São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2010

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CINEMA

O tofu de Ozu

O desencantado senhor da solidão

RESUMO O crítico Carlos Augusto Calil comenta alguns aspectos da poética do cineasta japonês Yasujiro Ozu, que tem boa parte de sua obra reunida em retrospectiva em São Paulo e no Rio de Janeiro. O cineasta, que se declarava um "fazedor de tofu", compôs um retrato original das transformações do Japão de meados do séc. 20.

CARLOS AUGUSTO CALIL

ACABA DE PASSAR pela tela do CCBB-SP, a caminho do Rio (onde fica em cartaz até 22/8), uma das maiores retrospectivas do grande cineasta japonês Yasujiro Ozu (1903-63).
Um público fiel marcava encontro regular na rua Álvares Penteado, no centro de São Paulo, com devoção de iniciados e a certeza de compartilhar uma experiência única. Segundo um crítico francês, a descoberta de Ozu (pronuncia-se Ôzu), mesmo tardia, nos obriga a "repensar o cinema".
Esse realizador de mais de 50 filmes ao longo de 35 anos manteve-se imperceptível ao espectador ocidental enquanto os festivais europeus cultuavam Akira Kurosawa e Kenji Mizoguchi. O motivo? Era japonês demais para ser compreendido por nós, simples ocidentais. Suspeito que o orgulho nipônico e sua suficiência cultural tenham cunhado esta fórmula para preservar a exclusividade do convívio com filmes cuja capacidade de extrair emoção do aparentemente banal é de espantar.
Na tradição japonesa, consagraram-se duas formas de representação artística: o "jidai-geki", com obras em contexto histórico, como por exemplo o teatro Nô e os filmes de samurai, e o "gendai-geki", que aborda temas contemporâneos. Ozu era fiel ao segundo modo.

GENTE COMUM Seus dramas familiares se desenrolam no restrito espaço da casa de madeira e papel. Toda a sua imensa obra, com raras exceções, poderia ser condensada num único tomo, sob o título "Pais e Filhos". E Ozu, que nunca foi pai e morou com a mãe a vida inteira, invariavelmente toma o partido dos genitores.
No seu estilo predomina o tom rebaixado, da desdramatização, o que volta e meia o leva a obrigar o ator a repetir dezenas de vezes um gesto banal até que não sobre resquício de interpretação. Seu ator preferido, Chishu Ryu, era sabidamente um rosto sem expressão, um boneco de engonço, que se prestava à perfeição ao movimento imposto pelo mestre oculto.
Yasujiro Ozu só se interessa por pessoas normais, imperfeitas, gente comum, em meio às quais não há lugar para heróis. Mesmo o personagem mesquinho, caso da filha mais velha em seu filme "Era uma Vez em Tóquio" (1953), que pede o quimono da mãe na cerimônia do seu funeral, embora criticado, nunca é julgado, mas visto com compaixão.
A vida ordinária dessas pessoas se desenrola em sucessivos "desacontecimentos", num cotidiano levemente dramatizado, a que não falta o senso de humor, geralmente introduzido pelas crianças. Ozu era um grande diretor de crianças, retirava delas uma espontaneidade capaz de descontrair o espectador japonês, tão condicionado ao protocolo da cordialidade social e à expressão codificada, de cumprimentos formais e frases de sentido convencional.
Como em Hitchcock, com quem guarda muitas semelhanças, no cinema de Ozu predomina a composição do quadro, a simetria, a harmonia, às quais se submetem os atores, subordinados ao visual, à sua posição no cenário. Esse obsessivo artista gráfico compunha os planos como "tableaux", em rigoroso equilíbrio.

