu dever e renovava antigos vínculos. Entretanto, seu encontro com d. Pedro pressagiava complicações que a condessa não apreciava.

"D. Pedro sempre demonstrara ardor em sua afeição por ela, mas seus esposos eram um obstáculo [...] Apesar das ofertas de hospitalidade de d. Pedro, ela se recusou a ficar no mesmo hotel [...] Ao acordar na manhã seguinte d. Pedro escreveu em seu diário: '7h. Dormi bem, mas pensei demais antes de levantar-me'". Fim da citação: pobre d. Pedro!

Entretanto, se o objetivo do historiador não é, com certeza, o do exercício de glorificação do soberano -até porque em vários momentos mostra o quão autoritário podia ser, ou como sua ilustração era mais enciclopédica que profunda-, a própria organização e título da obra levam ao suposto de que d. Pedro 2o era "um cidadão" "avant la lettre", a despeito de tantas ambiguidades comprovadas, aliás, pelo próprio historiador.

Professor do Departamento de História da University of British Columbia, Barman é especialista em América Latina, sobretudo no Brasil oitocentista. Longe de praticar historiografia apenas fatual e lançando mão de documentação vasta, Barman poderia arriscar mais e desviar das armadilhas das fontes utilizadas, em especial os diários do monarca, peça pública e para o deleite público.

Quem sabe valeria a pena ter revisto a consistente bibliografia nacional existente à época da primeira edição, ou até mesmo produzida nesse meio-tempo. Refiro-me, por exemplo, aos trabalhos de José Murilo de Carvalho, Nicolau Sevcenko e Luiz Felipe de Alencastro, que exploram as dimensões simbólicas da monarquia e as contradições do Segundo Reinado, ou aos textos de João José Reis, Sidney Chalhoub e Flávio dos Santos Gomes sobre o impacto e o estrago da escravidão no Império e na própria figura do monarca.

A biografia parece referendar o alerta de Bourdieu para o perigo da "ilusão biográfica". No livro de Barman, o destino por vezes lembra uma avenida, sem muitos semáforos ou obstáculos a impedir a circulação prevista ou estimada.

AUTODIDATA Não há como dar conta de todos os ensaios de Alexandre Eulalio, até porque eles apontam em muitas direções. Autodidata de formação eclética, ele foi crítico, tradutor, jornalista, palestrante, professor, curador e, ironicamente, se definiu como "um escritor público".

Atuou em instituições culturais no Rio e em São Paulo, particularmente na Casa de Rui Barbosa e no Museu Nacional (RJ). Ingressou tardiamente na universidade, quando recebeu notório saber no Departamento de Teoria Literária da Unicamp. Entre seus vários projetos, o mais amplo talvez seja o que unia literatura e pintura, objeto de alguns textos da coletânea.

O núcleo forte do livro, não por acaso, gira em torno do baile da Ilha Fiscal: o último antes da República, verdadeiro "acontecimento". Eulalio explora o diálogo entre telas e obras literárias sobre o convescote, que, em si, foi sem graça, assim como sua motivação: a chegada de uma comitiva chilena, em 9 de novembro de 1889.

Àquela altura, a conspiração republicana corria solta, e só d. Pedro, então bastante alienado, não notou. Por isso, o baile fez-se notório na contramão: na quantidade de comida e bebida, na fofoca social e sexual, no literal tropeço do Imperador, que, sem perder a pose, apenas disse: "A monarquia tropeça, mas não cai".

Cairia em menos de uma semana, mas nem todo governante nasce com o dom da premonição. Por isso, o baile foi basicamente -mas muito- simbólico. Hoje, pouco se duvida da eficácia simbólica do poder político, mas interessa anotar como Barman, que faz uma história detalhada e consistente do Império, nada diz do sonoro baile.

Já Alexandre Eulalio dança ao som e em torno dele. Usando muito antes da moda uma plataforma multidisciplinar, acomoda em seus ensaios arte, literatura, música, arquitetura, depois teatro e cinema, para pôr em diálogo representação visual e tempo histórico.

A partir de Machado de Assis, mais particularmente de "Esaú e Jacó", ainda em 1983 o crítico traça um primeiro painel do último baile. Em 1984, articula Raul Pompeia e Aurelio Figueiredo, juntando literatura com pintura histórica em uma "verdadeira fantasia histórica", como ele mesmo definiu.

PRINCESA Conselheiro Ayres, grande personagem da galeria machadiana, em determinado momento do romance nota que Flora (personagem central do livro) admira de longe a princesa Isabel.

Achegando-se da primeira, Ayres diz: "Toda alma livre é imperatriz". Aqui está o estopim para a análise perspicaz de Eulalio: a monarquia tinha seus dias contados, mas na ficção já era matéria para memória proustiana.

O mesmo faz o crítico ao analisar a tela, de gosto duvidoso, de Aurélio de Figueiredo sobre o mesmo tema. Muitas vezes má arte é bom documento, e nesse caso a pintura funciona como buraco de fechadura para captar não só o movimento político, mas a imaginação local.

O pintor vira narrador machadiano ao captar expressões da Regente e do Conde d'Eu, mas também ao deslindar a apoteose da Monarquia -feita de sonho, ilusão- frente à da República, que alardeava racionalidade. Aí está uma "comédia humana banalizada", como diria Eulalio, feita dos próprios tijolos da obra de Machado: desilusão, miragem e melancolia. Se o baile rende pouco na análise mais política de Barman, aqui vira termômetro da alta temperatura do ocaso do Império.

Eulalio insiste no tema a partir dos textos de Coelho Neto e de Raul Pompeia. Pompeia anota as "infinitas sensações do baile", mas também "a esplendorosa alucinação da memória". É aí que Eulalio encontra "a exemplaridade nervosa do texto", o diálogo entre aspectos míticos e religiosos presentes no mesmo "evento", fazendo parar o tempo, recortando um momento especial, definidor de destinos.

Se num dos livros saímos com um retrato claro desse imperial governante -tão claro que aqui e ali desconfiamos de tanta objetividade-, no outro (até pela forma mais lacunar do gênero ensaio) resta a ambiguidade e a incompletude que marca todo grande "acontecimento", que não se deixa facilmente capturar.

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