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Literatura

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Mar de Lúcio

Contos mostram face ensolarada de Cardoso

VALÉRIA LAMEGO

RESUMO Conhecido pelo estilo sombrio, Lúcio Cardoso (1912-68) tem seus contos reunidos em livro pela primeira vez. Nesta versão condensada de sua apresentação, a organizadora do volume, que sai em outubro pela Civilização Brasileira, repassa vida e obra do escritor e comenta faceta solar do "demônio" mineiro.

Disputado por boêmios e casais que fugiam dos bares agitados de Ipanema, como o Jangadeiro e o Veloso, o bar Lagoa estava cheio naquela noite clara, convidativa. Uma festa, no apartamento logo acima do bar -a casa do escritor Lúcio Cardoso-, agitava a calma vizinhança da Lagoa.

O ano, 1951. Lá pelas tantas, no auge da festa e do bar, no qual notívagos enchiam as mesinhas da varanda, um homem, quase nu, se joga da janela do escritor e cai bem em cima dos toldos verdes que até hoje cobrem a varanda do bar histórico. Susto geral. Ninguém se feriu. E o louco anfitrião sumiu pelas alamedas escuras.

Mas a lenda daquele salto cobriu o escritor, que viveu todas as suas experiências no limite. Brincou com a morte; flertou com a loucura, rompeu dolorosamente com alguns padrões éticos e estéticos e deixou para a literatura brasileira páginas e mais páginas de pura prosa poética, dramática e sensivelmente expressionista, como nenhum outro autor brasileiro do período, marcado por lutas ideológicas e de poder literário.

Na mesa do bar, pedia lápis e papel -quem tivesse olhos para ver que visse. Bebendo chope, "transfigurando tudo pelo verbo".

Lúcio nasceu em 14 de agosto de 1912, em Curvelo, região central de Minas Gerais. Caçula de uma família de seis irmãos, conheceu as águas oceânicas ainda menino, quando, aos 11 anos, se mudou com a família de Belo Horizonte para a Tijuca, zona norte do Rio.

Entre os anos 1940 e 1960, o convívio com o mar foi cotidiano. Elegeu Ipanema como seu lugar e lá viveu, palmilhou suas ruas estreitas entre o mar e a lagoa, sempre descalço, e transformou sua casa num centro irradiador de arte, boemia e literatura. Bebeu vinho e uísque até morrer, em setembro de 1968, em consequência de um AVC que paralisou seu lado direito, impossibilitando-o de escrever.

"Adeus, o silêncio da rua é perfeito -continuo insone e vagabundearei um pouco por essas calçadas desertas, seu, Lúcio", escreveu a Vinicius de Moraes em 1934. A amizade com Vinicius e o escritor Octávio de Faria, no início dos anos 1930, marca a trajetória dos primeiros anos de vida literária.

Aos 22, lançou "Maleita", logo considerada uma revelação da escola regionalista na ficção brasileira. Celebrada pela crítica carioca e paulista, a novela fala da experiência de seu pai na fracassada construção de um núcleo urbano em Pirapora (MG), devastada pela malária. Em 1935, publicou "Salgueiro", sobre o morro carioca homônimo, também em tons regionalistas, de denúncia.

Os primeiros romances foram elogiados. De Mário de Andrade recebeu afagos comedidos; Carlos Drummond de Andrade o saudou com entusiasmo; Jorge Amado publicou uma crítica política e social. "Ainda um romance branco [...] nota-se, no entanto, uns quadros fortes, com homens nus", escreveu sobre "Maleita", apontando, como defeito, sua "intensidade poética".

Lúcio logo intuiu que o projeto do romance social idealizado por Jorge Amado, José Lins do Rego, Amando Fontes, entre outros -sem falar no romance proletário- o distanciava da sua experiência de leitor de grandes autores como Dostoiévski, Edgar Allan Poe, Julien Green, André Gide, Virginia Woolf, Nietzsche e Thomas Hardy.

