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Cinema

A multiplicação dos curtas

Como o digital revolucionou a produção de filmes curtos

BRUNO GHETTI

RESUMO Em tempos de câmeras digitais e YouTube, a produção de filmes curtos se multiplicou e sofreu mudanças radicais. Para a pesquisadora Ivana Bentes, eles saíram do campo cinematográfico para o da comunicação e expressão. Se no passado havia cota para exibição em cinemas, hoje qualquer um pode vê-los em casa.

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No fim de agosto, o 23º Festival Internacional de Curtas de São Paulo - Kinoforum deu ao curta "Através", de Amina Jorge, 24, o prêmio de revelação. A diretora estuda cinema e fez em película seu primeiro filme. Ela optou por um festival para divulgar seu curta, que não está na internet.

Há dez anos, Amina seria o caso arquetípico do diretor de curtas no Brasil; no cenário atual, está mais para exceção. Em tempos de câmeras digitais e YouTube, a produção de filmes curtos sofreu mudanças radicais: parte expressiva dos diretores não estuda cinema, festivais deixaram de ser o único local de exibição e o uso de película rareou.

Se no passado a dificuldade de cineastas brasileiros era ter uma câmera na mão (a ideia na cabeça todos diziam ter), hoje qualquer celular razoavelmente bem equipado resolve parte do problema. A fórmula glauberiana que define o essencial cinematográfico segue valendo, mas houve inversão na hierarquia dos elementos: difícil hoje é ter a tal ideia na cabeça.

Ainda assim, filma-se como nunca. Desde meados dos anos 2000, filmes rápidos multiplicam-se por sites como YouTube e Vimeo. Os curtas deixaram de ter necessariamente intencionalidade artística: antes restritos a estudantes ou profissionais de cinema, são agora feitos diariamente, aos milhões, sem que muitos de seus autores saibam que estão criando produtos cinematográficos.

"Muita gente faz hoje curtas para se comunicar. A produção amadora explodiu com fins distintos da expressão estética ou visando carreira no cinema", diz a pesquisadora Ivana Bentes, diretora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ela se dedica há anos às questões relativas ao papel da produção audiovisual e das novas tecnologias na cultura contemporânea. "O fenômeno extrapola a questão cinematográfica: entrou no campo de comunicação e expressão. É parte da cultura de massa."

Intenções à parte, uma produção interessante tem surgido na rede. "É claro que tem muito lixo; o YouTube é o esgoto público das imagens. Mas, nos últimos cinco anos, há claramente uma melhora na qualidade da produção. Há curtas excelentes sendo feitos", diz Ivana, que já atuou em festivais na ultramoderna função de "curadora de YouTube".

Em suas buscas por pérolas nesse "esgoto" virtual, ela tem observado trabalhos expressivos, como a animação "O Paradoxo da Espera do Ônibus" (tinyurl.com/292xea), de Christian Caselli, jornalista que se destacou no audiovisual alternativo carioca, e o midiativista "Ato contra a Comemoração do Golpe de 64" (tinyurl.com/8azjwt5), do coletivo Fora do Eixo.

Os dois exemplos acima são muito diferentes entre si, mas têm duas características comuns aos bons filmes da web: poucos recursos e criatividade.

À MODA ANTIGA Se a internet é a grande vitrine para a produção amadora, diretores de curta "à moda antiga" -como Amina Jorge-, com finalidades essencialmente artísticas, têm como núcleo de resistência os bons e velhos festivais. Afinal, é prestigioso ter um filme escolhido por uma mostra -e mais ainda sair de lá com um prêmio.

"Os festivais também permitem testemunhar a reação do público", diz Amina, que foi a todas as sessões de seu curta no Kinoforum. "Através", criado como um exercício na faculdade de cinema, mostra um diálogo entre duas amigas.

Com tecnologia cedida pela universidade, a diretora só precisou desembolsar míseros R$ 600. "Juntei dinheiro com a ajuda de amigos, parentes e professores", diz Amina, que aprendeu em sua estreia a lição primordial a um diretor de curtas: é preciso contar com a solidariedade alheia.

Quem também conhece o valor da camaradagem é Clarissa Knoll, 35, outro destaque no circuito dos festivais. Com seu filme de estreia, o documentário fake "Cine Camelô", em que um ambulante vende a transeuntes o direito de estrelar um curta, ela brilhou no último Festival ND/NF (Nova York) e colheu elogios do "New York Times".

"Fazer curtas exige espírito de colaboração. Convidei amigos e gente que já tinha trabalhado em cinema. Aos poucos, as dificuldades foram resolvidas e tudo funcionou bem", diz a cineasta, que usou no filme cada centavo dos R$ 30 mil conseguidos em edital do MinC (o valor é baixo se comparado aos de outros editais do gênero, que ficam em torno dos R$ 80 mil).

Por ora, nem Amina nem Clarissa colocarão seus curtas na internet. Muitos festivais se recusam a aceitar filmes disponíveis on-line, e ambas querem continuar a exibir suas produções em mostras.

De qualquer forma, festival é o que não falta no Brasil. Hoje, 140 das principais mostras de cinema brasileiras (93% do total) têm programas de curtas; pelo menos outras 40 dedicam-se exclusivamente à categoria. E existe muita segmentação -há festivais só para filmes de menos de um minuto, outros apenas para obras filmadas por celulares, outros somente para infantis, e por aí vai.

