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Entrevista - Horácio González

Biblioteca circulante

A BN argentina entra na guerra pró-Kirchner

SYLVIA COLOMBO

RESUMO O presidente da Biblioteca Nacional da Argentina, Horácio González, comenta projetos editoriais como a reedição da revista "Proa", analisa aspectos políticos e intelectuais de sua gestão, que busca imprimir perfil social à instituição, e dá sua visão sobre a polarização ideológica que domina o país de Cristina Kirchner.

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O prédio da Biblioteca Nacional da Argentina, suspenso em altos pilares, é um cartão-postal portenho. Nos últimos anos, mais do que mera moderna sede da instituição bicentenária fundada pela junta que declarou a primeira independência do país, em 1810, a BN virou também um agente que influencia o debate político, hoje tão dividido entre kirchneristas/peronistas e a oposição.

À frente da instituição está Horácio González, 68, um dos ideólogos do grupo Carta Abierta, de intelectuais que apoiam o governo. O sociólogo, que se doutorou no Brasil durante a ditadura em seu país (1976-83), é presença constante na mídia, em intervenções de apoio a Cristina Kirchner.

Chegou a se exceder, como no episódio em que tentou impedir a participação do liberal Mario Vargas Llosa no salão do livro portenho de 2011, por não se alinhar ao pensamento dominante.

González, porém, reivindica um papel mais amplo para a BN: com um frenético calendário de publicações, debates, eventos literários e oficinas, quer tornar a instituição um órgão de consulta "em diversos níveis".

Um dos lançamentos mais recentes é a edição fac-similar de todos os 18 números da mítica revista "Proa", fundada em 1922 por Jorge Luis Borges, e que reúne produção deste, Macedonio Fernandez, Roberto Arlt e outros.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista que González concedeu à Folha, na sede da biblioteca -a íntegra está em folha.com/ilustrissima.

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Folha - Qual deve ser a função de uma biblioteca latino-americana?

González - Primordialmente, uma biblioteca deve voltar-se à pesquisa. Mas aqui, com nossas condições econômicas e sociais, isso é impossível, por isso creio que o que se ajusta mais é um modelo que a torne acessível em diferentes níveis. Em nossos países a função é aproximar o livro do cidadão. Por isso valem ações como eventos, edições populares etc.

Sou partidário de que uma instituição tenha várias possibilidades de consulta. Uma superespecialização leva a uma sacralidade, a biblioteca vira um sarcófago.

O que pensa sobre a digitalização do acervo de grandes bibliotecas?

Os benefícios são mais do que conhecidos. O principal é dar acesso sem fronteiras às obras, e é inegável o avanço nesse sentido. Por outro lado, a digitalização virou fetiche universal em bibliotecas. Não há bibliotecário no mundo que não fale essa novilíngua.

É preciso discutir também o que se perde com o fim da relação leitor-livro físico. O contato tátil é parte da experiência da leitura e tendo a achar que o livro físico é insubstituível na apreensão de significado. O vínculo digital deveria ser só um tipo de vínculo, um recurso a mais para pesquisa, não um substituto. O livro é uma forma perfeita, não vai desaparecer.

O programa de publicações da BN traz obras importantes a preços acessíveis. Qual deve ser o papel da instituição no mercado editorial?

Há grande discussão sobre se o Estado deve ter editora própria. A Argentina não tem, a nossa é a que chega mais perto disso. Publicamos com subsídios do governo, mas temos total liberdade para escolher os títulos.

Defendo a necessidade de o Estado cobrir o que a iniciativa privada não faz. Certo tipo de publicação científica, e até um tipo de autor jovem que não teria espaço numa editora privada, mas a questão é como avaliar esses escritores e escolher entre os consagrados a serem reeditados.

O Estado tem má fama, e os processos de seleção de obras e autores nunca são bem-vistos pelo mercado. A tendência é enxergar clientelismo em nossas escolhas.

Por outro lado, ao fazer escolhas, uma editora do Estado não pode ter só critérios estéticos, não pode ter curadores com o perfil dos que estão no mercado. É preciso ter critérios técnicos e sociais.

Como é o programa de publicações da Biblioteca Nacional?

Promovemos obras de acervo argentino. Já temos mais de 300 livros editados em oito anos. Vão de publicações tradicionais a edições de fac-símiles, como a da revista "Proa", fotos, partituras e livros de bolso. Fizemos uma máquina de cigarros que vende minilivrinhos e que é um sucesso.

A cobertura sobre os lançamentos da Biblioteca Nacional é pequena. As razões são políticas?

Sim. O que fazemos aqui nunca é notícia no "Clarín" ou no "La Nación". Como os dois jornais estão brigados com o governo, tudo o que é iniciativa nossa não aparece.

Isso é absurdo. O que publicamos são obras essenciais do acervo literário e histórico argentino. Nossas decisões culturais são amplas, não escolhemos autores identificados com o governo. Não há interpretação da história de acordo com o relato oficial. Esses jornais promovem um grande desserviço agindo dessa maneira.

A "Proa" era a revista de Borges...

Sim, justamente. Borges combateu os antecedentes desse governo, era antiperonista, mas é o maior autor argentino de todos os tempos, está acima dos embates políticos do nosso tempo.

Os governos peronistas têm uma recordação muito obscura de Borges, porque o Borges político foi muito duro com o peronismo.

