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Reportagem

O som e o sentido

No quintal de Kleber Mendonça Filho

FERNANDA MENA

Resumo

Aclamado pela crítica e por festivais internacionais, "O Som ao Redor" se impõe como um raro acontecimento cultural no cinema brasileiro. O diretor levou a Folha à rua em que rodou o longa e expôs matrizes de seu trabalho, enraizado na crítica, no cineclubismo e na obra de Gilberto Freyre, com quem sua mãe trabalhou.

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Em uma rua tranquila em Setúbal, região de classe média a poucos quarteirões da praia de Boa Viagem, no Recife, o som ao redor é o das crianças no pátio do colégio da esquina, o das vassouras de piaçava que investem contra o passeio de pedra e o meio-fio e o das visitas que dispensam a campainha para gritar da calçada por quem procuram. Tudo, porém, abafado pelo ruído constante da construção de torres residenciais avançando contra o casario local.

Rosto colado num muro, olho direito espiando por uma fresta, Kleber Mendonça Filho, 44, vasculha a cena ocultada por tijolos e cimento. O enquadramento não ajuda. Ele pega o celular no bolso da bermuda, estica o corpo, na ponta dos pés calçados em chinelos de dedo, e ergue os braços sobre o muro, equilibrando o aparelho nas mãos. "Cuidado, Kleber! Pode ter um cachorro aí", aflige-se sua mulher, a francesa Emilie Lesclaux, arranhando ainda mais os erres do sotaque.

Tira uma foto e levanta os óculos para avaliar a imagem. "É...", suspira, "já demoliram toda a parte próxima à piscina".

O imóvel do outro lado do muro foi quartel-general e um dos cenários do primeiro longa-metragem de ficção de Mendonça, "O Som ao Redor", o filme brasileiro mais bem recebido e comentado dos últimos tempos.

O terreno da casa em que, no filme, viveu a personagem Sofia (Irma Brown), namorada do protagonista João (Gustavo Jahn), deve dar lugar, fora das telas, a mais um "prédio de alta qualidade, entre aspas", como gosta de dizer o diretor, frisando o que diz com um gesto dos dedos indicadores e médios ao lado do rosto.

É das relações entre muros dessa paisagem urbana em rápida transformação que trata "O Som ao Redor": a classe média enjaulada em edifícios sitiados, as brincadeiras de criança limitadas pelo portão do prédio e pelos cuidados das babás, o vaivém das empregadas domésticas nos apartamentos, a vigília dos guardas-noturnos.

"Não sou contra filme de favela ou do sertão, mas a novidade de 'O Som ao Redor' é o fato de ter seccionado com tamanha precisão um pedaço da sociedade brasileira pelo qual o cinema em geral não se interessa: a classe média de condomínio", diz Cacá Diegues. "Não há referência a nada. É como se o cinema estivesse sendo inventado ali", entusiasma-se o cineasta, ele mesmo um autor de filmes de favela ("Orfeu", 1999) e de sertão ("Tieta do Agreste", 1996).

Para Mendonça, nada mais natural do que retratar o território que lhe é familiar. "As pessoas se espantam com o fato de o filme tratar da classe média. Isso é muito estranho, já que 90% dos cineastas brasileiros são de classe média", arrisca o diretor. "O cinema brasileiro olha para lugares que não me interessam. Queria fazer o tipo de filme que não tenho visto no Brasil, o que diz muito sobre o que acho da cena atual."

Trata-se de uma fatia da sociedade brasileira mais comumente retratada em comédias de apelo popular: blockbusters como "De Pernas para Ar", "Até Que a Sorte nos Separe" e "E Aí, Comeu?". "São filmes feitos com muita grana e lançados com muita grana. Gastam R$ 6 milhões mas parecem ter custado R$ 800 mil porque têm dois apartamentos, quatro atores da Globo, um cachorro e um gato", desdenha o diretor. "Minha tese é a seguinte: se meu vizinho lançar o vídeo do churrasco dele no esquema da Globo Filmes, ele fará 200 mil espectadores no primeiro final de semana."

