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Urbanismo

Uma pinguela em Roterdã

O que os arquitetos holandeses tanto veem em São Paulo?

Divulgação
A passarela de madeira que rasgará o centro de Roterdã sintetiza os rumos da nova arquitetura: prioridade para os pedestres, reciclagem e aproveitamento de espaços abandonados
A passarela de madeira que rasgará o centro de Roterdã sintetiza os rumos da nova arquitetura: prioridade para os pedestres, reciclagem e aproveitamento de espaços abandonados

SILAS MARTÍ

RESUMO

A despeito do caos e da corrupção no setor imobiliário, São Paulo e outras metrópoles periféricas são vistas pela vanguarda da arquitetura holandesa como a nova fronteira do urbanismo mundial. Atingida pela crise europeia, Roterdã abriga bienal de arquitetura e constrói passarela que sintetiza os novos rumos.

UMA PASSARELA está sendo construída no coração de Roterdã, entre o combalido centro financeiro da segunda maior cidade holandesa e uma zona residencial, do outro lado da ferrovia. A estrutura de madeira por ora só tem alguns metros: as obras mal começaram.

Depois que os arquitetos arrecadaram a verba necessária numa vaquinha virtual, o governo decidiu investir R$ 10 milhões para concluir os 350 metros. Será um corte no tecido urbano, um risco de madeira crua, sem pintura nem ornamentos -símbolo austero dos rumos que querem dar à arquitetura num país que ostenta escritórios de vanguarda, verdadeiras butiques de projetos, tendo à frente o poderoso OMA, de Rem Koolhaas.

Em vez dos vistosos prédios ao longo do canal principal de Roterdã -assinados por Norman Foster, Koolhaas, Renzo Piano e outras estrelas-, o que se busca é um esforço de reurbanização das metrópoles vítimas da hecatombe financeira global e soluções para a atrofia das megalópoles dos países em desenvolvimento.

Essas ideias foram alardeadas na atual Bienal Internacional de Arquitetura de Roterdã, que começou em abril e vai até agosto, como propostas urgentes para evitar o colapso das cidades -grandes ou pequenas, desenvolvidas ou não.

Em vez de exibir projetos, como costumam fazer as bienais de arquitetura, a holandesa busca debater o futuro das cidades e propor soluções para problemas das tramas urbanas. O Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, recebeu um recorte-satélite da exposição.

MAU AGOURO

A Bienal começou sob o mau agouro da queda do premiê conservador Mark Rutte, que renunciou ao não conseguir aprovar um pacote de austeridade no Parlamento. "Os governos estão desmoronando, não têm dinheiro nem estrutura. Estamos diante de dilemas de proporções históricas", disse Ole Bouman, diretor do Instituto Nacional de Arquitetura da Holanda, ao apresentar a mostra a jornalistas em Roterdã. "Se dependermos do Estado para fazer arquitetura, vamos todos morrer."

Especialistas apontam a necessidade de readequar zonas abandonadas nas cidades que sucumbiram ao estouro da bolha imobiliária. É o caso de Roterdã. Ao mesmo tempo, alertam para os riscos da poluição e as consequências de uma requalificação econômica em metrópoles emergentes, que vêm esvaziando seus parques industriais para entrar com força na economia de serviços e informação.

É o caso de São Paulo e Istambul, que entram na equação como objeto de estudo e contraponto ao que se debate agora em Roterdã.

Mas o que isso tem a ver com a nova ponte no centro da cidade? A construção liga um prédio ocupado por escritórios de arquitetura e design recém-legalizados às casas dos trabalhadores, driblando o tráfego de carros e trens e criando uma conexão em escala humana entre os bairros de Roterdã.

Parece ingênuo diante da dimensão dos problemas das metrópoles, mas o projeto é a síntese dos novos mandamentos para as cidades, que pregam a readequação de prédios abandonados, o uso misto do espaço público, flexibilidade nas leis de zoneamento, coabitação de diferentes classes sociais e ocupação de praças, parques, pontes e vias por pedestres e ciclistas.

"Estamos testando as ambições desse distrito da cidade", contou Kristian Koreman, arquiteto do escritório Zones Urbaines Sensibles, que desenvolveu o projeto. "Queremos implementar projetos para concretizar todas essas ambições."

