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Artes Plásticas

Hiperpop

Uma análise da situação de uma certa arte contemporânea

TALES AB’SÁBER

RESUMO Ao contrário do universo de superação que a arte dita moderna prometia, a confirmação da lógica do mercado e sua acumulação de lixo simbólico é o que a "arte show" apresenta hoje nas obras de nomes como Jeff Koons e Damien Hirst, que têm trabalhos na mostra "Em Nome dos Artistas", na Bienal, até o próximo dia 4.

Há muito sabemos não ser adequado esperar demais de uma certa produção e de um certo entendimento da arte contemporânea. Já há algum tempo aprendemos que devemos ser apenas ligeiramente inconsequentes a respeito desse mundo, estando plenamente disponíveis para fruir suas experiências, de fato suas experiências simplistas, com satisfação e alegria.

Já se passou mais de um quarto de século das grandes reivindicações da "transvanguarda" de Achille Bonito Oliva e da liberdade irônica pós-moderna de Charles Jencks, que libertariam a arte de qualquer comprometimento com excessivas noções estéticas e ordenações metafísicas históricas.

A arte deveria então, por aqueles princípios, se culturalizar, se referir à multiplicidade das imagens da história e do mundo, se tornar novamente narrativa e subjetiva, livrando-se de qualquer integridade histórica mais rigorosa ou ordenação mais estrita de forma, que confrontasse a liberdade prazerosa da circulação de imagens espetaculares pelo mundo.

Os resultados históricos avançados do movimento não são surpreendentes. A celebração da irracionalidade universal na esfera da arte, autocomplacente e hedonista -para alguns críticos, como Hal Foster, "conservadora", para outros, como Fredric Jameson, mais de natureza "esquizofrênica"-, totalizou e realizou um novo espaço crítico-espetacular, movido a celebrização pop, propaganda e redundância do poder do dinheiro na cultura do dinheiro.

BUSINESS Criou-se um novo espaço de "business art", como Andy Warhol chegou a sonhar um dia, de fato um mundo de "big business art", grandes interesses e fundos financeiros ativos, em posições inquestionáveis na cultura que controlam. Em sua arte de megashows populares, os próprios artistas passariam a ser gerentes de seu "capital art", em um sistema ubíquo que explora, no limite da produtividade da época, as "jazidas inexploradas da grande arte".

Assim, configurou-se, para uma perspectiva como a minha, a primeira armadilha crítica, paradoxal, no "pós-modernismo hiperalavancado" da arte contemporânea de entretenimento: simplesmente não se pode reivindicar orientação, ou dimensão, de quem, em nenhum momento, em nenhum tempo, se colocou no espaço da cultura com tais ultrapassados princípios, esperançosamente críticos. No mundo da "arte show" e da "arte de negócios", de fato, nada nunca foi muito sério, ou a nada se deu importância especial, a não ser a tradução direta do valor da obra em valor de troca.

Já o sabemos desde a origem da coisa toda, no paradoxo crítico que desmonta as exigências muito próprias do pós-modernismo programático, de meados dos anos 1980. O cinismo é uma boa estratégia de evitação crítica de uma ordem de espetacularização comercial da arte, e um grande criador do movimento, talvez o maior de todos, o colecionador e publicitário global inglês Charles Saatchi, toda vez deixa isso claro em suas lacônicas e sempre "raras" entrevistas.

Muito pelo contrário, tudo se afina mais com a ideia de uma satisfação qualquer -bem conhecida dos brasileiros desde que um artista crítico local a elaborou, com alto grau de exigência, ainda no final do século 19: Machado de Assis. Uma gozação imediata, randômica, uma ludicidade de ocasião, uma piada barata a mais, realizada necessariamente de modo técnico-industrial, que gere ainda uma vez mais um excedente da mesma lógica da economia universal do gozo que nos cerca, o único princípio verdadeiramente fixado.

PARQUE INFANTIL Das inspiradas desconstruções próprias dos envelhecidos princípios pós-modernos dos anos 80, de um Bonito Oliva, um Venturi ou um Jencks, com suas felizes facilidades diante da vida e da ordem dos poderes encontrados, até o magnífico parque infantil dos grandes brinquedos da arte de hoje -objetos basicamente excitatórios, apropriados às exigências nulas da época-, uma parte importante da arte contemporânea alcançou o seu verdadeiro destino: fundir-se ao seu próprio mundo, confundir-se com a vida das coisas dadas e com o poder de plantão em sua própria lógica.

Ao emular as coisas ao redor que simplesmente brilham e vendem, até não poder mais ser evocada como outra coisa do que o fetichismo universal, nada secreto, de sua própria cultura, essa arte busca a espetacularização sistemática, desejando apenas participar e celebrar a própria participação, mover um pouco mais o moinho redundante do império do espetacular, que nos circunda a todos.

Nesse sentido, creio que há pouca diferença entre, por exemplo, a legibilidade imediata e de baixo choque do show mundano de um Jeff Koons e exatamente o mesmo tipo de legibilidade e de exigências humanas presentes nas infantilizantes "pegadinhas" de um Faustão, que igualmente animam as massas e movem muito dinheiro, exatamente aquilo a que o artista também aspira.

