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Música

Toca Beethoven!

Depois de Rieu, Brasil recebe András Schiff

RESUMO
Onda recente de grandes pianistas em turnê pelo Brasil traz para o mundo da música clássica os dilemas culturais da popularização. Pianistas, críticos e amantes de concertos especulam sobre o recente interesse mundial pela área e suas possibilidades no país, que recebe o virtuose húngaro András Schiff nesta semana.

JULIO WIZIACK

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EM MENOS DE DOIS anos, o Brasil recebeu alguns dos principais pianistas estrangeiros da atualidade: por aqui passaram o britânico Paul Lewis, o canadense Marc-André Hamelin e a portuguesa Maria João Pires. O russo Evgeny Kissin só não tocou porque seu pai morreu às vésperas das apresentações. Nesta semana, é a vez do húngaro András Schiff.

Aos 58 anos, Schiff é capaz de tocar de cor as 32 sonatas de Beethoven (seria como ouvir oito CDs sem parar). Suas interpretações de Bach são consideradas pelos críticos especializados tão perfeitas que a editora alemã G. Henle pediu que ele escrevesse nas partituras o dedilhado que usa para tocá-las (gravadas, elas somariam 20 CDs). As edições G. Henle são conhecidas como as mais fiéis ao manuscrito do compositor.

Artistas desse porte têm vindo ao Brasil com mais frequência - fruto do fortalecimento da economia brasileira e também da crise mundial, que deu um golpe nas casas internacionais de concerto. "O mundo está ficando menor [devido à crise] e eu realmente aprecio ir à América do Sul para descobrir novos lugares", disse Schiff em entrevista à Folha por email (leia em folha.com/ilustrissima)

Para ele, a situação piora quando se consideram fenômenos musicais como o violinista francês André Rieu, que faz sucesso em turnês ao redor do mundo com um repertório que mistura o popular com o erudito, gênero conhecido como "crossover".

Nesta terça-feira, Schiff dará um recital na Sala São Paulo interpretando as últimas sonatas de Haydn, Beethoven e Schubert -"três colossais obras de arte", diz. O ingresso custa R$ 62. Em maio, André Rieu lotou o Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo, cobrando até R$ 800. Celebrizou-se ao apresentar o hit "Ai, se Eu te Pego", de Michel Teló, como se fosse Paganini.

"Os tenores, Nigel Kennedy, Vanessa Mae, André Rieu, meu Deus! Isso tudo é muito prejudicial. É coisa barata", disse Schiff. "É claro que a grande maioria do público corre para isso. Os números de venda são grandiosos e para alguns isso é o que de fato importa."

COELHO A controvérsia repete na música clássica um fenômeno que há mais de uma década se dá na literatura. O sucesso de um escritor como Paulo Coelho representa o acesso ao mundo do livro por parte de novos leitores, que pouco a pouco chegarão a Machado de Assis, ou é sinal da mais pura decadência cultural? Mas, afinal, por que existe mais público para André Rieu do que para seu xará húngaro András Schiff?

O próprio Schiff responde: "A música clássica exige tempo, paciência e educação. Para ir às discotecas você não precisa de nada disso. É fácil. E uma discoteca custa mais caro do que um ingresso para um concerto. Nem é uma questão de dinheiro."

Mas hoje o fator "educação"só explica a existência de um público que "herda" a música clássica, de sua família ou de amigos. Nelson Pacífico, 82, diretor aposentado da IBM, ouve música erudita "desde que se conhece por gente".

Pacífico é filho de um imigrante italiano que se firmou em São Paulo fabricando móveis para gramofones. "Todos os meus irmãos estudaram piano. Meu pai acreditava que aquilo era importante. Ainda me lembro da primeira vez que fui ao municipal, aos 11 anos", disse. "Foi como ser emancipado."

A paixão pela música é tamanha, que Pacífico chegou a comprar um pacote para a Alemanha, onde, no final do ano, irá assistir ao "Fidelio", única ópera escrita por Beethoven. "A música me faz viajar, literalmente", disse.

Uma das artimanhas do violonista Fábio Zanon para estimular seus dois filhos a se interessar por música clássica é brincar de reconhecer os instrumentos de uma orquestra no rádio do carro. Aos cinco anos, o pequeno Francisco não erra uma e diz: "Eu amo Mozart".

Também funcionou assim com Fábio Martino, 23, que pertence à nova geração de pianistas brasileiros no exterior. "Quase todo domingo, eu ia com minha mãe ao Theatro Municipal assistir aos concertos. Também via minha irmã tendo aulas de piano com minha avó", diz. "A história foi se desenvolvendo de tal maneira que, em determinado momento, a música já fazia parte da minha vida."

Essa tradição explica em parte por que, há séculos, as pessoas repetem o ritual de comprar um ingresso, vestir sua melhor roupa, e passar cerca de duas horas, em silêncio, ouvindo um pianista tocar.

POP Existem iniciativas de tornar a música clássica mais "pop". A Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) tem programas de palestras que ensinam o público "a ouvir". Também há concertos a preços baixos, aos domingos.

Na Rádio Cultura FM de São Paulo, o "Pergunte ao Maestro" é um programa do maestro João Maurício Galindo que tenta "tirar a casaca" da música. No Rio de Janeiro, a OSB (Orquestra Sinfônica Brasileira) faz concertos didáticos.

