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Cai o pano

Sobre Walmor, Cacilda, "Amor" e morte a dois

HELOISA PONTES

RESUMO Nos mais de 40 anos que separam a morte de Walmor Chagas da de sua companheira de vida e palco, Cacilda Becker, em 1969, cumpriu-se um ciclo no teatro brasileiro. O suicídio do ator ecoa o tema da dignidade ao sair de cena, evocada também na morte do casal Gorz, em 2007, e no filme "Amor", de Michael Haneke.

A hipótese de suicídio foi confirmada: o ator Walmor Chagas matou-se com um tiro na cabeça em 18/1. Os resíduos de pólvora na mão direita são da arma calibre 38 com a qual deu fim à vida. Sentado e com o revólver no colo, ele foi encontrado pelo caseiro do sítio em que residia havia mais de 20 anos.

Grande nome do teatro brasileiro, com presença destacada na televisão, Walmor andava sumido nos últimos tempos. Ao contrário de algumas atrizes extraordinárias de sua geração -Fernanda Montenegro e Cleyde Yáconis, entre outras-, ativíssimas nos palcos e na televisão, Walmor se afastara deles. Mas continuou a atuar, de maneira esporádica, no cinema.

Seu último trabalho, na pele de um general conservador, em "Cara ou Coroa", de Ugo Giorgetti, exibido no ano passado, não nos deixa esquecer sua força interpretativa. No papel de um anticomunista convicto, porém contrário à utilização da tortura, Walmor constrói o personagem com o recurso expressivo do olhar e do silêncio. Misturados na dose certa, eles exprimem, em registro cênico, a ideia, tão bem formulada pelo filósofo Merleau-Ponty, de que "a linguagem diz peremptoriamente quando renuncia a dizer a própria coisa".

A interpretação reservada de Walmor no filme, com frases lacônicas, ajuda a desvelar recessos sombrios da ditadura. E resume sua maneira de atuar, "bastante discreta, porém intensa, um trabalho contido com a emoção que se traduz em gestos e olhares", segundo Luiz Zanin Oricchio no jornal "O Estado de S. Paulo". Cinema, reitera o crítico, "pede discrição e delicadeza" dos intérpretes. Walmor sabia disso.

Sem legenda foi seu último gesto. Em meio à comoção causada pela morte do ator, as pessoas que lhe eram mais próximas (os familiares, o caseiro, a cozinheira, a advogada, o amigo e dono do restaurante onde almoçava quando ia a Guaratinguetá, a terapeuta que cuidava de seu corpo nos últimos anos) buscam explicações. A cegueira progressiva, a debilidade corporal, a fragilidade incontornável do envelhecimento, o isolamento, tudo isso, somado, explicaria o suicídio de Walmor.

A tentativa de conferir inteligibilidade a um gesto tão radical convive com a tristeza partilhada pelas pessoas que o amavam e aguça a perplexidade de todos nós. Seu suicídio nos interpela. O último ato de Walmor ecoa o do casal Dorine e André Gorz, cujos corpos foram encontrados lado a lado, na cama em que dormiam. O duplo suicídio, em 2007, esclarece-se pela leitura de "Carta a D.: História de um Amor" (Cosac Naify), o último livro de Gorz.

Pacto de vida inteira, o amor de um pelo outro permitiu que se tornassem o que foram: "Um pelo outro, um para o outro". A lucidez terrível envolvida no sentimento de Gorz, de que somente o calor do corpo de sua mulher, com 82 anos e às voltas com uma doença irreversível, poderia preencher o vazio devastador que o habitava, aclara a decisão extrema de ambos.

É também da vida, do amor, da doença, da velhice e do desespero contido que trata "Amor", o recém-lançado filme de Michael

Haneke. A arte imita a vida, sabemos bem. Mas quando a vida replica a arte é sinal incontornável do desarranjo dos nossos filtros. Há uma conversa dramática e inesperada entre os últimos gestos de Walmor Chagas, do filósofo e sua mulher, e do personagem do filme, George, magistralmente interpretado por Jean-Louis Trintignant.

O casal -um professor de música aposentado- e sua mulher -professora aposentada e octogenária como ele- enfrenta com dignidade a irreversível derrocada produzida pela doença e acentuada pelo envelhecimento. Sozinhos e rodeados pelos livros, pela música, pelos quadros do apartamento, eles sabem que de fato só têm um ao outro para se apoiarem.

Os derrames que vão minando a esposa -na interpretação estupenda da atriz Emmanuelle Riva-, o cuidado com que o marido lida com ela e com seu corpo que definha, a solução final para estancar o sofrimento de ambos condensam o andamento do filme.

E mostram, sem meias verdades e sem eufemismo, aquilo que nos esforçamos por não admitir: o desmonte inexorável que nos ronda, ampliado pela ambivalência amorosa. Com imensa compaixão, o filme dá a ver aquilo que Henry James perseguiu na literatura: enquadrar com a força restritiva da linguagem a matéria caótica da vida de que se nutre a obra artística.