O número de curtas em festivais dá uma medida do crescimento da produção nacional. Em 2012, o Kinoforum teve 583 curtas brasileiros inscritos -bem mais, por exemplo, que em 2000 (111 inscritos). Mas a quantidade não mudou muito desde 2005 (571 filmes), quando o digital despontou.

O que mais chama a atenção é o crescente desprestígio dos curtas em película, cuja produção é mais cara tanto pelo filme em si quanto pelo processo de revelação. Até 2004, o Kinoforum só aceitava inscritos nesse suporte. No ano seguinte, com a abertura para o vídeo, o digital dominou os formulários, somando 72% dos inscritos. Em 2012, o índice subiu para impressionantes 87%.

Estaria o curta em película em vias de extinção? A diretora do festival, Zita Carvalhosa, crê que não. "'Acabar' é uma palavra forte. Mas, em termos de exibição comercial de curtas e longas, a tendência é que seja cada vez menos em película, que é mais cara."

Diretor do Curta Cinema, maior festival carioca, Ailton Franco Jr. é mais radical. "Para 2012, prevemos a exibição só em digital. Como purista, não gosto, mas isso trará economia de transporte e taxas, além de agilidade para formatar a grade de programação", diz.

EXIBIÇÃO O acesso a curtas-metragens também é bem mais fácil hoje que no passado. Além da web, programas de TV e extras de DVDs trazem o formato ao conforto do lar do espectador. No escuro do cinema, porém, são raras as projeções fora dos festivais.

Nem sempre foi assim. Entre 1975 e 1990, uma lei nacional, a "Lei do Curta", exigia que cada sala exibisse um curta brasileiro antes de um longa estrangeiro. A norma deixou de ser aplicada na era Collor, quando a produção nacional ficou à míngua.

Desde então, é difícil curtas antecedendo a exibição de longas -salvo iniciativas esporádicas, como a "Sessão Vitrine", organizada em 2011 pela distribuidora Vitrine Filmes. "A ideia era exibir curtas antes de longas-metragens de duração reduzida, de cerca de 80 minutos, de forma que houvesse um diálogo entre ambos", diz Silvia Cruz, idealizadora do projeto, atualmente está engavetado, à espera de patrocínio.

"Muitas vezes, o curta era até mais lembrado pelo público que o longa. Foi o caso de 'Recife Frio' [de Kleber Mendonça Filho]", diz.

"Recife Frio" (tinyurl.com/bmel2g3) é mesmo um caso raro entre os curtas. Fantasia delirante sobre como seria um Recife quase glacial, o filme fez mais barulho no Festival de Brasília 2009 que muitos longas em competição.

Esse e outros curiosos curtas de Mendonça, 43, pavimentaram seu caminho rumo aos longas, e ele é hoje um de nossos cineastas mais promissores -"O Som ao Redor", seu primeiro filme longo de ficção, foi premiado em Gramado.

"Curtas são tão importantes quanto longas, mas a sociedade não pensa assim. A principal dificuldade é fazer serem vistos. Hoje entendo por que muitos cineastas não voltam a eles: o mundo está mais preparado para receber um longa", diz Mendonça, que atualmente não realiza curtas, mas diz que voltaria ao formato.

TENDÊNCIAS O êxito de sessões como a Vitrine reitera a força dos curtas brasileiros. Nossos filmes costumam ter boa aceitação no exterior, a exemplo de "Ilha das Flores" (tinyurl.com/d27jy3c), curta de 1989 de Jorge Furtado, divertida crítica à sociedade de consumo a partir da história de um tomate, premiada em Berlim; e "Um Sol Alaranjado" (2002), de Eduardo Valente, sobre uma relação entre pai e filha, laureado em Cannes.

"Às vezes, filmes de um mesmo país se parecem. No Brasil, por ser tão grande, há a chance do imprevisível: nossos filmes são muito variados", diz Zita Carvalhosa.

Mas, de uns tempos para cá, algumas tendências estéticas gerais têm surgido, e não só no Brasil. Ivana Bentes destaca entre elas os vídeos-diários. "Mas mais interessantes são os remixes e as paródias. Todo o audiovisual feito até então vira banco de dados para a reapropriação, em filmes que recombinam imagens já existentes e usam os clichês, relidos com comentários originais", diz.

Analisar o tipo de curtas produzidos em um certo período fala muito sobre o tempo em que foram feitos. Enquanto muitos longas demoram tanto a estrear que soam fora de contexto ao chegarem às salas, curtas são finalizados com rapidez e podem transmitir com muito mais agilidade o espírito da época em que foram feitos.

Além disso, mais distantes de interesses comerciais, curtas tendem a ser mais autorais que longas, representando também um espaço de maior experimentação e liberdade criativa. Ainda são vistos por muitos como mero treino para diretores que querem se lançar nos longas e, embora em muitos casos isso também seja verdade, é uma visão um tanto depreciativa.

Se a democratização dos curtas lhes dará mais prestígio ou resultará em mera banalização do formato, ainda não é possível dizer. Por ora, diretores de curtas ainda convivem com algo que Kleber Mendonça, como diretor de longas, percebeu: "Eu já era cineasta quando fazia curtas, mas, com o longa, as pessoas dizem: 'Uau, você chegou lá'. Isso não é verdade: eu já estava 'lá'."

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