Trata-se, desse modo, de uma arte de confirmação do que existe, da lógica própria do mercado e de sua acumulação de lixo simbólico, correlata e necessária à acumulação geral do dinheiro. Enfim, uma arte oficial, muito feliz.

Aqui cabe a diferenciação de um ponto de vista. A arte dita moderna, mesmo quando erótica e "feliz", como o foi no impressionismo e em Matisse, sempre apontou para um universo de superação e para a possibilidade de um trabalho social, disparado e tornado efetivo pela própria presença da arte no mundo, para além das condições em que a vida se encontrava. Nesse sentido ela era verdadeiramente erótica, produtora de uma experiência mediada de liberação, que se projetava na história.

CICCIOLINA Não por acaso, na outra direção, o americano Jeff Koons tem interesse pessoal tão grande na pornografia que chegou a explorá-la em sua arte e vida -casando-se e fotografando-se a si próprio em imagens pornográficas superficiais com a atriz pornô Cicciolina- sempre de modo fácil e diretamente decodificável: sua arte feliz é praticamente pornográfica na confirmação reiterada dos esquemas do kitsch de massas e da legibilidade mais que evidente da sua técnica industrial exibida.

Ela é feita para o que já está dado. Não conhece horizonte de problematização e superação de seus próprios princípios, que são os da cultura industrial e de massas em geral, tomados como todo horizonte do possível. Seu universo não é o da imaginação erótica, com a sensibilidade aberta à mediação formal; ele é, ao contrário, o da determinação do gozo pesado e compulsório, o da pornografia da hiperexposição sem mediação do presente, da coisa em si do gozo, muito apropriada à forma da mercadoria.

Não se pode dizer que a arte de Koons amplie muito os horizontes estabelecidos de seu mundo, tão bem recebido e exibido nela.

Quando Andy Warhol realizou sua iconografia pop clássica e Hélio Oiticica criou seus ambientes penetráveis e eróticos paradoxais, como a sua "Cosmococa" -para ficarmos em apenas dois artistas influentes do passado recente-, eles estavam no umbral desse mundo mundano e participativo, tornado excessivamente fácil. Mas sua arte ainda guardava a dinâmica rica das contradições em expansão no mundo problemático em que se encontravam. A nova arte pop é simplesmente forma sem contradição, é uma forma triunfal de confirmação do que existe.

'FIM DA ARTE' Quando, já há muito tempo, Hegel pensou pela primeira vez "o fim da arte", o que estava em jogo era a perda da eficácia mágica e sagrada imediata da arte, o esvaziamento da sua intensidade mítica na vida humana, na origem do movimento de sua problematização conceitual cada vez mais irreversível. O que então emergia historicamente era o rebatimento inevitável da esfera da arte no espaço histórico fraturado da modernidade, de possibilidades até então inéditas e de recusas sistemáticas e sintomáticas destas mesmas possibilidades.

Naquela ordem histórica, a arte e seu desde então necessário "conceito" não tinham mais localização ou garantia imediata. Abria-se então, naquele tempo, a benevolente ilusão histórica do juízo isento, que seria o mais próprio à valoração e ao verdadeiro gosto estético. O movimento contemporâneo da grande arte de confirmação não deixa de ser verdadeiramente o avesso daquela perspectiva, a de uma arte que se tornou estruturalmente problema, tão própria à modernidade ocidental.

Ao que tudo indica, a nossa arte de parquinho de diversões, em todos os cantos da sua cultura globalizada, é uma arte que quer evitar, maniacamente, as dimensões dos problemas, em si própria e no próprio mundo, tendo por compulsão confirmá-lo. É uma arte que quer apenas renascer na sua identidade com a vida dada, ou, no melhor dos casos, que "quer morrer à sua maneira", como dizia Freud, desaparecendo eficazmente na paisagem e no princípio da festa geral das coisas e do dinheiro -com o qual busca se confundir, na esperança artificialmente mantida pela propaganda e autopropaganda constantes. Como um ser infantil de Mathew Barney, atravessando seu útero de parafina até se lambuzar e se confundir, e quase se fundir inteiramente, na própria massa informe do seu mundo de imagens espetaculares...

Essa arte não quer se diferenciar do "branding" da grande marca mundana nem da grande festa tecno própria do capitalismo avançado, a sua verdadeira referência externa; de fato ela se concebe mesmo como tal, como "shape branding" de mercado dos próprios artistas e seus novos nomes luminosos, de fantasia, para as exposições "blockbuster" que correm o mundo: Jeff Koons, Damien Hirst, Takashi Murakami, Matthew Barney...

A tradicional e proverbial timidez e a fragilidade técnica dos artistas brasileiros que mais se aproximam desse movimento global, como Ernesto Neto, Vik Muniz ou Beatriz Milhazes, por exemplo, não deixa de ser um bom símbolo da minoridade da atual inserção brasileira, ainda pré-técnica, na sua triunfante "entrée" contemporânea no espírito mais geral do capitalismo tardio.