Mas ainda são poucos os artistas que se aventuram no meio do país a tocar "onde o povo está" como fez o pianista Arthur Moreira Lima, que percorreu de caminhão diversos Estados tocando Bach, Beethoven e Chopin, entre outros. Seu projeto teve patrocínio obtido pelo próprio pianista. Em geral, os artistas entregam sua agenda nas mãos de agentes que organizam seus concertos.

Para o pianista Arnaldo Cohen existem os dois problemas no país. "Você precisa se acostumar à música clássica, porque ela exige compreensão", diz. "Mas também não dá para pular do pagode para uma sinfonia de Bruckner."

Por isso, ao contrário de Schiff, Cohen acredita que fenômenos como André Rieu possam funcionar como catalisador. "Não dá para colocar tudo no mesmo saco, mas uma coisa pode servir de ponte para outra", disse.

Para Cohen, tudo isso ajuda a entender por que existe uma crise nesse mercado. Segundo ele, que até recentemente morava em Londres e tocava nas principais cidades da Europa, a Itália, por exemplo, "deve ter perdido pelo menos metade das sociedades de concerto nos últimos 40 anos". "Esse mundo está diminuindo. Vivemos uma crise", diz. "Isso acontece na França, na Alemanha." E, na Alemanha, existe uma lei que obriga a iniciação musical nas escolas.

No Brasil, houve diversas tentativas no país de popularizar a música clássica a partir das escolas. O compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos (1887-1959) convenceu o presidente Getúlio Vargas (1930-45) a tornar obrigatório o ensino de coral no país. Mas acabou no governo seguinte.

Recentemente, a Associação dos Fabricantes de Instrumentos Musicais emplacou no Congresso um projeto que tornou obrigatório o ensino de música nas escolas.

Nos EUA, já existia uma legislação desse tipo, mas o presidente George W. Bush acabou levando essa iniciativa abaixo. Segundo Alex Ross, crítico de música da revista "New Yorker", em seu livro "Escuta Só" (Companhia das Letras), isso ocorreu porque, em 2002, Bush assinou uma lei que recompensava escolas que "cumprissem certos padrões em matérias centrais -leitura, matemática e ciências".

Resultado: elas deixaram de investir em música e passaram a focar mais nessas atividades. Só na Califórnia, as matrículas em cursos de música caíram quase pela metade, passando de 1,1 milhão para 589 mil, entre 1999 e 2004.

Para o crítico, seria mais fácil ampliar o público de música clássica se ela pudesse ser vendida como "essencial", algo que, uma vez consumido, deixasse o ouvinte mais inteligente, por exemplo. Essa estratégia quase funcionou quando, em 1993, pesquisadores nos EUA fizeram um teste com 36 alunos de graduação.

Eles foram submetidos a dez minutos da "Sonata para dois pianos" de Mozart e tiveram resultados melhores em testes de QI do que os que não ouviram a peça. Conhecido como "efeito Mozart", ele jamais foi comprovado. Mesmo que fosse, para Ross, é "improvável que as crianças se apaixonem por música que lhes é administrada como se fosse vitamina".

FEBRE Então, o que explica a febre que existe entre os aficionados por música clássica? O que leva uma pessoa de 82 anos a cruzar o oceano só para ouvir Beethoven do outro lado do mundo?

"É a fagulha", diz Nelson Pacífico. "Jamais me esquecerei, por exemplo, do impacto da vibração do som em mim quando ouvi Arthur Rubinstein. Eu me arrepio até hoje só de lembrar."

"É desnecessário desvendar as estruturas de composição de Bach para perceber que sua música nos coloca naturalmente um degrau acima da realidade", diz o pianista Fábio Caramuru. "É como se fosse uma oração."

São essas nuanças que fazem os compositores soarem ainda com tanto frescor. András Schiff diz que a música de Beethoven, por exemplo, o mudou como pessoa.

"Ele se desenvolveu devagar e nada lhe chegou de forma fácil", diz. "Beethoven era uma pessoa com profundos princípios morais e éticos e com ideias sociais e políticas muito fortes. Tudo isso me deu força e coragem para os tempos confusos de hoje."

Para os pianistas, é essa compreensão do compositor que justifica as infindáveis horas de estudo diário e solitário do piano.

"Para mim, é um prazer entrar em contato com a 'vida' de um compositor a cada nova peça que estudo", diz Fábio Martino. "Essa música é capaz de transportar os sentimentos."

"No fundo, as pessoas continuam indo aos concertos porque querem partilhar dessa poesia, para ver um artista dar tudo de si para comunicar aquelas vozes que chegam no passado em um momento em que o tempo parece parar [a duração do recital]", diz a premiada pianista venezuelana Gabriela Montero. "A música tem o poder de mudar as pessoas. Felizmente, comigo isso acontece todos os dias."

Para Pacífico, não é preciso entender a música. "Basta se abrir para as emoções que os sons despertam. O problema é que ninguém gosta de sentir muita coisa, porque sentir nos obriga a pensar sobre o que estamos sentindo. O mundo de hoje leva a gente para fora da gente, o tempo inteiro. É a internet, o telefone, a agitação da vida moderna. A música de Beethoven, de Haydn ou de Schubert nos obriga à introspecção. E ninguém está a fim desse negócio nos dias de hoje."

E você, ilustríssimo leitor, está a fim?

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O violonista Fábio Zanon brinca com seus filhos de reconhecer os instrumentos de uma orquestra no rádio do carro. Francisco, 5, não erra uma e diz: "Eu amo Mozart"

"Beethoven tinha profundos princípios morais e éticos e ideias sociais e políticas fortes. Isso me deu força e coragem para os tempos confusos de hoje", diz Schiff

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