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Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Cruzeiro

MIGUEL DEL CASTILLO
MIGUEL DEL CASTILLO

1. Se eu não estivesse na proa deste navio de cruzeiro agora, com o vento gelado do Atlântico na cara, provavelmente estaria em casa, colocando uma música para tocar e a sopa no micro-ondas.

Todos já se concentram lá dentro, hoje tem mais uma festa que celebra o incrível fato de estarmos aqui juntos, sobre o mar, bem longe de casa.

2. O embarque foi vinte dias atrás, as pessoas faziam uma fila enorme, arrastando suas malas. Depois que subimos, as bagagens ficaram lá, ainda enfileiradas, esperando serem levadas para os quartos de cada um. É pena não ter a Lourdes aqui pra me ajudar a desfazer a mala, pendurar os vestidos, guardar o moletom e as meias na gaveta.

Não se podia fumar no corredor nem nos quartos, coletes salva-vidas estavam no armário atrás da porta, os serviços de lavanderia estariam à disposição etc.

3. Na agência de viagens me recomendaram fortemente o cruzeiro premium, mas o dinheiro do frila só dava para este. A madeira do piso de todo o convés está cheia de manchas, a descarga falha às vezes e a moça da limpeza só vai dia sim dia não no quarto. Tanto faz, realmente, conquanto que pudesse sair um pouco da cidade.

4. Tem um menino aqui, cinco anos acho, vive grudado na babá. Eu quando pequena também não largava a Lourdes

(a Lourdes não era babá, era empregada mesmo)

- Dedê

eu só sabia chamar assim e logo não estava mais sozinha, meus pais no trabalho, as bonecas, o lego espalhado no chão, a Lourdes fingindo perder no banco imobiliário. Ontem esse menino estava brincando com uns esguichos d'água perto da piscina, parou e me olhou na espreguiçadeira

- Moça por que você não sai daí?

5. Hoje saí do quarto sem bolsa, estou com a mesma saia do dia anterior. O salão já está escuro, a música mais alta, a fumaça e as luzes estroboscópicas ligadas. A festa começou.

6. A Lourdes detestava barcos, uma vez ela foi junto conosco numa viagem e ficou sentada o tempo todo, a cara negra pálida, minha mãe me dizendo pra brincar com meus primos

- A Lourdes não está bem filha

e eu do lado dela, perguntando por quê. Comia qualquer coisa, a Lourdes, não se importava com os quilos a mais, imagino que o marido também não. Se ela estivesse aqui nem cogitaria ir à festa, talvez nem cogitasse sair do quarto em momento algum.

7. No nosso apartamento o quarto em que a Lourdes ficava era bem menor do que este aqui do navio. Eu adorava ir pra lá, almoçar sentada ao pé da cama quando minha mãe não estava, deitar com a Lourdes e tirar uma soneca à tarde.

Não ligava pra maquiagem, isso eu não aprendi com ela, nem para roupas, andava desleixada, tinha uma boca grande, bonita

(eu achava)

e usava um produto no cabelo que chamava de "henê", do qual eu só sabia que deixava os fios mais lisos e cheirava muito mal, mas a Lourdes vivia de cabelo preso enquanto estava trabalhando, soltava apenas no dia da semana em que voltava para casa.

8. Não perdi muito tempo me arrumando para a festa. Tenho cada vez menos vontade de entrar. Dormi um pouco agora, sentada no convés, aproveitando a trégua do vento e aquele momento em que tocam as músicas mais lentas.

9. Falava muito pouco, a Lourdes, dizia que era "gringa", bicho do mato. Eu sempre tentava arrancar histórias dela, saber como cresceram os primeiros dos cinco filhos que eu conheci por menos tempo, como era o ex-marido, por que ela trocou de igreja tantas vezes. Mas quase nunca tinha êxito, ela me devolvia as perguntas com poucas informações

- Como foi o seu dia?

de propósito ou não, por timidez ou por vergonha, ela não me deixava continuar. Na minha infância ela me pedia que lhe ensinasse o inglês que aprendia na escola, perguntava o que a professora contou, como era meu namorado, qual música tínhamos cantado.

10. A babá daquele menino dos esguichos está na festa, acabo de vê-la sentada perto de uma janela redonda, olhando na minha direção. Desvio o olhar para o mar. Há uma praia ao longe, um pouco iluminada pela lua, talvez de alguma ilha aqui do litoral.

Nesses vinte dias o cruzeiro fez uma única parada, optei por não descer nem por alguns minutos. Um tripulante perguntou meu nome, se não queria passear um pouco, pisar em terra firme.

