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Perfil

O monstro

Nuno Ramos, 25 anos de carreira

RESUMO A ficcionista Natércia Pontes acompanhou o trabalho de Nuno Ramos nos últimos meses, das atividades no ateliê à montagem de exposições do artista e escritor paulistano. Aos 25 anos de carreira, Nuno começa a ganhar projeção internacional e deve ter pavilhão próprio no Instituto Inhotim.

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NATÉRCIA PONTES

Um objeto de vidro cai da terceira prateleira. "Acabei de salvar com o pé, acho que nem o Neymar faria." Como se fosse a própria Taça Libertadores da América, Nuno ostenta brioso uma taça de champanhe vazia, pronta para ser preenchida por água com nanquim. Eduardo Climachauska, ou apenas Clima, gargalha com o amigo.

A taça é um entre centenas de itens numa lista quilométrica e quimérica: peruca, ancinho, vaso sanitário, umidificador, as cinzas de uma edição de "As Pupilas do Senhor Reitor", molde de gesso de arcada dentária, violão incinerado, tulipas negras, anão de cerâmica, feno, motor, urinol, troféu, aquário, pneu, pato de porcelana, crina de cavalo, lustre, galo português, vasilhame de vidro, uma edição de "Manual para Tratamento de Moléstias", copo americano, joio, disco de vinil do Pancho López cujo sucesso "Quiéreme Mucho" está estampado na capa etc.

No sofá velho, pernas cruzadas, Nuno debate com Clima se os extratos de cartão de crédito doados pertencem ou não a "Vida Comum", uma das quatro estantes que compõem a exposição a ser montada numa sala de 120 m2 da galeria Anita Schwartz, no Rio.

As estantes são quatro: uma faz associação com a "vida comum" e tem a cerveja como condutor; outra é o contrário desta, e tem nanquim dissolvido em água como líquido; outra representa o mundo rústico e tem lama como lubrificante; a última se associa ao luxo e leva cal.

Elas se ligam a dois globos da morte onde, em 13/11, dois motoqueiros se exibirão, fazendo ruir as estantes e seu conteúdo. A exposição, intitulada "O Globo da Morte de Tudo", ficará em cartaz até janeiro, com os objetos destruídos.

No mês que vem, Nuno inaugura individual em Belo Horizonte, com o trabalho "Rua Alvarenga" (título provisório). Para a montagem, o piso da galeria vai precisar ser destruído para dar lugar a três enormes blocos, contendo três tipos de lama, na qual estarão afundados telhados e as plantas-baixas de três casas (a da mãe, da avó e a primeira do casamento).

"A ideia de usar as plantas dessas casas me veio bem depois. Passava todo fim de semana na casa da minha vó Jovina, comunista fervorosa. Ela tinha um pé de jabuticaba no quintal e costumava dizer que ele só ia florir depois da Revolução. Virou piada entre a gente. A Revolução nunca veio, mas o pé floriu no ano em que ela morreu."

AUTÓGRAFO Um homem o aborda depois de uma palestra no MAM, no parque Ibirapuera: "Pode dar um autógrafo para a minha filha?". Nuno saca a caneta e pergunta o nome da menina. "Luiza, ela tem dez anos." O artista sorri e assina. Cumprimenta uma senhora ruiva, um adolescente barbudo, um senhor de pulôver e dezenas de pessoas entusiasmadas. Em meio à turba, localiza a mulher, Sandra, e sapeca-lhe um beijo. Depois de se despedir, une-se a ela e aos filhos, some no mar de gente e sai rumo ao carro vermelho.

"O sol fala comigo palavras humanas, o sol é uma puta." Nuno declama esses versos diante da série de desenhos que vem produzindo em seu ateliê, no bairro paulistano do Cambuci. A frase foi pinçada do livro "Memórias de um Doente dos Nervos", de Daniel Paul Schreber, esquizofrênico que intrigou Freud, Benjamin e Lacan.

Em meio a garatujas de sóis negros, pequenas múmias perfiladas, raios visíveis e invisíveis, possíveis laterais de pirâmides e asas de anjo douradas, a série de desenhos denominada "Munch", que será fechada possivelmente em 78 desenhos, expurga uma das maiores tristezas de sua vida: a morte da mãe, no ano passado, aos 78 anos. "Meu trabalho tem um investimento de energia violento. E só no retorno dessa energia enxergo um sentido nele. É sempre ir para fora e depois cair para dentro."

O telefone toca e Nuno atende. Parece falar com um técnico de montagem: "Quanto de espaço até a parede você vai me dar?". O imenso galpão de teto de zinco, seu ateliê há quase seis anos, abriga boa parte de suas obras, conhecidas pelas grandes proporções. "Um dia, a minha vizinha de ateliê perguntou para que escola de samba eu trabalhava."

BIBLIOTECA Na adolescência, era bom de drible, escrevia belos poemas e pintava quadros horríveis. Depois que o pai, professor de literatura francesa da USP, morreu, em 1974. Nuno tinha 14 anos e começou a usar a biblioteca dele como quarto. Aproveitando que o escritório ficava apartado da casa da mãe, convidava as meninas para passar a noite lá. "Era quase minha casa, só não tinha cozinha."