Ou seja, lançar Borges não seria politicamente afinado com o atual governo. Mesmo assim o publicamos. E mesmo assim os jornais que mencionei ignoraram solenemente o lançamento. Só para não terem de falar bem da Biblioteca.

A própria Biblioteca é cheia de símbolos convergentes entre peronistas e antiperonistas, não?

De certo modo, sim. Aqui ficava a casa onde viveram Perón e Evita até o golpe de 1955. Os militares depois a derrubaram, para destruir esse símbolo e para que não virasse um lugar de visitas laudatórias.

De certa forma, ter uma biblioteca aqui para aquele tempo significava que no lugar do mundo do peronismo deveria ser construído um mundo de civilização. De autores como Borges e Sarmiento contra a barbárie, contra todas as ideias que estão hoje em vigência.

Como vê a relação dos argentinos com as figuras de seu passado?

É uma relação muito particular. Todos de certa forma se convertem em ícones. Perón, Evita, Borges. Isso não é bom, porque perdem sua forma viva. Por outro lado, virar ícone faz com que seja mais fácil divulgar e manter seus pensamentos. A história argentina é como um medalheiro, com figuras que se contrapõem umas às outras.

Sempre me pergunto como é possível ter existido no Brasil um presidente como Getúlio Vargas, do qual se guarda até o pijama com o buraco da bala que o matou, e isso não ter feito dele um ícone popular da dimensão de Perón aqui.

O fato de o brasileiro ter menos paixões políticas que os argentinos é uma questão cultural que vale a pena investigar. De repente os brasileiros são mais felizes, não sei. Por outro lado, os argentinos vivem um estado de polêmica constante que faz da nossa história algo presente todo o tempo.

Cristina Kirchner quer substituir, na nota de cem pesos, a imagem do general Julio Argentino Roca, responsável pela campanha que no século 19 dizimou os indígenas, pela de Eva Perón. O sr. concorda?

É um debate importante, mas está baseado em argumentos reducionistas. Não creio que seja possível nem conveniente "apagar" Roca com um ato desses.

Primeiro porque está descontextualizando o personagem. Roca estava rodeado de gente que pensava de modo diferente, e seu governo foi impulsionador de uma Argentina que hoje é a que está aí.

Para uma linha da esquerda argentina, que não é a que está no governo, Roca fundou o Estado Nacional em termos geográficos e econômicos. Também teve atitudes progressistas, como expulsar representantes papais. Defendeu o Estado laico e a economia moderna. Seus ministros buscavam a novidade sem vocação repressiva.

Depois, há uma questão objetiva, que é que Roca existiu. Andou a cavalo pelo pampa, isso está e um decreto presidencial não pode mudar, é parte da história.

Roca, Mitre e Sarmiento, presidentes da época liberal da Argentina, hoje não são bem-vistos por um governo que levanta a bandeira do nacional e do popular. Acha que o kirchnerismo se identifica com a tradição federalista, dos líderes mais nacionalistas, como Rosas?

Sim, o governo fez movimentos em direção da tradição federalista. Mais para a província do que para o porto. Mais para Rosas do que para Sarmiento.

Rosas é tido como o grande defensor da soberania do país, porque o defendeu contra as invasões estrangeiras. Enquanto isso, Mitre ficou muito associado à Guerra do Paraguai, que, na Argentina, diferentemente de no Brasil, teve uma leitura crítica. Os heróis da guerra aqui não são bem-vistos hoje. Coisa que não aconteceu no Brasil ainda. No Brasil, o Duque de Caxias continua sendo um herói.

Uma opção no caso de Roca seria resgatar líderes indígenas, como o cacique Namuncurá, não acha?

Sem dúvida. Seria dar uma volta na interpretação, mas abriria outro debate. Namuncurá foi apropriado pelo Exército, até uniforme usou. Teve um filho que hoje é um santo popular no interior. Ceferino Numuncurá foi jovem ao Vaticano e lá morreu. Hoje sua imagem é comum nas províncias, é adorado pela população de descendentes, e segue sem ser aceito pela igreja.

Mas para resgatar figuras assim seria necessário que a Argentina tivesse tido um Gilberto Freyre, alguém que apontasse para essas diferenças e clamasse a mistura. Não tivemos quem reivindicasse uma integração de nossas heranças. Nem a origem mestiça de Perón, por parte de sua mãe, se aceita discutir. Há um longo caminho.

Como vê a relação da Argentina com o Brasil hoje?

Não gosto quando ouço de políticos que nossa rivalidade "está só no futebol". Isso esconde uma imensa incompreensão dos dois lados. O Brasil sempre será o grande dilema argentino. Por outro lado, o Mercosul deixa muito a desejar no que diz respeito a projetos de intercâmbio cultural.

Temos acordos com a Biblioteca Nacional brasileira e fizemos nosso Museu da Língua baseado no de São Paulo. Mas muito mais poderia ser feito. Criar um verdadeiro circuito de trânsito literário, musical e de debate entre os dois países seria muito desejável.

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'É preciso discutir o que se perde com o fim da relação leitor-livro físico. O contato tátil é parte da experiência da leitura e acho que o livro físico é insubstituível na apreensão de significado'

"Publicamos obras essenciais do acervo literário e histórico argentino. Nossas decisões culturais são amplas, não escolhemos autores identificados com o governo"

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