11. Quando ainda morávamos na Joatinga, no Rio, ir à praia era uma descida de cinco minutos. A Lourdes vinha comigo, me ajudava a catar tatuís. Colocávamos eles num pote e ela dizia que faria arroz de tatuí, mas eu nunca comi, minha mãe devia mandar jogar fora. Ela morria de medo das ondas, vivia dizendo que um dia eu a tinha salvado de um afogamento. Só me lembro de puxá-la de um jeito que parecia não fazer a menor diferença, estávamos no raso, a espuma de uma onda forte a tinha derrubado. A Lourdes se assustava com qualquer coisa.

12. No segundo passeio de barco que fizemos a Lourdes preferiu ficar em casa, já cortaria a carne e faria o gelo para o uísque do meu pai. Nunca tivemos casa de praia, mas um casal de amigos dos meus pais nos convidava bastante. Ele era empresário de alguns jogadores de futebol, tinha uma casa em Angra dos Reis e outra na serra.

Chegamos de volta e gritamos pela Lourdes. Ela não respondeu. Gritamos de novo, minha mãe foi atrás, um pouco nervosa porque a carne ainda estava na pia e as fôrmas de gelo no armário. Procurou nos quartos, na sala, na cozinha e no quartinho dos fundos, nada.

Encontrou-a na piscina, meu pai e o amigo dele a puxaram rápido, sopraram na boca e ela voltou. Estava mais pálida do que da outra vez. Minha mãe explicando

- Ela não sabe nadar deve ter tropeçado e caiu

mas, embora a Lourdes nunca tenha tocado no assunto, meu palpite é que estava tentando aprender a nadar.

13. Olho novamente para o mar. As nuvens que estavam aqui em cima se afastaram, a luz da lua está bem forte. Vejo a superfície lustrosa, escura como petróleo, a crispação das pequenas ondas num movimento oleoso e ritmado. A noite é tudo isso, penso.

14. As pessoas começam a sair da festa. Primeiro a moça jovem que só usa pérolas, o militar que sempre está de farda, a senhora com uma enorme flor na cabeça, o casal que parece estar em lua de mel, duas amigas loiras, o rapaz de óculos redondos e rosto preocupado.

A Lourdes vem caminhando toda arrumada em minha direção

(só se vestia assim em dia de festa)

me dá um beijo de boa noite, pergunta se meu pai precisa de mais algo. Vou até o quarto dela, a camisola cinza que era da minha mãe, o pente fino que ela costuma usar. Pergunto se posso dormir lá aquela noite, ela me leva de volta à minha cama, me cobre com o cobertor laranja que tenho desde os seis anos, liga a tevê e põe uma fita de desenho animado. Quando acordo no dia seguinte meu pai está fazendo vários telefonemas, minha mãe no canto, muito séria, me chama para conversar. Ela me diz que não vou ver mais a Lourdes; o coração dela não aguentou. Que a Lourdes ia virar pó de novo

(e repete para mim o versículo que diz isso)

mas eu podia guardar comigo um pouco dela até quando quisesse.

O último a sair é o barman, acompanhado da babá do menino dos esguichos d'água.

15. Talvez agora, sem o barulho da festa, enquanto todos estão dormindo para depois arrumar as malas e se despedir e trocar e-mails, telefones e combinar um encontro daqui a um mês, talvez este seja o melhor momento. Na ausência de um vaso próprio, minha mãe colocou minha parte da Lourdes num "tupperware" improvisado

- Filha, outro dia compramos um vaso bem bonito

mas nunca tive coragem de tirá-la de lá. Abro com cuidado a tampa azul, o pó cinza começa a voar com o vento. Fecho-o rápido e desse jeito atiro o pote ao mar.

16. Minhas mãos estão secas e salgadas; o creme ficou na bolsa. O dia amanhece, aquilo que eu achava ser apenas uma praia era na verdade a cidade, enorme, nosso porto de chegada, falta bem pouco, Lourdes, lembro que quando estava lá embaixo você me chamava

- Ju

nunca

- Filha

como minha mãe, nunca

- Querida

ou o que fosse, gritava

- Ju

da cozinha e às vezes eu fazia de conta que não tinha escutado só para você mais uma vez

- Ju

gruda os olhos ali no porto, é o melhor a se fazer, vai ver que o enjoo passa logo, se você beber um pouco de coca, se não comesse tanta fritura, Lourdes, me ajuda a colocar a boia e descer do barco, minha mãe não precisa do protetor agora, olha que bonita essa água tão clara, e se a gente fosse à praia?, nunca mais vi os tatuís, Lourdes, Lourdes, o gelo acabou.

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