O TEMPO E O ESPAÇO Os atores comportam-se como se estivessem sendo observados pela câmera na posição de participante da cena. Como as pessoas em casa estão sempre agachadas no tatame, a câmera, como hóspede, permanece baixa, na altura do anfitrião. O plano é geralmente médio, a câmera não pode invadir o território da pessoa.
A visualização é frontal, bidimensional, provocando o achatamento do quadro. Não há linhas de fuga, mas planos sucessivos na distância. Como os japoneses não se olham de frente, ele os representa sempre em posições paralelas, por isso pode recusar o campo/contracampo, que no seu estilo de representação não tem função nenhuma. Os personagens falam diretamente para a câmera. Ao espectador desavisado, parece erro de continuidade, pela sistemática quebra do eixo.
No regime estritamente visual, surgem planos de naturezas mortas e paisagens, que promovem a suspensão do fluxo narrativo e assumem a função de pontuação do discurso. Um varal com roupas dependuradas. Um trem que passa. Um barco que passa. Totens de neon. Empenas de prédios em composições abstratas, feitas de contrastes de planos de luz. No quarto, um vaso na contraluz da madrugada. Rimas visuais -a garrafa vazia e o farol, no início de "Ervas Flutuantes" (1959), parecem nos dizer que o título do filme poderia ser "Pai e Filho".
Como na vida corriqueira, o tempo é escondido nos filmes de Ozu-san. A duração adquire dimensão física, assim como a imagem. O tempo tem espessura, ressalta sua materialidade. A obra de Ozu ilustra uma expressão contraditória, mas corrente da língua portuguesa: o "espaço de tempo". O tempo se converte em espaço na duração, e o efeito sobre o espectador é o de revelar uma certa imanência. Existem igualmente na poesia japonesa versos curtos que não seguem o fluxo lírico e o suspendem.
Os prazeres -sobretudo os orais- ocupam os personagens. Estão sempre a comer, nem sempre iguarias. O supremo prazer pode estar condensado numa singela porção de arroz com chá verde. Bebem muito: saquê, uísque ou cerveja. Jogam majongue ou "pachinko" (espécie de "pinball" montado em série). Fumam muito, cantam, folgam, trabalham por obrigação. O trabalho de escritório é sempre automático, repetitivo, sem sentido.
Do mesmo modo, Ozu não hierarquiza sentimentos ou ações. Os meninos travessos de "Bom Dia" (1959) desafiam os colegas a emitir peidos, sob controle. É claro que um deles se borra todo. Em meio à conversa íntima, personagens começam a cortar unhas.
Seus filmes podem ser estudados à luz da psicologia, em seu capítulo oriental, mas sobretudo pela antropologia urbana. Um Lévi-Strauss já idoso, perguntado se ainda ia ao cinema, respondia: "Só para ver filme de Ozu".
Nesses inúmeros filmes, há ainda quem reconheça uma ligeira nostalgia de um modo de ser oriental que se perde com a ocidentalização compulsória do Japão, após a derrota na Segunda Guerra Mundial (1939-45). Traços perceptíveis: homens e moços de terno, mães e avós de quimonos, enquanto que as moças vestem saia e blusa. O quimono é reservado para o casamento, e as moças já se sentem desconfortáveis na tradição. Na verdade, Ozu apenas observa o rito de passagem do Japão tradicional para o novo, que ele mesmo, cético, não consegue vislumbrar em sua extensão. Em todo caso, na mesa do bar, compõe o quadro com duas garrafas: a do saquê e a do uísque.