Após seis semanas em cartaz, "O Som ao Redor", que custou R$ 1,8 milhão -R$ 550 mil provenientes do fundo para o audiovisual do Estado do Pernambuco-, deve chegar aos 70 mil espectadores neste domingo. O filme estreou no circuito brasileiro em 13 salas, em 4 de janeiro; num movimento inverso ao trivial, chegou a ocupar 18, na semana seguinte ao lançamento. Hoje se mantém em 11.

"Filme com menos de 100 mil espectadores não existe para o mercado", observa Carlos Augusto Calil, ex-diretor da Embrafilme, ex-secretário municipal de cultura de São Paulo e professor de cinema da USP. "Mas nosso horizonte cinematográfico é muito pobre e, nesse contexto, 'O Som ao Redor' se destaca pela inteligência dramatúrgica. Cria um painel e uma sensação parecidos com o filme

'O Pântano', da argentina Lucrécia Martel. É o tipo de filme que precisa ficar mais tempo em cartaz, mesmo que seja em uma sala só, porque o boca a boca sobre ele é muito bom."

GRADES

Filmado em seis semanas e meia, em 2010, o longa de Kleber Mendonça Filho apresenta 80 locações -a maioria delas localizada nos arredores do apartamento em que ele vive há 25 anos, cuja janela gradeada dá hoje para os 17 andares de um prédio de alta qualidade, entre aspas, sendo erguidos a poucos metros dali.

Diante da nova e inóspita urbanização do Recife, "O Som ao Redor" evita as paisagens abertas, as praias, e faz crônicas da vida íntima em que os espaços públicos, em suas raras aparições, surgem privatizados.

A rua que serve de cenário para o filme tem dono: é de Francisco (W.J.Solha), o patriarca local, proprietário de um engenho decadente no interior do Estado e de boa parte dos apartamentos do quarteirão. Ele é avô do protagonista João e de Dinho (Yuri Holanda), ovelha negra da família.

Com a chegada ao local de um grupo de seguranças particulares, liderados por Clodoaldo (Irandhir Santos), o patrimônio permanece nas mãos do coronel, mas o controle passa a ser deles: nenhum carro ou pessoa passa por ali despercebido.

"O condomínio fechado é mostrado como a versão contemporânea do feudalismo, em que empregadas e porteiros são objetificados", avalia Ismail Xavier, crítico de cinema e professor da USP. "Tudo parece normal e, ao mesmo tempo, a ponto de romper. Há sinais de instabilidade, e a tensão é trabalhada de maneira muito sutil, potencializada por uma estranheza familiar com tintura de insegurança", decreta. "Com isso, Kleber demonstra um grande domínio dos meios de expressão, do tempo e do espaço."

É no mesmo celular em que registrou a ruína de um dos sets do longa que Mendonça checa, a todo momento, mensagens, na maioria elogiosas, sobre o filme. No Facebook, são postados os textos sobre filme publicados na mídia -como aquele que Caetano Veloso, em sua coluna no jornal "O Globo", escreveu que "O Som ao Redor" é "um dos melhores filmes feitos recentemente no mundo".

Quando foi lançado, há um ano, no Festival de Cinema de Roterdã, o filme havia sido inscrito em outros dois eventos do tipo. Ao final da première, Kleber Mendonça Filho deixou a sala de projeção com convites para outros cinco festivais: Nova York, Sidney, Edimburgo, Munique e Seul. Hoje, o longa coleciona participações em mais de 50 mostras de cinema no Brasil e no exterior e 14 prêmios nacionais e estrangeiros, entre eles os de melhor filme na Mostra de Cinema de São Paulo e no Festival do Rio, além do prêmio da crítica no festival holandês de sua estreia. Diante da consagração do filme, diz o diretor, "é difícil encontrar o equilíbrio entre o blasé e o fogueteiro".

Com estreia prevista para março na Inglaterra, no Canadá e na Polônia, "O Som ao Redor" será lançado no iTunes em um mês e também deve ser exibido nos canais HBO na América Latina.

O MoMA, o museu de arte moderna de Nova York, onde o longa foi exibido durante o festival New Directors New Films, quer adquirir uma cópia do filme para sua coleção permanente.