Livros e panelas são suas maiores paixões. "Não tenho cuidado com livros, leio, amasso, melo de suco, empresto, esqueço. Mas livro é minha paixão. Quando estou deprimido, corro para uma livraria."

Nuno escreve "para escapar". Publicou seis livros -entre eles, "Ó", vencedor do prêmio Portugal Telecom de Literatura de 2009, e "Cujo", de 1993, que acaba de ganhar reedição pela editora 34.

Seu primeiro volume de poemas, "Junco" lançado no fim do ano passado pela mesma editora de "Ó", a Iluminuras, foi selecionado na primeira fase do Prêmio Portugal Telecom. Os poemas são cravados de imagens recorrentes em seu trabalho como artista: tocos soltos na praia, cachorros mortos na beira da estrada.

"Sermões" deve sair neste ano. Neste longo poema erótico, que narra a trajetória sexual de um professor, o poeta digere a morte recente da mãe. "Era muito ligado a ela, mas sua morte me causou uma tristeza não destruidora."

CARREIRA São 25 anos de carreira. Depois de se graduar em filosofia na USP, montou, no começo dos anos 1980, com quatro amigos artistas, o ateliê Casa 7. O grupo, do qual fazia parte o artista Paulo Monteiro, que retratou Nuno para a Folha, ganhou projeção imediata. "O papel sugando a tinta me pegou", lembra Nuno.

Emplacou em várias Bienais, vendeu obras no mundo todo, ergueu monumentos, compôs canções. "Causou" na Bienal de 2010, com "Bandeira Branca" -feito com urubus, entre outros materiais, o trabalho recebeu a pichação "liberte os urubu" e foi atacado por ativistas dos direitos animais. No ano passado, a editora Cobogó publicou um livro sobre sua trajetória, com mais de 700 imagens

No momento, trama uma exposição com tanques de lama e telhados de sal e terra em Belo Horizonte. Lama branca, lama preta e "lama lama", derramadas em enormes quadrados, e, por cima, telhados afundados. Carmo Ângelo, o Carminho, dono da fundição e amigo do artista há anos, está empenhado no novo trabalho. Tenta decifrar a melhor maneira de criar uma telha de sal.

"Aquilo nasce da cabeça dele, ele gosta de conhecer a personalidade da matéria e caminha até um passo antes da destruição. É como se ele parasse na beira do abismo."

MONSTRO Ao telefone, Marcia Fortes é sucinta: "Ele é um monstro". Amiga e representante de Nuno há 12 anos, a galerista da Fortes Vilaça também o compara a um alquimista maluco ou a um menino muito moleque: "Sua produção é tão prolífica e variada que sempre brincamos que são cinco artistas em um mesmo corpo".

Marcia comemora o interesse pela obra de Nuno por parte da suíça Francesca Thyssen, da quarta geração de uma família de colecionadores e industriais europeus. No ano passado, depois de conhecer a série de esculturas "Pagão" (instrumentos musicais fossilizados em pedra-sabão) no estande da Fortes Vilaça na feira Art Basel, em Basileia, Francesca veio conhecer melhor a obra de Nuno.

Em maio do ano que vem, a obra dele integrará o acervo do novo museu Thyssen Bornemisza Art Contemporary (TBA 21), em Viena. "Nuno será daqueles artistas cujo reconhecimento mundial se dará em estágio já maduro de sua trajetória", diz Marcia. "Sem problema. Foi assim com outros contemporâneos, Louise Bourgeois, Cildo Meireles etc. Ele começa a ocupar um lugar no circuito internacional que é seu de mérito e direito."

É alta a probabilidade de que Nuno tenha um pavilhão para chamar de seu no Instituto Inhotim, em Brumadinho (MG), um dos principais espaços de arte contemporânea no país, nas imediações de Belo Horizonte. O curador do projeto, Rodrigo Moura, ainda não confirma, mas admite ter tratado do assunto nos últimos seis meses com o artista.

Enquanto isso, Nuno mostra, na capital paulista, dois painéis gigantescos na área de convivência do Sesc Pompeia, que abriga a coletiva "Desobjetos: A Memória das Coisas", da Mostra Sesc de Artes 2012. As peças, de 10 m x 5 m, são feitas de madeira, pregos e areia de fundição pilada, e formam a inscrição "solidão, palavra", em duas versões: uma para fora e outra para dentro, "como uma tumba", explica Nuno. Estarão em exposição até 19 de agosto -se é que, até lá, não terão virado pó.

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"Meu trabalho tem um investimento de energia violento. E é só no retorno dessa energia que enxergo um sentido nele. É sempre ir para fora e depois cair para dentro", diz Nuno

O galpão abriga boa parte de suas obras, de proporções monumentais. "Um dia a minha vizinha de ateliê perguntou para que escola de samba eu trabalhava"

"Ele é um monstro", diz sua galerista e amiga Marcia Fortes, da Fortes Vilaça. "Sua produção é tão prolífica e variada que sempre brincamos que são cinco artistas em um mesmo corpo"

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