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Ditadura

Santo diabólico

Memórias do cárcere do professor Salinas

LUCAS FERRAZ

RESUMO

Reedição de "Retrato Calado", em que o professor de filosofia Luiz Roberto Salinas Fortes relata sua experiência nos porões da ditadura, recupera personagem pouco conhecido da resistência. Marilena Chaui, Loyola Brandão, Zé Celso e outros recordam histórias do "cara mais bonito dos anos 1950","bom de coração e caráter".

NAS LINHAS QUE o serviço secreto brasileiro traçou sobre Luiz Roberto Salinas Fortes (1937-87) durante a ditadura militar, o professor de filosofia da USP, tradutor e jornalista paulista seria um "subversivo que atuava em editoras de livros, jornais e revistas".

Nas palavras de um de seus amigos, o escritor Ignácio de Loyola Brandão, "ele era o cara mais bonito da década de 1950, além de ter sido o mais inteligente da minha geração".

Salinas foi vítima do expurgo contra intelectuais nas universidades brasileiras no início dos anos 1970, auge da violenta repressão. Sobre sua experiência nos porões da ditadura, deixou um comovente relato, publicado um ano depois de sua morte.

A recente reedição de "Retrato Calado" [Cosac Naify, 136 págs., R$ 35] recupera esse personagem secundário da resistência contra o regime dos generais, mas de relevância reconhecida por nomes da intelectualidade brasileira, como a filósofa Marilena Chaui e o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa.

Salinas integrou o setor de imprensa da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), uma das maiores organizações da esquerda armada. Preso e torturado, ficou com sequelas que, segundo o amigo jornalista Marco Antônio Rocha, o matariam. Suas memórias do cárcere, narradas em tom romanesco, são de força e lucidez desconcertantes -escrever era sua tentativa de se conceder uma "anistia ampla, geral e irrestrita".

"Há algo que se rompe, pois não é impunemente que se passa pela experiência da prisão, assim como não se passa impune pela experiência de prender e torturar", escreveu, sobre as consequências psíquicas da relação com os carrascos. "Perda de 'inocência' de um e outro lado e profunda crise ideológica de ambos os lados, cujas repercussões até hoje persistem."

Antes do golpe de 64, Salinas já era um reconhecido integrante da turma da rua Maria Antonia, no centro de São Paulo, onde ficava a faculdade de Filosofia da USP. Foi um dos grandes especialistas de sua geração na obra do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau.

Nascido em Araraquara, em 1937, ele fez parte do grupo de conterrâneos que, ainda na década de 50, debandou para São Paulo: Marco Antônio Rocha, Ignácio de Loyola Brandão, José Celso Martinez Corrêa. Ao deixar a província, cada um deles se destacaria em sua área nas décadas seguintes.

FILOSOFIA

Salinas enveredou para a filosofia ainda adolescente, entusiasmado pela obra do pensador católico francês Jacques Maritain (1882-1973). "Eu dava aulas de história da filosofia em Araraquara, e um dia ele me procurou para conversar. Era muito jovem", conta o professor aposentado Fausto Castilho, 83, que ajudou a fundar a Unicamp e também deu aulas na USP e na Unesp. "Ali nasceu uma amizade definitiva."

Como todo estudante de filosofia dos anos 50, Salinas não demorou a tomar distância do catolicismo de Maritain e embarcou no existencialismo de Jean-Paul Sartre e no marxismo, correntes que marcariam sua trajetória.

Além de estudar "O Capital" com amigos, Salinas se dividia entre a Faculdade de Direito, no Largo São Francisco, a atividade na imprensa -trabalhou na Folha e em "O Estado de S. Paulo"- e o teatro de vanguarda.

Participou da fundação do Teatro Oficina do amigo Zé Celso: foi o galã na primeira peça da trupe, "A Ponte", de Carlos Queiroz Telles (1958), e organizou discussões filosóficas entre atores. As recordações daquele tempo mais parecem saídas do cinema europeu.

"Fomos para Congonhas numa lambreta que eu tinha, para recepcionar o Sartre. Estávamos com uma faixa 'Cuba sim, ianques não!'", recorda o filósofo e professor João Quartim de Moraes. De fato, Salinas ciceroneou o casal mais charmoso do momento, Sartre e Simone de Beauvoir, em setembro de 1960. De quebra, traduziu, para a editora da Unesp, a "Conferência de Araraquara", palestra do francês em sua cidade natal.

MEMÓRIAS

Dividido em três partes, "Retrato Calado" narra o envolvimento de Salinas na militância e as primeiras prisões, no começo dos anos 70. Numa segunda seção, "Suores Noturnos", ele transcreve trechos de um diário dos anos 50, quando se mudava para São Paulo. Por fim, narra passagens pela prisão na segunda metade da década de 70, sob acusação de posse de maconha e participação no tráfico de drogas.