"'O Som ao Redor' é particularmente interessante porque, ao mesmo tempo em que é muito brasileiro, cria um ambiente em que o espectador estrangeiro se sente seguro para adentrar uma estrutura social que não é a sua e observá-la através dos olhos do diretor", explica Jytte Jensen, curadora de filmes do MoMA. "Queremos ter o filme na nossa coleção porque ele anuncia a chegada de um diretor de com uma voz extremamente pessoal e original e com uma visão muito cinematográfica, que sabe pensar as imagens."

CRÍTICO

"Kleber fez um filme muito bom, mas o fato de ele ter sido crítico de cinema durante muitos anos ajuda: os colegas acabam sendo mais generosos", suspeita Claudio Assis, diretor pernambucano, amigo do cineasta e autor de filmes como "Baixio das Bestas" (2006) e "A Febre do Rato" (2011). "Não tem jeito, todo crítico é um cineasta frustrado", provoca.

O clichê já foi alvo da ironia de Mendonça. Em um dado momento dos 11 anos em que se dedicou à reportagem e à crítica de cinema -em especial para o pernambucano "Jornal do Commercio", mas também em colaborações eventuais para a Folha-, ele mandou estampar uma camiseta com a frase: "Todo cineasta é um crítico frustrado".

"Você não tem ideia do efeito que esta camiseta tem sobre os diretores. Pega no coração deles", diverte-se.

Cineasta e crítico, programador e cinéfilo, Kleber Mendonça Filho começou, ainda na faculdade de jornalismo, a fazer vídeos -espécie de "primo pobre do cinema". "Meus curtas passavam de tarde nos festivais, em salinhas em queninguém entrava", lembra.

Com o advento tecnológico que transformou o vídeo em cinema digital, Mendonça abandonou os horários esdrúxulos das ilhas de edição do Recife, aqueles desprezados pela publicidade, para trabalhar em casa. Foi o primeiro grande salto em sua produção.

O segundo veio com a consolidação de uma política cultural do Estado do Pernambuco: um fundo, hoje com R$ 11,5 milhões destinados apenas à produção audiovisual, que premia, por meio de editais, cada etapa da produção cinematográfica local. "O fundo tem recursos específicos para o audiovisual, o que permite um nível de produtividade razoável. O filme de Kleber e tantos outros feitos agora são devedores desse sistema", explica Paulo Cunha, cineasta do ciclo pernambucano do Super8, professor de cinema brasileiro da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE) e uma das poucas vozes cautelosas quanto à consagração do longa.

"O filme tem questões -que não são defeitos propriamente. Merecia 20 minutos a menos, por exemplo, e ganharia com isso. A tentativa de justificá-lo sociologicamente, de torná-lo erudito, não agrega nada a sua narrativa. Também não estamos diante da reinvenção da linguagem cinematográfica. O filme é e será bem-sucedido, mas não precisa desse movimento incensatório", diz.

Em seu blog no site da revista "Piauí", Eduardo Escorel, cineasta e montador, também abandonou o coro elogioso, que chamou de "surto de ufanismo patrioteiro". E, entre elogios à coragem do cineasta em retratar com realismo moradores comuns do Recife, apontou como falhas a "apatia do elenco" e o "tom monocórdico" que "empobrece os personagens".

CURTAS

"O Som ao Redor" revisita toda a filmografia de curtas do diretor: de "A Menina do Algodão" (2002), pega emprestado o clima sombrio; de "Vinil Verde" (2004), o pesadelo de uma das crianças do filme. De "Eletrodoméstica" (2006), rouba duas cenas inteiras em que Beatriz (Maeve Jinkings) usa o aspirador de pó para dissipar a fumaça do cigarro de maconha e a máquina de lavar em modo centrifugação para se masturbar. Do falso documentário "Recife Frio" (2009), captura dois personagens e volta a chamar a atenção para o quarto da empregada dos apartamentos de alta qualidade, entre aspas -no curta, que relata a situação absurda em que a capital pernambucana sofre com temperaturas abaixo de zero, o local, pequeno e sem ventilação, passa a ser o cômodo mais aconchegante e disputado do apartamento.

