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Arquivo aberto

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

O maior leitor do mundo

Santos, 2005

JOSÉ LUIZ TAHAN

QuE livreiro não gosta de receber em sua loja um grande leitor? Não é que foi acontecer comigo, dono de uma pequena livraria de rua, em Santos, a uma hora de São Paulo, receber "o" maior leitor?

O bibliófilo José Mindlin reuniu mais de 40 mil livros ao longo da vida, tendo lido mais de 8.000 deles, segundo seus cálculos. Natural que meu então sócio, José Roberto Torero, e eu o chamássemos para um dos encontros literários mensais com figuras do meio literário que realizávamos na livraria.

Em 2005, o voraz leitor nos presenteou com uma tarde inesquecível. Mindlin era uma simpatia. Beirando os 90, conversou, animado, com clientes e funcionários.

Brincou com a moça do café, propondo um desafio para ele mesmo: se não resistisse a um docinho português exposto na vitrine, comeria de imediato; caso resistisse por meia hora, venceria o desafio e teria como prêmio... o docinho português. Em seguida pediu o doce, com o sorriso aberto -tinha perdido o desafio.

Contou bastidores de publicações. Lembrou a batalha entre herdeiros da Cecília Meireles e contou como saiu em defesa da artista Renina Katz pela autorização de sua versão ilustrada do "Romanceiro da Inconfidência", editado pela Imprensa Oficial paulista.

Examinou, com sua visão limitada, as prateleiras da nossa pequena livraria, de 50 m² em cada um dos dois andares. Separou sete livros, e me senti lisonjeado e surpreso quando ele disse, com empolgação, nunca ter ouvido falar daqueles lançamentos.

Fizemos um acordo. O primeiro volume da coleção das "Mil e Uma Noites" traduzida direto do árabe e editada pela Globo, tinha acabado de sair. O combinado foi enviar para seu escritório cada novo volume -era sair um deles e pronto, correio para o Brooklin, em São Paulo, onde ficava sua biblioteca.

O segundo volume saiu um ano depois, e, quando preparava o envio, recebi a visita de minha amiga Estela dos Santos Abreu, tradutora, grande amiga de Mindlin.

Estela era um dos que atuavam como os olhos do bibliófilo desde que a sua visão passou a impedir a leitura. Lia para ele sempre que estava em São Paulo. Gentilmente, ofereceu-se para entregar em mãos o pacote, e eu, descontrolado, me ofereci como portador.

No dia seguinte, lá estávamos nós, na biblioteca de Mindlin. Fiquei maravilhado com as estruturas metálicas, o cuidado com as obras, o tamanho do espaço e a relação dele com os livros.

Nos sentamos numa sala separada da biblioteca, que era outra biblioteca, menor e mais aconchegante, com os destaques da coleção. Estela abriu cartas e depois um livro -no ponto em que haviam parado no encontro anterior.

Por mais de duas horas, ouvi Proust em francês, língua que estudei na escola, mas que já não recordava. Ouvi a música das palavras, suas entonações, e notei nas feições e nos comentários do doutor José as nuances do texto.

Nós nos divertimos, os três. Numa pausa, Mindlin deu ares de satisfação e sugeriu nova sessão para breve, e Estela concordou, fechando o volume de capa dura bem envelhecida.

Ele nos guiou até a porta e perguntou como voltaríamos para casa. Ambos de metrô, cada qual para um lado, e eu ainda pegaria um ônibus para Santos depois.

Como naquele esquete de Max Nunes, o primo pobre e o primo rico, Mindlin chamou seu elegante motorista, de quepe e gravata. Orientou que levasse cada um de nós a seu destino em São Paulo. Caminhamos até o carro, contentes, e, ao sentarmos, o motorista lembrou que era o dia proibido para sua placa no rodízio de veículos paulistano. Rimos da nossa má sorte e caminhamos até o metrô.

Nosso acordo foi interrompido pela morte de Mindlin, em 2010. A coleção da Globo está em andamento -faltam dois dos cinco volumes-, num primoroso trabalho de tradução de Mamede Jarouche.

Dia desses, pedirei a Estela que leia Proust no original enquanto como um doce português. Serão minhas madeleines desses dias com o maior leitor do mundo.

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