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Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

A tradução de Pierre Menard

PAULO COELHO

Em frente ao número 900 da rua Maipú existe um hotel. No fundo do saguão está um café, onde costumava encontrar meus amigos. Estou a mais de 10 mil quilômetros de distância e jamais tornarei a cruzar suas portas e dizer "boa tarde" a Juan -o garçom que nasceu na Argentina e sonhou sua vida inteira em ter pai e mãe britânicos.

Em frente ao número 16 da Grand Rue não há nenhum hotel, mas também existe um café. Estou a alguns passos de distância e ele me espera. Costumava cruzar esta rua em 1914, ainda adolescente, indo para o restaurante Les Armures com meus pais. Nunca gravei sua fachada, porque não me interessava.

Não posso vê-lo porque há décadas enxergo apenas uma mistura de sombras e luzes, que não se traduzem nem em letras nem em imagens. Voltei para esta cidade para morrer. E morrerei como todos os seres humanos -sempre levando alguma dúvida para o túmulo, sempre esquecendo algo, sempre querendo viver um minuto a mais, sempre achando que não valeu a pena ou a dor de ter passado tantos anos em busca de respostas que os caprichosos deuses ocultaram em lugares visíveis e inatingíveis.

Como o livro, por exemplo. Não qualquer livro, já que a literatura não passa de um sonho dirigido pelo autor. Mas um único livro, aquele que ousou rebelar-se e ganhar vida própria.

Devia ter uns 12 anos quando o li. Escolhi-o pela capa: ilustrada por Ascensio Rodríguez, que era pródigo em cores duras e traços suaves. Fora traduzido tendo como base outra tradução, feita pelo francês Pierre Menard. Um poema sobre o tempo e o espaço, lembrando que as palavras existem apenas porque algum ouvido ousou registrá-las. Um poema sobre as substâncias imaginárias das quais somos feitos, onde o autor falava de outro autor e do absurdo que é a existência.

Senti vontade de abandoná-lo, mas o fascínio pela tragédia me empurrou até o final de suas páginas, onde encontrei aquilo que esperava: a Redenção. Fui consumido pelo fogo e me transformei em fogo. Fui devorado por um tigre e despertei como tigre. Fui levado para longe por um rio e voltei à sua nascente. Aquele livro -e a salvação que prometia- iriam me ajudar a crescer e a compreender o mundo.

Conta a história que fora resgatado do esquecimento em janeiro de 1417 pelo secretário papal Poggio Bracciolini, então desempregado. Seu patrão, o Sumo Pontífice João 23 (nascido Baldassarre Cossa) fora destituído de seu cargo pelo Concílio de Constanza e agora aguardava seu destino em um cárcere.

Seu autor era um grego, que quase caíra no esquecimento por causa da maneira como respondia à pergunta clássica da esfinge. Titus Lucretius Carus eliminava a magia do universo revelando que as estrelas eram feitas da mesma matéria que os homens, e que não havia nenhum sentido em nada. Mais tarde outros filósofos tratariam do mesmo tema, entre eles Kant -em "Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels"- um livro árido, que me derrotou antes que chegasse ao meio.

Lucretius escolhera o poema como forma e como sentido. Seus leitores, ao contrário dos de Kant, saíam vitoriosos. Depois de cruzados os círculos do inferno e vencidos os rios do purgatório, o céu aguardava em todo seu esplendor e glória. Mesmo sem acreditar em uma vida eterna, mesmo sem dar-nos a possibilidade de aplacar a ira divina, mesmo sem permitir que nos refugiássemos no conforto e na segurança de nossos pensamentos mais infantis, a existência é justificada pela ordem eterna, algo que mais tarde seria conhecido como Ética. Heidegger traduziria para seus contemporâneos esse conceito, chamando-o de "antropologia filosófica", onde nos abre a porta de diversas possibilidades de ação.

"De Rerum Natura" foi ao mesmo tempo o final de minha inocência e o primeiro combate -inútil- contra a morte. E a explicação no final me satisfazia plenamente, já que fui educado em uma família agnóstica, onde justificar tudo pela presença de um Ser Superior não apenas parecia superficial mas também de mau gosto estético.

Muitos anos depois, já de volta a Buenos Aires, fui trabalhar na Biblioteca Municipal de Minguel Cané, localizada em um bairro operário. Os livros se encontravam em completa desordem, e uma das minhas tarefas era classificá-los e catalogá-los. Certa tarde, quando fazia o que a prefeitura me tinha incumbido, tornei a encontrar outro exemplar de "De Rerum Natura", só que desta vez com capa diferente.

O dia anterior fora difícil, e resolvi reler seu final em busca de ânimo. Para minha surpresa, a edição estava incompleta -não havia mais redenção para a raça humana. Por ter um laço afetivo com o texto de Lucretius, escrevi um memorando pedindo que tal cópia fosse substituída. Depois de aguardar duas ou três semanas, entendendo que jamais obteria resposta, resolvi comprar um novo exemplar. Se algum dos operários da vizinhança algum dia resolvesse se aventurar no mundo dos clássicos gregos -eu duvidava muito- pelo menos encontraria uma resposta honesta ao enigma de sua vida mesquinha e repetitiva.

Um dos grandes orgulhos de minha cidade natal é ter mais livrarias que nosso vizinho Brasil. Embora minha visão já começasse a me conduzir para o vale das sombras, durante quase uma semana peregrinei por todas elas, sem conseguir nem sequer um simples "está esgotado" ou "vendemos nossa última cópia há pouco." Ninguém havia escutado falar do livro.

Revirei inutilmente a biblioteca de meu falecido pai. Recorri a alguns amigos, que contataram outros amigos, e logo versões estrangeiras começaram a chegar: "On the Nature of Things", "Sobre la Naturaleza de las Cosas", "Sulla Natura delle Cose", "Om Tingens Natur", e até mesmo a improvável edição finlandesa "Maailmankaikkeudesta". A última a ser recebida, entregue em mãos por Leopoldo Lugones, foi "De La Nature des Choses", publicada em 1888, traduzida por François-Gilles Tanni.

A todas faltava o capítulo final.

A tarefa de encontrar a tradução de Pierre Menard se tornou uma de minhas poucas razões de viver. Descobri mais tarde que este tipo de obsessão é conhecido pelos árabes como "zahir", um zona nebulosa entre o limite do conhecimento e o crepúsculo da razão.

Em conversas, os amigos sugeriam que Menard havia deturpado o original, acrescentando algo que não existia. Eu respondia que não: havia completado "De Rerum Natura" com páginas imaginadas por Lucretius. De todos os instrumentos do homem, o mais assombroso é o livro. O arado, a espada, o microscópio, o telefone são apenas extensões de suas habilidades. Mas o livro é a revolução da memória e da imaginação.

Quem procura sentido em livros está sendo apenas supersticioso -é o mesmo que buscar um significado para os sonhos ou para as caóticas linhas das mãos.

Não quero acreditar que Lucretius tenha sido infiel a Menard. Prefiro morrer com a certeza de que em algum lugar existem bibliotecas com exemplares da obra com capa de Ascensio Rodríguez. Algumas pessoas os estão folheando neste momento, preparando-se para a vida onde a falta de sentido termina sendo resgatada pela salvação no final.

Procuro imaginar o café que está em frente à minha casa na Grand Rue. Muitas vezes passei diante dele e jamais procurei descobrir como era. A imagem do café e a imagem do livro são a mesma. Ambos não existem. E ambos existem.


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