Para a curadora do MoMA, mais do que fonte de autocitações, os curtas do cineasta são "a chave para entender como ele foi capaz de tamanha façanha em seu primeiro longa-metragem".

""O Som ao Redor' é um filme que vem sendo feito há muito tempo. Todos os meus curtas fazem parte deste processo. Hitchcock repetia cenas em filmes diferentes. Truffaut revisitou elementos ao longo da carreira", diz o cineasta, relativizando o procedimento. "Tem gente que entende, tem gente que se incomoda com isso."

ENJAULADO

Se toda a carreira anterior de Kleber Mendonça Filho no cinema conduz a seu primeiro longa, é talvez no seu primeiro curta, intitulado "Enjaulado" (1997), que se encontre mais claramente a gênese de "O Som ao Redor". Espécie de rascunho do mal-estar social do longa, o curta retrata a paranoia da segurança nas grandes cidades a partir dos devaneios de perseguição de um rapaz trancado num apartamento repleto de grades nas portas e janelas.

Mas "O Som ao Redor" avança no diagnóstico que faz dessa questão urbana, buscando suas raízes na nossa cultura escravocrata. A ligação entre a aflição presente e a herança passada se anuncia já no prelúdio à ação do filme, uma sequência de fotografias em preto e branco de engenhos de açúcar no interior do Pernambuco. "Essa foi a fagulha do filme. Comecei a perguntar para os meus amigos: o que você acha de um filme em que o engenho seja uma rua moderna do Recife?", lembra ele.

A estrutura social do Brasil no período escravista é um tema familiar ao diretor. Filho da historiadora Joselice Jucá, estudiosa do abolicionista mulato André Rebouças (1838-1898), Mendonça cresceu entre conversas sobre as reformas sociais pensadas e nunca implementadas no Brasil pós-abolicionista. Entre as memórias de sua infância estão ainda visitas à sala de Gilberto Freyre (1900-1987), vizinha da de sua mãe, no antigo Instituto (hoje Fundação) Joaquim Nabuco, no Recife.

Só muitos anos depois, quando viveu em Essex, na Inglaterra, durante o doutorado da mãe, é que tomou conhecimento da obra seminal para a sociologia brasileira produzida por aquele senhor da sala ao lado. "Minha mãe me obrigou a ler 'Casa Grande e Senzala', livro que reli antes de fazer 'O Som ao Redor'", conta ele. Fica claro, portanto, o cineasta dedicar o filme a sua mãe.

"Ela morreu em 1995 e deixou um livro não publicado sobre a reforma agrária proposta por Rebouças, que nunca aconteceu. Ela me ensinou que, no Brasil, os negros se tornaram cidadãos do dia para a noite, sem que nada fosse feito para recebê-los. As consequências disso estão aí até hoje", conclui. "Um sonho que tenho é o de adaptar seu livro para o cinema. Mas, de certa forma, já o adaptei em 'O Som ao Redor'."

Ao legado intelectual da mãe se somou o olhar estrangeiro de sua mulher, Emilie Lesclaux, que chamou a atenção do cineasta para as estranhas relações entre patrões e empregados no ambiente doméstico brasileiro. "Para mim era tudo muito esquisito: havia uma senhora que cuidava da casa de Kleber, mas a relação deles não era nada profissional. Era uma presença totalmente misturada na casa: afeto com trabalho", explica Emilie, que assina a produção do filme.

Antes de se mudar para a casa de Mendonça, a francesa havia vivido no apartamento de um casal de pernambucanos que havia trazido do interior uma garota para as tarefas domésticas. "Uma escravinha", define o cineasta.

Numa possível transferência e atualização dos papéis de brancos e negros da sociedade do açúcar, Francisco é um senhor de engenho, Clodoaldo e seus vigias companheiros são capitães-do-mato, Beatriz é uma escrava recém-alforriada e João, um abolicionista. "João tem uma visão mais aberta da sociedade, mas não consegue ir até o final da luta, o que é algo bem brasileiro", pondera o cineasta.

Para Ismail Xavier, além de Gilberto Freyre, o filme evoca o Brasil de Sergio Buarque de Hollanda: "Tudo se resolve no plano das relações pessoais, de poder, mando e serventia, fora da noção abstrata de cidadania e fora da ordem institucional democrática. É a sobrevivência de certas tradições que a modernização não dissolve".

