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memórias que viram histórias

O esmalte de David Bowie

São Paulo, anos 90

MARINA DELLA VALLE

CENA 1: estádio do Palmeiras, 23/9/1990. David Bowie canta "Ashes to Ashes", e eu tento enxergar o palco entre a multidão. Forço a passagem, sem sucesso. Aos 13 anos, aquele era meu primeiro show, e eu estava determinada a vê-lo de perto. Era o meu ídolo.

Anos antes havia visto Bowie no filme infantil "Labirinto" (1986), encarnando um rei dos duendes de peruca punk platinada, muita purpurina e um par de leggings que ficou no imaginário de um bocado de gente.

Saí hipnotizada. Alguém me disse que ele era cantor. O "Fantástico" mostrou um clipe. Comprei discos, revistas, o que podia achar em minha cidade -Santa Adélia, noroeste paulista, 14.333 habitantes, segundo o último Censo.

Mandei fazer pôsteres, os meus primeiros. Minha mãe achava graça e brincava com meu pai: "O ídolo da sua filha é mais velho que você". Era mesmo, ainda que poucos meses. Foram anos de ladainha: "Mãe, se o Bowie vier pro Brasil, posso ir ao show?". Ela dizia que sim, sabendo que as chances eram poucas.

Mas um dia ele veio. Ela peitou meu pai e cumpriu sua palavra. Lá fui eu para São Paulo com meu irmão mais velho, de certo pouco feliz em pajear a irmãzinha que recortava as fotos do cantor das revistas dele.Na grade, o segurança disse que o show da noite anterior tinha sido "fraquinho". Quando acabou, tive certeza de que o cara era um completo idiota, daquelas certezas que só temos aos 13 anos.

CENA 2: pista de atletismo do Ibirapuera, 1º/11/1997. David Bowie, em sua fase drum'n' bass, encerraria um festival.

Aos 20 anos, eu conhecia todas as suas fases: Ziggy, Thin White Duke, o topete amarelo dos anos 80. Tinha visto todos os filmes adultos. Minha primeira tatuagem foi uma cruz egípcia terminando em punhal, como as que ele e Catherine Deneuve usaram no suspense "Fome de Viver" (1983).

Ou seja: para mim, aquele era um grande evento, exigia preparação. No telefone, uma amiga reclama do atraso. "Estou fazendo as unhas para ver o Bowie", disse a ela, que desistiu de esperar.

Eu já era jornalista, mas não estava no festival a trabalho -o que não me impediu de ir até a sala de imprensa. Ali chega a notícia: David Bowie queria um "meeting". Seriam poucos minutos, sem direito a perguntas. Quem fosse perderia os outros shows. Meu colega de Redação, sabendo da minha doença, generosamente me incluiu no grupo.

A primeira coisa que notei foi que Bowie não era muito mais alto que eu. A segunda, que seus olhos pareciam ainda mais extraordinários ao vivo, um cinza apagado, o outro de um verde muito claro e brilhante. Profissionalmente simpático, cigarro na mão. Nada do terno elegante de 1990. Aquele era o Bowie flertando com o Nine Inch Nails e o visual sinistro do rock industrial, cavanhaque e cabelo laranja.

Quando começaram a pedir autógrafos, foi a minha caneta (do Mickey) que ele usou -e depois me devolveu, com um "this is... yours". Entrei em apneia. Eu havia estado, ainda que por segundos, no pensamento de David Bowie.

Foi quando olhei pra baixo. Não sei se Bowie viu meu esmalte, mas eu vi o dele: suas sandálias, inspiradas nas japonesas, deixavam à mostra unhas pintadas de preto.

CENA 3: Redação, 8/1/2013. E-mail da filha, 10, de férias na casa da avó. Assunto: "David". A mensagem: "Ele voltou, sua louca". E duas fotos de Bowie na primeira página do jornal.

Àquela altura, eu já sabia. Após um longo hiato longe dos estúdios e dos palcos, Bowie, no seu aniversário, lançou um single e anunciou um disco de surpresa. Numa era em que a exposição é quase um culto, ele conseguiu manter o projeto em absoluto segredo, uma piada sutil com a especulação sobre sua vida nesses anos de reclusão.

Aos 66 anos, David Bowie por fim aparenta a idade que tem. Aos 36, eu também. O "sua louca" da filha significa "mãe que desata a dançar e cantar como se ninguém estivesse vendo".

Ela está. E adorou "Labirinto".


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