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Ilustrissima

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Imaginação

prosa, poesia e tradução

Khor e Kalínitch

IVAN TURGUÊNIEV TRADUÇÃO IRINEU FRANCO PERPETUO

Quem já foi do distrito de Vólkhov ao de Jizdra possivelmente ficou espantado com a aguda diferença no aspecto das pessoas da província de Oriol e de Kaluga. O mujique de Oriol é baixo, arqueado, soturno, olha de soslaio, mora em umas isbás de álamo pequenas e malfeitas, presta corveia, não faz comércio, come mal, calça alpargatas; o camponês arrendatário de Kaluga habita em espaçosas isbás de pinheiro, é alto, olha de forma sorridente e alegre, tem o rosto limpo e claro, comercia manteiga e alcatrão e usa botas nos feriados.

A aldeia de Oriol (estamos falando da parte oriental da província de Oriol) normalmente está situada em meio a campos arados, perto de uma vala transformada de qualquer jeito em um tanque imundo. Tirando uns salgueiros sempre às ordens e umas duas ou três bétulas ralas, não se vê uma árvore sequer no raio de uma versta; uma isbá é grudada na outra, os telhados, atulhados de palha suja... A aldeia de Kaluga, ao contrário, é geralmente rodeada de floresta; as isbás são mais livres e mais retas, com telhado de ripa; o portão fecha direito, a cerca do quintal não está desfeita nem tombada, convidando os porcos que passam... E, para a caça, a província de Kaluga também é melhor.

Na província de Oriol, as últimas florestas e praças estão fadadas a desaparecer em cinco anos, e não há nem sombra de pântano; em Kaluga, ao contrário, as matas se estendem por centenas de verstas, os pântanos por dezenas, essa ave nobre que é a tetraz ainda não se extinguiu, encontra-se a bondosa narceja, e a atarefada perdiz alegra e assusta o atirador e o cachorro com seu voo impetuoso.

Visitando o distrito de Jizdra como caçador, eu me deparei com um campo e travei conhecimento com um pequeno proprietário de Kaluga, Polutikin, um apaixonado pela caça e, portanto, uma pessoa exemplar. Possuía, é verdade, algumas fraquezas: por exemplo, oferecia-se a todos os bons partidos da província e, quando a mão e a casa lhe eram recusadas, confiava seu pleno pesar, com o coração aflito, a todos os amigos e conhecidos, continuando, porém, a enviar aos parentes da noiva pêssegos azedos e outros presentes de seu jardim; adorava repetir sempre a mesma anedota, a qual, apesar da admiração do senhor Polutikin por seus méritos, decididamente jamais fez alguém rir; louvava a obra de Akim Nakhímov e a novela "Pinna"; gaguejava; chamava o cachorro de Astrônomo; em vez de mas, dizia todavia, e implantara em casa a cozinha francesa, cujo segredo, no entendimento de seu cozinheiro, consistia em alterar completamente o sabor natural de todos os pratos: graças a esse artista, a carne ficava com gosto de peixe, o peixe, de cogumelos, o macarrão, de pólvora; em compensação, não havia cenoura que entrasse na sopa sem ter tomado o aspecto de um losango ou trapézio. Porém, à exceção desses poucos e insignificantes defeitos, o senhor Polutikin era, como já foi dito, uma pessoa exemplar.

No primeiro dia em que conheci o senhor Polutikin, ele me convidou a pernoitar em sua casa.

- São umas cinco verstas - acrescentou-, é longe para ir a pé. Vamos primeiro até a casa de Khor. (Permita-me o leitor não reproduzir seu gaguejar.)

- E quem é esse Khor?

- Um mujique meu... Fica pertinho daqui.

Fomos até ele. Em meio à floresta, em uma clareira limpa e bem cuidada, a casa de Khor se erguia, solitária. Consistia de umas armações de pinheiro, unidas em uma cerca; na frente da isbá principal, estendia-se um alpendre sustentado por colunas finas. Entramos. Veio a nosso encontro um rapaz de 20 anos, alto e belo.

- Ei, Fédia! Khor está em casa? -perguntou o senhor Polutikin.

- Não, Khor foi à cidade -respondeu o rapaz, sorrindo e mostrando uma fileira de dentes brancos como a neve- Quer que prepare a teleguinha?

- Sim, irmão, a teleguinha. E nos traga kvas.

Entramos na isbá. Nenhuma imagem de Suzdal cobria as limpas paredes de madeira; no canto, em frente ao severo ícone com moldura de prata, ardia uma lamparina; a mesa de tília fora raspada e lavada havia pouco; nos troncos e no umbral da janela, não havia carochas ligeiras a perambular, nem se escondiam baratas pensativas.

O jovem logo apareceu com uma grande caneca branca, cheia de um ótimo kvas, uma fatia enorme de pão branco e uma dúzia de pepinos salgados em uma tigela de madeira. Deixou toda essa comida na mesa, encostou-se na porta e se pôs a contemplar-nos, sorridente. Nem conseguimos comer todos os acepipes, pois a telega já estava na entrada. Saímos. Um menino de 15 anos, com cabelos encaracolados e faces vermelhas, era o cocheiro, contendo com dificuldade o garanhão malhado e bem nutrido. Em volta da telega havia seis jovens grandes, muito parecidos uns com os outros e com Fédia. "São todos filhos de Khor!", observou Polutikin. "Todos de Khor", corroborou Fédia, que viera atrás de nós até a entrada, "mas ainda não são todos: Potap está na floresta, e Sídor foi à cidade com o velho Khor... Veja bem, Vássia", continuou, dirigindo-se ao cocheiro, "vá a toda: você está levando o patrão. Mas fique de olho nos solavancos: não vá acabar com a telega, nem revirar as tripas do patrão!". Os outros filhos de Khor riram do exagero de Fédia.