Cheia de som e fúria, a vida, alerta-nos Shakespeare, é "apenas uma sombra ambulante, um pobre ator que se exibe e se agita no palco por um tempo". Mas sem o palco e seus intérpretes, a vida seria uma fábula sem sentido. André Gorz e Dorine, Jean-Louis Trintignant, Emanuelle Riva e Walmor Chagas sabiam disso. Todos eles com mais de oitenta anos, embaralhando a vida e a morte.

DESLOCADO Se Walmor não registrou as razões que o levaram ao suicídio, foi pródigo, no entanto, na exposição de seus indícios. Em 2011, na entrevista que concedeu a Bianca Ramoneda para a série "Grandes Atores", do canal Globo News, ao ser perguntado por onde andava, ele foi enfático. "Ando com 80 anos de idade, principalmente." Mais do que uma marca cronológica, a resposta vinha acompanhada da constatação, esta sim essencial, de que ele não se reconhecia na geração "que está com o teatro nas mãos".

Nas palavras de Walmor, "o teatro que eu fazia não se faz mais. Então eu comecei a me sentir deslocado dentro da vida artística teatral brasileira. [...] O meu repertório artístico sempre foi de altíssima qualidade e não é todo ator que pode fazer isso. Este repertório de qualidade me obrigava a fazer um tipo de teatro maravilhoso, que hoje não se faz mais. Hoje se faz outro teatro, maravilhoso, fantástico, da época de agora, que não é mais a minha época".

Ciente de que "o importante é o aqui e o agora; o teatro presente no Brasil no momento", Walmor expôs o seu dilaceramento, mas não se deixou aprisionar na visão edulcorada do passado. Ele não tinha dúvidas sobre a qualidade do teatro que fizera antes -"era maravilhoso, mas é o teatro de agora que interessa". E este não o interpelava mais. Não porque fosse pior do que o teatro de antes, e sim porque o presente se tornara uma terra estrangeira. "Eu não pertenço mais a esta época", insistiu Walmor no decorrer da entrevista.

O período de maior envolvimento de Walmor com o teatro coincide com a época em que esteve ligado a Cacilda Becker. A primeira vez que a viu, ela estava no palco e ele na plateia, assistindo-a representar "Pega-Fogo". O ano era 1950 e ele acabara de se mudar para São Paulo, vindo de Porto Alegre, para tentar a carreira de ator.

Deixara inconcluso um curso de filosofia e se integrara à companhia de Nicete Bruno. Cinco anos depois ingressaria no Teatro Brasileiro de Comédia. Mas ficaria ali por pouco tempo; o suficiente para transformar o namoro com Cacilda em casamento e para fundarem a companhia.

O Teatro Cacilda Becker (TCB) estreou em 1958, com "O Santo e a Porca", de Ariano Suassuna. A escolha da peça estava em sintonia com as transformações em curso na cena teatral, cujo termômetro era o sucesso estrondoso do espetáculo "Eles Não Usam Black-Tie", de Gianfrancesco Guarnieri, montado em 1958 pelo Teatro de Arena.

No final do decênio de 1950, a dramaturgia brasileira entrara em cena para valer, politizando o debate e emitindo sinais de que viera para ficar. Não aleatoriamente, todas as companhias importantes encenaram textos de autores brasileiros. Partidária de um teatro de repertório, basicamente estrangeiro, Cacilda teve que se dobrar ao clima da época e aos conselhos de Ziembinski e, em especial, de Walmor.

Naquele momento, era ele quem, segundo ela, decidia os "destinos de seu teatro" e a "socorria sempre". Sem ele, o Teatro Cacilda Becker não teria existido. Atuando como empresário e ator -e, após a saída de Ziembinski, como diretor-, Walmor foi fundamental no palco e fora dele para a sustentação da companhia, premida entre fracassos expressivos e sucessos retumbantes.

Ela chegou ao fim em 1968, junto com o casamento de Cacilda e Walmor. Um ano depois, separados e sem companhia, eles montariam ainda "Esperando Godot", de Beckett, na direção de Flávio Rangel. Cacilda interpretou Estragon; Walmor fez Vladimir, concebidos como a face e a contraface de uma mesma personagem.

Seria a última vez que ocupariam o mesmo palco. Em uma das apresentações da peça, Cacilda foi retirada às pressas do teatro, com as roupas de sua personagem, para ser conduzida ao hospital onde morreu cerca de um mês depois. No artigo de despedida da atriz, o crítico Décio de Almeida Prado usou uma imagem precisa para definir o alcance de sua arte. Em seus melhores momentos, Cacilda "era uma pura chama ardendo diante de nós".

Três décadas depois, Walmor afirmou que ela foi "a maior atriz dramática que o Brasil conheceu". Entre outras razões, porque, segundo ele, Cacilda tinha "o sentido trágico da vida e o poder do teatro. Do ator junto ao público, que alguns chamam de carisma. Esta capacidade que o ator tem de chegar no coração, no inconsciente do espectador".

Cacilda saiu de cena, aos 48 anos, fulminada por um aneurisma cerebral. Walmor saiu da vida aos 82, por vontade própria. O tempo transcorrido entre a vida e a morte de um e de outro selou o destino de ambos e iluminou o teatro brasileiro.


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