DEMÔNIO "A política esmaga a literatura", sustentaria mais tarde. Em pouco tempo, apagou os conceitos do romance regional e social, nos quais a coletividade sobrepunha a individualidade, o sujeito e, sobretudo, a linguagem poética. Deu início, então, ao seu projeto particular, individualista e lírico de literatura. Em carta de 1935 para Vinicius, decreta: "Reneguei a 'Maleita' e o 'Salgueiro'. Não penso agora senão no 'Demônio'."

E o dito-cujo veio em rápida e intensa cavalgada. Em 1936, escreveu o intimista "A Luz no Subsolo", que levou Mário de Andrade a repensar a literatura feita naquele momento. Apesar de considerar a leitura penosa e difícil, confidenciou ao jovem escritor: "Seu livro me fez percorrer escalas de vaidade pessoal, de esforço de compreensão, de desejo de gostar, de prazeres reais e de impossibilidades pessoais de acertar".

O escritor paulistano reconheceu ali um sopro de novidade. Mas o descontentamento do mainstream literário com as obras de Lúcio continuou em 1939, após o lançamento de "Mãos Vazias" (1938).

Em carta a Lúcio, o poeta Manuel Bandeira fala de seu mal-estar após a leitura de uma obra marcada pela inverossimilhança: "Há uma realidade que o romancista não pode afastar deliberadamente, e você parece assim proceder. Os seus romances nada perderiam de sua rica criteriosidade, respeitando a verossimilhança essencial das aparências".

As questões eram tão tensas e polarizadas que, numa discussão na Livraria José Olympio, em 1937, Lúcio trocou socos e pontapés com o pernambucano José Lins do Rego. Mas, já na década de 1950, diante da sua admiração por Guimarães Rosa e seu "Grande Sertão: Veredas", fez as pazes com o romance regionalista ou do norte.

Sua popularidade cresceu nas décadas de 1940 e 50, ainda mais entre jovens autores, como Clarice Lispector e Fernando Sabino. O "demônio" entra de vez em sua obra quando esboça a trilogia "Mundo sem Deus", composta pelas novelas satânicas "Inácio" (1944), "O Enfeitiçado" (de 1947, foi publicada em 1954) e "Baltazar" (postumamente).

Sem jamais ter abandonado os cenários mineiros, sempre desvelando a decadência da família brasileira patriarcal em dois de seus principais livros -"Dias Perdidos" (1943) e a obra-prima "Crônica da Casa Assassinada" (1959)-, deu a esses lugares um drama íntimo e profundo, sem concessões ao que não fosse profundamente humano e revelasse a crueldade subjetiva das relações pessoais e sociais.

Estudava cada gesto -principalmente as sombras, como vemos nas anotações de seus cadernos-, até a mais sobrenatural das visões de seus personagens, muitos deles decalcados de fábulas religiosas.

Teve também rara sensibilidade gráfica: seus textos vinham acompanhados de trabalhos de artistas como Oswaldo Goeldi, Santa Rosa, Marcelo Grassmann, e do próprio Lúcio, que se aventurou a desenhar alguns de seus textos.

Lúcio escreveu 15 romances e novelas, roteiros cinematográficos e peças de teatro, o insuperável "Diário", poemas, filmes e quadros, muitos dos quais realizados nos últimos anos de sua vida -impossibilitado de escrever por causa da doença, viu na pintura sua última forma de expressão.

CONTOS Belos e desconhecidos, seus contos ficaram por mais de 70 anos escondidos em velhos jornais das décadas de 1930 e 1940. O que explica esse fenômeno? Talvez nossa eterna fome pelo novo não encontre espaço para a recuperação de uma literatura perdida.

Jovens autores não leem os tradicionais autores brasileiros, uma tendência marcante de nossa literatura contemporânea; mas o fato de Lúcio ter ficado num "entrelugar" da cultura brasileira não ajudou em nada a recuperar sua obra.