FILOSOFIA ZEN Se Ozu e seu sistema parecem impenetráveis aos ocidentais, há uma senda de aproximação: a filosofia zen, que depura o existencialismo oriental, o "estar-aí" das coisas, do decorrer do tempo. Entre as categorias zen, destacam- se o culto à simplicidade, o elogio da maturidade (serenidade), a percepção do estado de latência (o paraíso numa poça d'água), a valorização da informalidade (cotidiano) e a aspiração à quietude (busca da harmonia das harmonias).
O zen associa as estações do ano às fases da vida: primavera (infância e juventude), verão (apogeu), outono (declínio da velhice), inverno (morte). A partir de 1949, com "Fim de Primavera", que no Brasil recebeu o título de "Pai e Filha", Ozu realiza filmes que passa a intitular segundo a convenção zen: "Começo de Verão" (no Brasil, "Também Fomos Felizes", 1951), "Começo de Primavera" (1956), "Fim de Outono" (no Brasil, "Dias de Outono", 1960), "Fim de Verão" (1961). Sua técnica nesse tempo simplifica-se ao máximo, com planos fixos, cortes duros e a renúncia a ornamentos de estilo ou movimentos de câmera.
O zen ilumina igualmente a oposição entre exterior, em que se impõe o código cultural em contraponto com a indiferença da natureza, e interior, marcado pela percepção individual, que no limite espera a revelação da epifania. A súmula zen é a consciência do "Mu", cuja tradução oscila entre o nada, o intangível e o impalpável. Não por acaso, a lápide do túmulo de Yasujiro Ozu traz apenas esta inscrição -"Mu".
Diante da consagração como mestre na sua arte, proclamava ser apenas "fazedor de tofu", essa massa branca de soja, de sabor neutro, que pode receber amorosamente os mais sutis sabores desse cozinheiro notável.

PAI E FILHA Peço licença ao leitor neófito, que ainda não provou o tofu de Ozu, de tentar descrever a experiência de ser espectador de seus filmes. Escolho aquele que me parece ser o maior deles todos, "Pai e Filha" (1949), por cristalizar o método narrativo em seu mais alto nível. Nesse filme, o pai viúvo vive com a bela filha, que se recusa a se casar por fidelidade ao papel herdado da mãe. O pai, com a ajuda de amigos, inventa estratagemas para convencê-la.
Sequência: o pai (Chishu Ryu) chama a filha Noriko (Setsuko Hara) para uma conversa. Ela arranca dele uma confissão sobre seu futuro casamento (na verdade, uma simulação para liberá-la das funções da mãe). Ela chora. Ele a procura, ela reage, traída. Corredor vazio. Ele passa e diz: "Amanhã tudo estará bem novamente". Convida a irmã (Kumiko Miyake) a visitar o templo em Kamakura. A irmã acha uma carteira e fica eufórica. Bom agouro. Eis um exemplo de senso de humor ozútico.
Sequência: pai e filha viajam a Kyoto para a despedida de solteira dela. Repousam no mesmo quarto de hotel. Ela tenta falar-lhe, ele dorme. Ela sorri de compaixão. Um vaso em contraluz da janela. Imanência. Equilíbrio. Felicidade fugaz.
Sequência: o pai e um amigo diante do Jardim de Pedra. Conversa deles: se os filhos não se casam, geram preocupação; se se casam, frustração.
Sequência: menino está impaciente junto ao carro que levará a noiva. Dentro de casa, a linda noiva paramentada. A tia evoca a mãe. Lança um último olhar sobre o quarto, para certificar-se de que nada esquecia. Depois da cerimônia, o pai e a amiga divorciada da filha tomam saquê. Ele então confessa que jamais pensou em se casar de novo, mentiu para liberar a filha para o casamento. Volta para casa sozinho. Senta, descasca uma maçã. Chora. Ondas na praia.
Ozu era mestre na contenção dos sentimentos e na manipulação da evolução dramática até a liberação da emoção. Esta emana da natural condição humana isenta de artifício, em forma de arte, sem intenção de arte.
Seus últimos filmes transmitem serenidade, equilíbrio, suave resignação. Com o impacto da emoção em estado puro, desprovida de sentimentalismo, o espectador experimenta uma sensação de plenitude, de conforto psicológico, de discreta euforia, de reconciliação com "a vida como ela é". A catarse como a melhor terapia.
"Então a vida é decepção?", pergunta a filha mais jovem no velório de sua mãe em "Era uma Vez em Tóquio". "A vida é um sonho vazio", constata o bêbado aposentado em "Começo de Primavera".
A obra de Yasujiro Ozu, o desencantado senhor da solidão, transcende o cinema, é cultural e coletiva, é de toda uma cultura codificada. Por isso, pensam os japoneses que é incompreensível aos ocidentais. Ledo engano, para nossa felicidade.


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