ÍDOLO POP Em um dos últimos videoclipes de Michael Jackson -que tentava ainda salvá-lo da irrelevância de sua música diante da elevação do seu transformismo pessoal ao lugar de sua verdadeira arte-, o artista que finalmente virou coisa foi figurado em um misto de ídolo pop e de estatuária e liturgia de massas de estética fascista.

O último Jackson, que em tudo coincide com o espírito da arte de Koons, que foi retratado em uma obra por ele, bem como poderia ser ele próprio uma obra do artista plástico, era confirmado pelos seus gerentes simbólicos como aquilo que ele de fato parecia ser: uma figura totalizante que exigia submissão universal, de modo simplesmente acrítico, antiautônomo e relativamente ignorante, em um teatro incorporado de massas, de confirmação e de celebração do mais óbvio existente.

Sua arte, como a de grande parte dos artistas plásticos de hoje, era condescendente com a exibição e a realização do próprio dinheiro em si mesmo, condensado e deslocado na forma do efeito especial técnico, de modo a se tornar confirmadora e felizmente celebratória de tudo o que existe.

Nos anos de 1970, diante da radicalização crítica da cultura jovem, Richard Nixon propunha os Carpenters como "verdadeira expressão" da cultura americana jovem. Tal kitsch feliz e conservador foi elevado ao nível da perversão da mercadoria de Michael Jackson, própria da cultura neoliberal. Como os roteiristas e diretores envolvidos na ironia autoreflexiva do clipe de Jackson perceberam muito bem, o mundo hiperpop, confirmador e produtivo da ordem dada de nosso mundo, em que kitsch e técnica viram valores abstratos absolutos, o mundo de Jackson e de Koons, é o mundo realizado do "realismo socialista pop".

E, exatamente por isso, não devemos encontrar "press releases" da espetacular exposição destes artistas em cartaz no prédio da Bienal, que não diga coisas como essas, vindas diretamente do presidente da Fundação Bienal de São Paulo, Heitor Martins (em declaração ao site do jornal "Brasil Econômico"): "Trata-se de um acervo que em leilão arrecadaria US$ 1,5 bilhão. 'Mother and Child Divided', de Hirst, por exemplo, é estimada em US$ 100 milhões. A Bienal gastou R$ 9 milhões para trazê-los, dos quais R$ 3 milhões são de projetos educativos. Mas quando você compara isto com as cifras do esporte, por exemplo, estes números são irrelevantes".

Pelo que pude entender, o sonho cultural de Martins seria competir, no mundo da indústria cultural mais desabrida, com os números próprios da indústria global do esporte... A arte serve para isso.

TÁBULA RASA É muito interessante como a escala desse nível de negócios da arte contemporânea e seu fetichismo endógeno, autoconfirmador pela própria presença da massa de dinheiro envolvida, faz tábula rasa da maioria do pensamento crítico que trabalha com a ideia -anacrônica, diante das realizações da "business art"- da diferenciação do espaço e do objeto de arte no mundo, que em grande parte ainda é o circuito do pensamento sobre arte no Brasil.

Walter Benjamin dizia que a verdadeira crítica deveria resgatar o objeto cultural, a obra de arte, da sua utilização para a autocelebração própria da cultura dos vencedores. Bons tempos... Evidentemente, o seu pensamento operava no plano das categorias modernas, dialéticas e críticas, de esperança efetiva de transformação, exatamente como trabalhavam os artistas que ele comentou e elegeu, com o maior rigor e precisão, todos indicando um espaço de razões e desejos simplesmente para fora do mundo enfeitiçado da história aplainada para o mercado, como Baudelaire, Proust, Kafka e Paul Klee.

Aquele mundo era o da autonomia da esfera artística, da inquietação dialética forte, no plano da forma e na posição da arte em relação à vida, da alta exigência e inventividade da noção da forma, da negatividade do trabalho do pensamento, da negociação pela arte entre o elevado e o baixo, visando a efetivação da crítica, abrindo dimensões reais ao espaço simbólico de modo a recusar a má identidade entre a arte e uma vida falsamente reconciliada.

No mundo de hoje, ao contrário, é preciso preservar a crítica, o conceito, do rebaixamento satisfeito e triunfal de sua principal e patética arte, e seu show plenamente a favor do imediato, ou o seu simulacro de estranheza, pop espetacular. É claro que artistas como Koons e Hirst diriam simplesmente "e daí?" a respeito de uma posição como esta, provavelmente abanando as suas muitas e muitas notas de dinheiro, para respirar o seu ar. Ao que o crítico deve responder que tal posição é, provavelmente, o ápice do movimento, não nomeado, do "fascismo de consumo".

Creio que há pouca diferença entre a legibilidade do show de um Jeff Koons e a legibilidade presente nas "pegadinhas" de um Faustão

A arte dita moderna, mesmo quando erótica e "feliz" sempre apontou para um universo de superação e para a possibilidade de um trabalho social

Nossa arte de parquinho de diversões quer evitar as dimensões dos problemas, em si própria e no próprio mundo, tendo por compulsão confirmá-lo

Pelo que entendi, o sonho cultural do presidente da Fundação Bienal de São Paulo seria competir com os números próprios da indústria global do esporte

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