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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Os desafios do mestre

São Paulo, anos 2000

KIKO GOIFMAN

CREIO QUE foi em 2004, quando meu documentário "33" entrou em cartaz, que fui além dos cumprimentos e me aproximei de Jean-Claude Bernardet. Na ocasião, ele escreveu uma resenha elogiosa sobre meu filme no extinto "Mais!", da Folha, o que me deixou feliz, pois o considerava o pensador mais instigante de nosso cinema.

Com os anos, comecei a frequentar o apartamento dele, no edifício Copan. Um dia, fui com o roteirista Hilton Lacerda. Estávamos entusiasmados com o argumento de um filme que faríamos juntos, uma ficção sobre fobias, e queríamos a opinião do mestre.

Falamos longamente, Jean-Claude ouviu. Ao final, disparou: "Isso é o argumento de um filme de terror, o que não é um problema. O problema é que é o argumento de um péssimo filme de terror". E vaticinou: "Está uma merda".

Cabisbaixos, Hilton e eu fomos tomar uma cerveja. Era difícil assumir, mas Jean-Claude tinha razão.

Meses depois, mudamos toda a lógica do filme, mas mantivemos a ideia de abordar fobias. Trabalharíamos de outra forma, introduzindo o inesperado na ficção, com atores fóbicos e não fóbicos, e o filme ganharia em ousadia.

Liguei, tímido, para Jean-Claude. Falei das mudanças e o convidei, sem jeito, para assumir o papel principal. Ele nunca tinha sido protagonista, só feito participações em filmes, mas topou na hora.

Foi então que nossa relação mudou de vez. Chego a esquecer que, nos anos 80, quando eu estudava ciências sociais na UFMG, Jean-Claude era nosso ídolo pelo que escrevia sobre cinema -na época, a bibliografia da área era quase inexistente. Cheio de medo, encarei o desafio a que me propus, sendo eu o diretor e ele o ator. Foi difícil.

Como conseguir dinheiro para filmar não é fácil, o tempo passou. Em 2006, o festival de documentários "É Tudo Verdade" fez uma homenagem a Jean-Claude. Na mesa, estavam comigo Amir Labaki, Carlos Augusto Calil e Eduardo Coutinho. Este último fez Jean-Claude se emocionar ao dizer que sua obra "Cabra Marcado para Morrer" era uma resposta aos artigos que ele escrevia. Sentado numa das últimas fileiras, ele deixou a sala chorando. Na mesa, lá na frente, disfarçamos as nossas lágrimas.

Em 2007, pudemos enfim trabalhar com afinco em "FilmeFobia". Diante daquele homem que sempre topava desafios, eu me senti na gostosa obrigação de ser ousado.

A cada visita ao Copan, eu propunha algo novo, e a resposta sempre era sim. Com problemas na visão, ele topou que o personagem também tivesse essa crise. Mais: sugeriu que filmássemos um tratamento no qual ele recebia injeção dentro dos olhos. Filmamos.

Pedi que o personagem fosse, assim como ele, HIV positivo. Outra vez Jean-Claude topou.

Pedi ainda que ele, já com mais de 70 anos, descesse um poço de 8 m de profundidade amarrado por uma corda. Novamente concordou, mesmo sabendo que o poço, fechado por muitos anos, havia desenvolvido fauna e flora arredias ao corpo humano.

Lembro cada visita ao Copan, sua fala sábia, as viagens que fizemos com "FilmeFobia". Em 2008, na Suíça, soube depois que, durante o debate do filme, Jean-Claude dançava às minhas costas. A besta aqui respondendo, compenetrado, e ele bailando atrás de mim, para risos da plateia.

Senti tanto prazer com essa relação que estamos de novo juntos em um filme, num projeto em andamento. As memórias que relato estão mais vivas que nunca, sempre com a presença de minha mulher, Cláudia Priscilla, assistente de direção, e de nosso filho, Pedro, que acompanhou as filmagens.

Hoje, aos 9, Pedro percebe Jean-Claude como o avô que nunca teve. O melhor resumo dessa memória é ver Jean-Claude deitado no set de filmagens, concentrado para uma cena, e Pedro deitado ao seu lado, fazendo um cafuné gostoso naqueles cabelos brancos e finos.

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