Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrissima

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Uma fome colossal

Como deve funcionar o 'bolsa família' indiano

PATRÍCIA CAMPOS MELLO

RESUMO Em implantação, o programa Transferência Direta de Benefícios deve atender 600 milhões de pessoas em situação de pobreza extrema até o ano que vem. O governo indiano enfrenta o desafio imposto pelos números superlativos da miséria no país e pela falta quase total de dados sobre a real situação de seus pobres.

A ÍNDIA ACABA de lançar o maior programa de transferência de renda do mundo. O "bolsa família" indiano vai atender 600 milhões de pessoas até 2014, o equivalente a três Brasis e quase a metade da população da Índia. Mas o programa indiano Transferência Direta de Benefícios, inspirado no sucesso do Bolsa Família brasileiro, enfrenta desafios colossais.

O país gasta US$ 60 bilhões por ano em subsídios para os pobres -das lojas oficiais que vendem comida, gás, querosene e fertilizantes a pensões e bolsas de estudos para as castas mais baixas. Fraudes e corrupção corroem quase 30% desse valor antes que chegue às mãos dos beneficiários.

"A longo prazo, o programa será uma forma de reduzir os gastos com subsídios, o que ajudará a diminuir o deficit do orçamento", disse à Folha Palaniappan Chidambaram, o ministro da Fazenda da Índia, entrevistado em seu gabinete na semana passada, em Nova Déli. As agências de classificação de risco ameaçam rebaixar a nota do país se o deficit fiscal, em 6% do PIB, não for reduzido.

Antes o beneficiário precisava retirar pessoalmente o dinheiro (ou as mercadorias). Mas, num país 70% rural como é a Índia, 60% da população não têm conta bancária e uma parcela igual não têm banheiro. Milhões não têm nenhum documento -e a primeira meta é dar uma carteira de identidade a 600 milhões de indianos.

RG BIOMÉTRICO À frente dessa tarefa monumental está Nandan Nilekani, o fundador da gigante de tecnologia de informação indiana Infosys, que agora coordena a Agência de Identificação Única da Índia. Já foram emitidas identidades biométricas para 250 milhões de pessoas. Cada indiano recebe um número, atribuído a uma foto, impressões digitais e da íris, ao baixíssimo custo de US$ 2 cada. Até agora, muitos tinham apenas um título eleitoral, sujeito a fraudes e duplicação, ou um cartão de ração para comprar comida subsidiada.

Cada "número Aadhaar" -em hindi, base, fundação- é ligado a uma conta bancária simplificada, aberta sem a exigência de saldo mínimo, na qual os benefícios passam a ser depositados. Anteriormente, muitos indianos precisavam ir até um posto do governo para retirar dinheiro em espécie, abrindo ampla margem para corrupção. Entre outras fraudes, o funcionário encarregado da distribuição invariavelmente ficava com uma parte.

A Folha acompanhou a implantação do programa em cinco vilarejos no interior do Estado do Rajastão, um dos Estados com menor taxa de alfabetização do país, 66%, e entre os mais pobres, onde mais de 26% estão abaixo da linha de pobreza indiana: consomem menos de 35 rupias por dia (R$ 1,20), ou R$ 36 por mês. No Brasil, são consideradas extremamente pobres famílias que ganham menos de R$ 70 mensais.

Em vilarejos como Kailashpuri, que tem cerca de 2.000 habitantes e onde a maioria trabalha como boia-fria ou cortando mármore, ainda não há agentes bancários para levar o dinheiro até os beneficiários das localidades onde não há bancos. Nesses lugares, muita gente não sabe do programa nem tem documentos de identificação.

"Antes eu pegava meu dinheiro aqui com o funcionário do correio. Agora vou precisar caminhar dez quilômetros até o banco", diz

Mitha Lal, 35, um adivasi -uma das populações tribais da Índia que contam com uma série de cotas e pensões. Mitha ganha o equivalente a R$ 3 por dia cortando mármore.

No vilarejo de Gowala, há 800 pessoas e apenas duas televisões. Bhuribai Logar mora em uma casa de barro, de um só cômodo. No chão de terra batida, dormem ela, o marido, os três filhos e a sogra. Bhuribai acorda às 3h e caminha dois quilômetros até um lugar afastado, onde faz suas necessidades no mato. Tem só quatro horas de energia por dia. O marido ganha 100 rupias por dia (R$ 4) carregando caminhões com areia.

Ela está na lista das pessoas abaixo da linha de pobreza, então pode comprar trigo na loja do governo por R$ 0,06 o quilo, para fazer o "roti" (espécie de pão) para a família. Mas nunca ouviu falar no novo programa do governo, não sabe quantos anos ela mesma tem, ainda não tem um cartão Aadhaar nem conta no banco. "Não sei o que é isso", diz.