CINEMA DE ARTE

Entre a crítica e a direção, o pernambucano trilhou ainda uma terceira carreira no cinema: a de programador. Há 15 anos, ele responde pela seleção dos filmes exibidos na principal sala de cinema de arte do Recife, a da Fundação Joaquim Nabuco, no bairro do Derby. Foi ali, em 1989, que o cineasta estagiou com o então programador Marcelo Gomes ("Era uma Vez, Verônica", "Cinema, Aspirinas e Urubus") e que assistiu a muitos dos filmes mais importantes de sua formação, como "A Lira do Delírio" (1978), de Walter Lima Jr.

Hoje, é ele o responsável pela formação de uma nova linhagem de cinéfilos na quarta maior metrópole do país, muitos dos quais se tornaram também cineastas, que gravam com tecnologia digital e editam filmes em laptops.

Mendonça encabeça uma geração de diretores pernambucanos que se apartou da estética regionalista do maracatu, do sertão e da pobreza para privilegiar as tensões urbanas e sociais da metrópole de seu tempo, tendo o passado como manual de instruções.

É assim nas produções mais recentes de Marcelo Lordello ("Eles Voltam"), Gabriel Mascaro ("Doméstica") e Daniel Aragão ("Boa Sorte, Meu Amor").

"Assim como a geração anterior, de Claudio Assis, há um sistema de 'brodagem' que é muito característico da cena do Recife", explica Paulo Cunha. O termo usado pelo professor da UFPE abarca não só a amizade que une o grupo fora dos sets mas também as frequentes parcerias de produção entre os cineastas locais. "Eles se frequentam, fazem projetos comuns e compartilham influências."

"Esses diretores fazem filmes de significação nacional pela via da urbanidade. E são os únicos da cinematografia atual brasileira que enfrentam problemas sociais, de luta de classes. Isso é absolutamente marcante no que chamo de cinema recifense, e não mais pernambucano", explica o crítico e cineasta Jean-Claude Bernardet.

COTIDIANO

A câmera de "O Som ao Redor" explora a intimidade dos personagens e coloca o espectador nos olhos de um intruso oculto que contempla crônicas do cotidiano -exemplo de uma estética assumidamente realista que Kleber Mendonça Filho apelidou de "lógica da vida". Com isso, obteve uma obra de alcance universal. "Alguns dos eventos que ocorrem entre quatro paredes poderiam ser episódios de uma novela global da banalidade doméstica em Cingapura, San Francisco, Cidade do Cabo ou Dubai", escreveu o crítico A.O. Scott no jornal "The New York Times", que elegeu o filme como um dos dez melhores do ano passado.

Com a trama segmentada em vários núcleos, repartidos em diferentes espaços confinados, apenas o som tem livre circulação. Elementos sonoros contribuem não só para a composição do ambiente e para sublinhar situações -ocupando o espaço convencionalmente dado à música, usada no filme com parcimônia. Aqui, o som ao redor, é,principalmente, um detonador de ações no roteiro. Como o cachorro da casa vizinha à de Beatriz, a personagem de Maeve Jinkings, que passa madrugadas em claro na copa do apartamento em que, fora das telas, moram Kleber e Emilie. O local ainda guarda cicatrizes dos dias em que "O Som ao Redor" foi rodado: nas paredes decoradas com pôsteres de "Barry Lyndon", de Stanley Kubrick, e de "É Tudo Verdade", de Orson Welles, remendos apontam para onde, durante a filmagem, foram fixadas estruturas de iluminação do set.

Mais do que servir de cenário, porém, o lar do casal resume e evidencia o embate entre as ideias do autor e o painel urbano e social retratado no filme.

Para passar do corredor do prédio ao apartamento em si, é necessário destrancar dois portões, duas grades de ferro e uma porta. Ao abrir a última fechadura, que dá acesso à sala, de onde se ouvem as vassouras de piaçava na calçada e a construção do prédio na esquina, Kleber Mendonça fecha a porta, mas esquece o molho de chaves do lado de fora.


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