"Ajude o Astrônomo a subir", exclamou solenemente o senhor Polutikin. Fédia, não sem prazer, ergueu no ar o cachorro, que sorria amarelo, e colocou-o no fundo da telega. Vássia soltou a rédea do cavalo. Partimos. "Esse é o meu escritório", disse Polutikin, subitamente, mostrando uma casinha baixa e pequenina, "quer entrar?". "Por favor." "Está desativado", observou, descendo, "mas ainda vale a pena dar uma olhada".

O escritório consistia em dois aposentos vazios. O vigia, um velho zarolho, veio correndo dos fundos. "Olá, Miniáitch", disse Polutikin, "cadê a água?". O zarolho sumiu, voltando imediatamente com uma garrafa de água e dois copos. "Aproveite", disse Polutikin, "essa minha água de nascente é ótima". Bebemos copos d'água enquanto o velho nos fazia uma profunda reverência. "Bem, agora parece que podemos ir", observou meu novo amigo. "Nesse escritório, vendi ao negociante Allilúiev quatro deciatinas de floresta por um bom preço." Sentamo-nos na telega e, em meia hora, já estávamos no pátio da casa senhorial.

- Diga, por favor -perguntei a Polutikin, no jantar-, por que Khor vive isolado dos outros mujiques?

- Veja por quê: ele é o meu mujique esperto. Há 25 anos, a isbá dele queimou; ele veio ao meu finado pai e disse: "permita, Nikolai Kuzmitch, que eu me instale no pântano da floresta. Vou pagar ao senhor um ótimo tributo". "Mas por que você quer se instalar no pântano?" "Ah, porque sim: Nikolai Kuzmitch, meu pai, apenas não exija nenhum trabalho de mim, mas estabeleça um tributo, aquele que o senhor quiser." "Cinquenta rublos por ano!" "Como quiser." "Mas veja bem, não me venha com atraso!" "Eu sei, sem atraso..." Daí ele se instalou no pântano. E, a partir desse dia, passou a ser chamado de Khor.

- Ele enriqueceu?

- Enriqueceu. Agora ele me paga um tributo de cem rublos, e ainda é possível que eu aumente. Já lhe disse mais de uma vez: "Compre sua liberdade, Khor, compre...". Mas ele, malandro, me garante que não tem como: é o dinheiro, diz, não tenho... Sei! Como se fosse isso!

No dia seguinte, fomos caçar logo depois do chá. Ao passar pela aldeia, o senhor Polutikin mandou o cocheiro parar em uma isbá baixa, e chamou sonoramente: "Kalínitch!". "Já vou, meu pai, já vou", soou uma voz que vinha do pátio, "estou amarrando as alpargatas".

Prosseguimos; na aldeia, fomos alcançados por um homem de 40 anos, alto, magro, com a cabecinha erguida para trás. Era Kalínitch. Seu rosto bronzeado e bondoso, marcado aqui e ali pela varíola, agradou-me logo de cara. Kalínitch (como vim a saber mais tarde) ia caçar todo dia com o patrão, carregava sua bolsa, às vezes até a espingarda, observava onde estavam as aves, arrumava água, colhia morangos, construía cabanas, corria atrás da drójki; sem ele, Polutikin não conseguia dar um passo. Kalínitch era um homem do temperamento mais alegre e dócil, cantarolava a meia-voz o tempo todo, olhava despreocupadamente para todos os lados, falava um pouco pelo nariz, sorria, apertava os olhos azuis claros e passava a mão frequentemente na barba rala e cuneiforme. Não caminhava rápido, e sim a passos largos, levemente apoiado em um bastão comprido e fino. Ao longo do dia, falou comigo mais de uma vez, servindo-me sem ser servil, mas o patrão ele vigiava como se fosse um bebê.

Quando o calor insuportável do meio-dia nos forçou a buscar refúgio, ele nos levou a seu colmeal, bem no fundo da mata. Kalínitch nos abriu uma pequena isbá, revestida de tufos de ervas aromáticas secas, alojou-nos em feno fresco e colocou na cabeça uma espécie de saco de tela, pegou uma faca, um pote e um tição e foi à colmeia, cortar um favo para nós. Sorvemos um mel diáfano como água de fonte e adormecemos sob o zumbido monótono das abelhas e o murmúrio loquaz das folhas.

SOBRE O TEXTO Este trecho foi extraído da narrativa "Khor e Kalínitch", que abre "Memórias de um Caçador", livro publicado em 1852 e a partir do qual Ivan Turguêniev (1818-83) se tornaria conhecido. A coletânea de contos baseados nas observações do autor em suas estadas no campo deve ser lançada no país em maio, pela editora 34. Foram suprimidas as notas do tradutor. Leia íntegra do relato em folha.com.br/ilustrissima.


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