COMISSÃO A maioria dos vilarejos não tem agências, e os correios ainda não funcionam como postos bancários. O governo optou por contratar agentes bancários, habitantes locais que, com um caixa eletrônico portátil, levarão o dinheiro até os beneficiários e ganharão uma comissão do banco pela transação. Mas a expansão da rede de agentes vai devagar: no distrito de Udaipur, por exemplo, são necessários pelo menos 2.000, mas até agora só há 220. Os bancos, que designam os agentes bancários, não têm interesse em acelerar o processo, pois não têm lucro com as contas simplificadas.

O objetivo do governo é transformar todos os programas de auxílio do governo -são cerca de 30- em transferências diretas para a conta dos beneficiários, sem atravessadores. Por enquanto, foram incluídos no "bolsa família" bolsas de estudos e pensões, além de benefícios na área de saúde -como o bônus de 1.400 rupias (ou R$ 52) dado para mulheres que dão à luz em hospitais, em vez de em casa.

Nos próximos dois meses, entrarão nas transferências o programa de emprego rural, que paga a famílias pobres cem dias de trabalho por ano, além de subsídio para o gás de cozinha. Mas o grande desafio será transformar os subsídios de alimentos, querosene e fertilizantes em transferências de dinheiro para a conta dos beneficiários. Em vez de subsidiar diretamente mercadorias, o governo pretende que os beneficiários do "bolsa família" comprem diretamente no mercado, estratégia que, segundo estudos, se mostrou mais acertada no Brasil.

"Mas essa etapa ainda deve demorar uns dois anos", disse o sorridente Jairam Ramesh, ministro do Desenvolvimento Rural, que recebeu a Folha em seu gabinete enquanto tentava encontrar a foto que tirou ao lado da presidente Dilma Rousseff em Copenhague. "É muito controverso. Vamos deixar que os Estados decidam se querem ou não transformar os programas de alimentos e querosene em transferência de recursos."

Outro desafio é superar o risco de crise no setor agrícola, altamente dependente do Estado. Se o sistema público de compra de grãos for ameaçado, pode comprometer o voto rural, o mais importante do país. "Nosso sistema de assistência social é decrépito e não funciona, isso todos nós sabemos", diz Ramesh. "Mas é difícil mudar a cultura, e há muitos interesses em jogo. Por isso, a transição para transferência direta de recursos terá de ser gradual."

De início, o programa não exigirá contrapartidas dos beneficiários. No Brasil, para receber os recursos é preciso ter frequência mínima na escola, manter a vacinação dos filhos em dia e fazer exames pré-natais, por exemplo. "Por enquanto, queremos dar identificação Aadhaar para todos os beneficiários e garantir que o dinheiro saia de um lugar e chegue ao destino certo", disse à Folha Nandan Nilekani, presidente da Agência de Identificação Única da Índia. "São ferramentas para diminuir corrupção, desvios."

Mas o programa não resolve um problema central: na Índia, não se sabe quem é realmente pobre, porque não ainda há um cadastro único como no Brasil. Esse levantamento, o censo socioeconômico e de castas, só vai ficar pronto em junho deste ano.

"PINGA" Por enquanto, muitas dos que estão incluídos na lista dos indivíduos BPL (Below Poverty Line, abaixo da linha de pobreza, em inglês) não são verdadeiramente pobres. "A lista BPL poderia se chamar 'Bogus Poverty List' (lista falsa de pobreza)", brinca Ramesh. Uma pesquisa mostrou que só 39% das famílias pobres estão na lista, enquanto 17% de pessoas que estão na lista são "ricas".

"O 'sarpanch' [prefeito] aqui do vilarejo, que mora ali naquela casa boa, inclui na BPL a si mesmo, à sogra dele, à mulher e aos irmãos", conta um morador de Kailashpuri. "O anterior, que era rico, também se incluiu na BPL e ganhou subsídio de US$ 600 para construir uma casa."

"O programa não aborda os problemas de origem da pobreza, como acesso e melhora da qualidade da saúde e educação", diz Anirudh Krishna, professor da Universidade Duke (EUA) que pesquisa a pobreza na Índia.

O belga naturalizado indiano Jean Drèze, economista de desenvolvimento e professor honorário da Universidade de Déli, é ainda mais crítico. "Tenho grande preocupação em um programa apressado de substituir subsídios em espécie por transferência de dinheiro, especialmente se for acabar com o sistema público de distribuição", diz. "Como no Brasil, isso teria de ser parte de um sistema mais amplo de seguridade social. Não é essa panaceia que o governo indiano diz ser."

Na Índia, como no Brasil no início do Bolsa Família, há o temor "paternalista" de que as famílias, ao receberem dinheiro em vez de alimentos, gastem em besteira, ou em "pinga". No programa brasileiro, que repassa o dinheiro para as mulheres da família, isso não ocorreu. Na Índia, país muito patriarcal, há o medo de que os maridos forcem as mulheres a lhes entregar o dinheiro.


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página