O crítico literário Antonio Candido, autor do posfácio -publicado como prefácio na primeira edição-, diz que "Retrato Calado" pertence ao "gênero fascinante dos escritos que mostram o homem em busca de si mesmo, sendo ao mesmo tempo descrição de fatos e revelação do ser". "Sem nenhuma autocomplacência", completa, "mas também sem qualquer autoflagelação".

O filósofo dá seu testemunho dos bastidores da temida Oban (Operação Bandeirante), ação financiada por empresários, em conjunto com a polícia e as Forças Armadas, que levou à queda de inúmeros militantes.

Levado ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social), ele conta ter sido recebido por um funcionário que arrancou sua roupa com "safanões pouco delicados".

O agente citado é Carlinhos Metralha ("É com este nome de história em quadrinhos que a figura comanda o espetáculo"), alcunha do policial Carlos Alberto Augusto (leia perfil publicado pela "Ilustríssima" em maio em folha.com/ilustríssima). Acusado de crimes na ditadura, ele permanece na ativa na Polícia Civil paulista.

Em entrevista à Folha, o ex-braço direito do delegado Fleury (1933-79) ainda conta com a proteção do chefe ao negar as acusações: "Vou fazer uma sessão espírita e mandar ele se entender com o dr. Fleury, que com sua equipe celestial já está no pé dele para desmenti-lo. Lá em cima a mentira não prospera, os heróis verde-amarelos estão com Deus e os anjos".

O ufanismo do policial contrasta com a frieza com que Salinas descreve as sessões de tortura no pau de arara. "No vão entre os braços e os joelhos enfiam uma barra de ferro e penduram-na -penduram-me- em dois cavaletes. Rápidos, eficientes, bem treinados."

Ele descreve com ironia a atitude de outro carrasco, com um "sorriso indefinido" e o "jeito muito composto, digno, tal como o de qualquer dos untuosos burocratas revestidos de alguma parcela do poder que se veem aos montes espalhados pelo país".

Ao fim de uma das sessões na Oban, Salinas ouviu um comentário premonitório de um de seus algozes: "Quando sair daqui você vai escrever um livro!".

sedução Falar de Dedeto, como Salinas era conhecido desde Araraquara, passa obrigatoriamente por sua beleza física. A impressão é de que seduzia a todos: "Meninos, meninas, nos apaixonamos à primeira vista", disse Zé Celso à Folha.

"Ele era muito desejado pelas mulheres", lembrou Ana Corbisier, amiga que o conheceu na virada dos 50 para os 60, em bares nas cercanias do Oficina.

A jornalista Ana Maria Cerqueira Leite, 76, foi a primeira das quatro mulheres com quem se casou, em 1963. "Fui muito apaixonada, ele foi o grande amor da minha vida", contou Ana Maria, mãe do filho mais velho de Salinas, André. "Mantivemos uma amizade muito bonita, até a morte dele."

Descrita no livro como Veridiana, Ana Maria caiu nas mãos da repressão, o que levou à detenção do ex-marido. "Ele foi muito torturado, uma coisa horrível. Minha prisão foi pequena perto do sofrimento dele", diz.

A filósofa Marilena Chaui tornou-se amiga de Salinas na USP, durante a graduação de filosofia, no início da década de 60. Mais tarde, em 1974, ela fez parte da banca na defesa de seu doutorado sobre Rousseau, escrito logo depois das primeiras prisões.

Em entrevista à Folha, Marilena recorda um homem "muito firme nas posições filosóficas e políticas", "bom de coração e caráter". E, claro, muito bonito.

Ela leu uma das primeiras versões de "Retrato Calado", com o autor ainda vivo, e escreveu a apresentação do livro.

Segundo amigos e parentes, as sessões no pau de arara deixaram o filósofo com problemas circulatórios e dores de cabeça frequentes. Em agosto de 1987, perto da promulgação da nova Constituição, Salinas organizava na USP um seminário sobre o momento político do país. Também trabalhava em um livro sobre Che Guevara.

No dia 4, foi à casa do advogado Itoby Alves Corrêa, no bairro paulistano do Pacaembu, falar sobre o seminário e pedir dicas de Cuba, onde o amigo havia morado.

"Durante a conversa, quando estava sentado, ele teve um ataque súbito. E morreu", lembra. João Quartim de Moraes e Marco Antônio Rocha, hoje editorialista de "O Estado de S. Paulo", foram os primeiros a chegar.

No seu "Retrato Calado", o próprio Salinas deu pistas sobre o que lhe poderia acontecer: "A dor que continua doendo até hoje e que vai acabar por me matar se irrealiza, transmuda-se em simples 'ocorrência' equívoca, suscetível a uma infinidade de interpretações, de versões das mais arbitrárias, embora a dor que vai me matar continue doendo, bem presente no meu corpo, ferida aberta latejando na memória".

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