Num brunch de verduras e legumes plantados no jardim da cobertura do prédio, Koreman explicou a ideia de devolver vida urbana de qualidade a uma zona que perdeu o brilho com a crise econômica e o fechamento de escritórios.

Defronte ao Schieblock, prédio de escritórios transformado em usina de tipos criativos, um antigo estacionamento virou uma praça de restaurantes "pop-up" (trailers que servem de cerveja artesanal a sopas). As construções ao redor tiveram as fachadas adaptadas e também dão para a nova praça.

"Antes ninguém queria passar aqui", diz Christian Dobrick, no salão de seu restaurante, um contêiner usado. "Essa caixa servia para levar Rolls Royces e agora é um bar." Em volta da praça, revitalizada por Koreman, funciona uma marcenaria que transforma sucata de móveis em mobiliário urbano. As mesas e cadeiras que o hotel Hilton jogou no lixo, por exemplo, viraram bancos de praça.

Num restaurante no alto da torre Euromast, a mais alta de Roterdã, o brasileiro Fernando de Mello, do escritório paulistano MMBB, refletiu sobre a proposta de revitalização feita nesse microcosmo holandês. "Eles sofrem o oposto do que sofremos em São Paulo. Roterdã é uma cidade com ordem brutal, o centro é cheio de infraestrutura e sem nenhuma vitalidade. Todos buscam outra forma de cidade."

CANTEIRO

Basta conversar com arquitetos locais para constatar que os europeus perderam clientes com a crise e agora veem emergentes como São Paulo e Istambul como um possível canteiro de obras, terreno fértil para suas ideias.

Bete França, da Secretaria de Habitação paulistana, apresentou em Roterdã os projetos de requalificação urbana de Cantinho do Céu, zona de ocupação irregular às margens da represa Billings, na zona sul de São Paulo, e de Cabuçu de Cima, na divisa com Guarulhos.

"São Paulo é um laboratório mundial, concentra novidades", disse. "Por estarmos num país que está sobrevivendo à crise econômica, temos a ensinar nesse sentido."

E a aprender. Nas palavras de Mello, que coordena com seu escritório o projeto de reurbanização de Cabuçu de Cima, nossa maior cidade não vive um momento positivo na arquitetura, apesar do deslumbramento dos europeus.

"Não estamos na doença holandesa nem no êxodo rural", diz Mello, comparando São Paulo a Roterdã e Istambul, respectivamente. "Não vejo a cidade com otimismo, mas a hora da transformação é essa. É preciso repensar o urbanismo, já que nosso capitalismo é bastante selvagem e temos inúmeras fobias urbanas."

Entre elas, a ausência de áreas públicas de qualidade e a frouxidão na fiscalização de empreendimentos, como revelaram escândalos recentes envolvendo os shoppings Paulista e Higienópolis e a explosão patrimonial de um responsável na prefeitura pela aprovação de construções.

Enquanto se apuram os fatos, arquitetos e urbanistas voltam a bater na tecla da reciclagem urbana. Joachim Declerck, arquiteto e crítico belga que organizou parte da Bienal em Roterdã, equipara os esforços de paulistanos na readequação de favelas a projetos elogiados como a transformação de um ramal ferroviário em parque, o High Line, de Nova York.

"Da mesma forma que a Philips deixou Eindhoven, São Paulo também está perdendo sua indústria", diz Declerck. "É preciso pensar em como reciclar as cidades, usando estruturas já existentes. A arquitetura não pode se contentar com projetar ícones. Novas práticas precisam convencer o poder público a reinventar as cidades."

A poucas quadras da Bienal, o OMA, de Rem Koolhaas, que fez fama e fortuna projetando tais ícones -como a Casa da Música, no Porto, e a Fundação Prada, em Milão- volta os olhos a algo menos ambicioso. Nas paredes do maior escritório do mundo, onde trabalham 320 arquitetos, estão simpáticas fotografias de camponesas, dos rincões de Portugal à Rússia, inspiração para uma nova arquitetura mais pé no chão que Koolhaas pretende pôr em prática nesses tempos difíceis.

"Nos vemos como agentes num processo de mudança. Somos arquitetos críticos à arquitetura", diz Koolhaas. "Não gosto de arquitetura que atinge só a condição de ícone. O que queremos agora é um espetáculo mais contido."

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