Homossexual, foi tido pela esquerda como um conservador, por ter preterido as questões sociais e abraçado a liberdade lírica; pregou em seu "Diário" um forma de pensamento que passa de Nietzsche às alegorias cruéis de um catolicismo estético; acreditava em Deus e não gostava da imagem de um Cristo apaziguador. No fundo, era um grego que vestia as sandálias dos santos romanos. Tinha culpa. E a confessava.

Em "Contos da Ilha e do Continente", seu primeiro volume de narrativas curtas, foram reunidos 27 contos e uma novela, "Céu Escuro", cuja última publicação data de 1940 (leia o conto "Simples Encontro" à pág. 10). Em vida, que se saiba, publicou dois contos em livro, ambos em coletâneas.

Com seu centenário de nascimento, celebrado no último dia 14, vêm saindo volumes de material inédito ou disperso -a poesia completa e trechos jamais publicados de seu "Diário", pela editora Civilização Brasileira, organizados por Ésio Macedo Ribeiro. Um filme que dirigiu, "A Mulher de Longe", também foi recuperado pelo cineasta Luiz Carlos Lacerda.

Concentrada entre as décadas de 1940 e 1950 no "Letras e Artes", primoroso suplemento literário do jornal "A Manhã", a sua produção de contos chega a mais de 300 textos. Parte substancial foi dedicada ao mundo do crime e da urbe carioca na década de 1950: são os contos policiais, praticamente fábulas urbanas, que serão reunidas em "Crime do Dia", a sair em 2013.

Nos "Contos da Ilha e do Continente", inaugura um novo topos em sua prosa: o mar. E se arrisca no mundo fantástico de Allan Poe.

Suas primeiras colaborações literárias em jornais são de 1930, em contos que trazem um jovem autor navegando nas águas da incerteza estilística, tateando seu universo de possibilidades temáticas. Entretanto, o mais intenso e criativo período de sua vida foram os anos de 1940 e 1950, quando leva para a literatura sua paixão pelo mar e pelos encantos das ilhas.

O mar de Lúcio, de certa forma, representa a instabilidade do novo mundo, medida numa balança em que os pesos pendem sempre irregularmente entre as escolhas da vida e um Deus traiçoeiro e vingativo; entre os desejos da carne e a religião; a vida e a arte.

Tempos de guerra, fracassos pessoais e dívidas, os anos de 1940 foram também uma década de amizades, quando conhece Clarice Lispector, Fernando Sabino e outros jovens escritores e artistas, como a portuguesa Vieira da Silva e seu marido, o pintor húngaro Arpad Szenes.

Foi também o tempo do amadurecimento, quando celebrou seus 30 anos. Produziu incansavelmente, publicou e escreveu a maior parte de suas novelas e dos seus textos para o teatro. Além das referências ao mar, nos anos 1940 Lúcio flerta com a literatura fantástica de Poe, levando sua experiência com as novelas satânicas a uma narrativa hiperbólica. O resultado foram os contos "Olhos Mortos", de 1946, e "A Escada", de 1947.

Essas duas narrativas revelaram a dupla identidade do escritor, até então desconhecida ou pouco lembrada: o autor de contos, em especial contos que flertam com o fantástico. A obra literária e artística de Lúcio, quando mencionada, é imediatamente vinculada ao romance. Nos volumes inéditos, encontramos um grande contista, que usou a técnica do conto moderno, acrescentando ao fantástico, gênero europeu e americano por essência, um toque local.

Seus contos geram sentimentos de enclausuramento, dor, dúvida e angústia e representam o fracasso do homem moderno.

Mas sempre há uma brisa e um horizonte, onde o ar é limpo e o verde dominante.

Lúcio viveu todas as suas experiências no limite. Brincou com a morte; flertou com a loucura, rompeu dolorosamente com alguns padrões éticos e estéticos

O 'demônio' entra definitivamente em sua obra quando esboça a trilogia 'Mundo sem Deus', composta pelas novelas satânicas 'Inácio', 'O Enfeitiçado' e 'Baltazar'

O mais intenso e criativo período de sua vida foram os anos de 1940 e 1950, quando leva para a literatura sua paixão pelo mar e pelos encantos das ilhas

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