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Arquivo Aberto

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

O começo de tudo

São Paulo, anos 60

LAERTE COUTINHO

De 66 a 68, frequentei o curso de desenho e pintura para adolescentes da Fundação Álvares Penteado.

O prédio eternamente inacabado, as colunas meio egípcias, as escadarias que percorriam o caixotão arquitetônico por dentro e por fora -não existia ainda a faculdade, e parecia que éramos os únicos habitantes vivos em todas as salas, corredores e espaços misteriosos.

Entrei porque queria pintar. Até então, aos 14, eu só respeitava a pintura figurativa, de preferência a feita até o século 19. Meu ídolo era Norman Rockwell, o mestre americano hiper-realista, o exato espírito da "Seleções" do Reader's Digest. (Estou sendo injusto e sumário: ainda gosto dele, mas, na época, era dogma incontestável.)

No primeiro dia, a professora Sonia Maria Paula e Silva me disse para criar com o material que estava sobre a mesa. Fiz uma paisagem de praia, do jeito mais erudito que consegui. Tive má impressão do material -provavelmente ambicionava tubos de óleo e pincéis finos. A pintura ficou guardada.

Ao longo das aulas, aprendi técnicas -desenho a carvão, a lápis, com número determinado ou livre de cores-, me exercitei com modelos de objetos e vivos, conheci outros usos da cor e do desenho.

Comecei a tomar gosto por vermelhões, amarelos, azuis intensos. Aprendi a fazer guache misturando o pó do pigmento com água e cola. Adorava o cheiro dessa tinta, adorava espalhá-la em grandes pinceladas sobre folhas enormes de papel barato. Aprendi técnicas de gravura em metal e em madeira.

Meses depois, a Sonia me fez comparar o que eu estava produzindo com aquela minha primeira praia. Percebi que coisas tinham se mexido dentro de mim, que a ordem nunca mais ia ser a mesma.

Aí entrou teatro -não sabia que ia ter. Era opcional, mas resolvi fazer, meu primo Guilherme estava fazendo. Quem dava aulas era o Naum Alves de Souza.

Fui incluído na montagem de "Os Irmãos das Almas", de Martins Pena, como um soldado que vai prender alguém. Não fiz questão de saber o contexto (como um soldado, enfim). Minha mãe ajudou no figurino.

Para a peça seguinte, Naum propôs um passo mais ambicioso. Eu tinha visto "Arena Conta Zumbi", "Morte e Vida Severina", e era essa minha ideia de bom teatro: jeans, tênis e abrigo da Hering para todos; despojamento em cena e conscientização para o público. O grupo quis outro caminho, ufa!

Naum sugeriu que partíssemos do Evangelho segundo São Mateus. A base seria uma montagem da Paixão feita por um circo. Haveria cenas a partir da nossa experiência com religião.

Foi como descobrir um continente. Pus-me a trabalhar nas canções, agora livre da inspiração edu-lobiana, em direção mais colorida. Havia cenas divertidas, densas, trágicas. Coreografias, cenários, tudo fruto do nosso ventre.

A peça seguinte, uma montagem musical da história do Fausto, foi o auge da experiência do grupo, com inspiração art nouveau misturada a elementos circenses.

O teatro invadia o espaço das aulas de pintura e nossos dias fora da fundação -fazíamos cartazes, material cênico, buttons, brincos, bonecos. Aprendi a criar bijuterias com as armações da 25 de março, papel duplex e cola de PVA. Conservei um button feito pelo Naum.

Naquele ano de 67, Caetano e a Tropicália percorriam um caminho com o qual senti afinidade: o da abertura de todos os canais estéticos, dos cruzamentos heterodoxos, da vontade de tentar de tudo.

Nós nos reuníamos, fazíamos festas de fantasia, ouvíamos discos, musicais, sambas, forrós, rock, canções de todo tipo. Vou esquecer gente nessa lista: Guilherme, Célia Eid, Bia Estrela, Bel Machado, Alice Miele, Analu Prestes, Kita, Mira, Carlinhos, Carlos Wagner, Amália, Circe, John, Tacus, Toninho Falcão, André Antunha.

Em 68, Naum se afastou e Joana D'Arc Lopes veio dirigir a parte de teatro. Tinha boas ideias, mas não consegui me empolgar da mesma forma. O grupo (sem mim), depois de 68, novamente com Naum, gerou o Pod Minoga, já com vocação para teatro profissional.

Já eu entrei na USP, para fazer cinema, teatro ou música. Tranquei em 73, ao começar a desenhar para a imprensa.

Aqueles três anos foram os mais importantes da minha vida, fundadores do que vim a fazer, em qualquer sentido.

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