São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ESPORTE

Uma epopeia sobre pedais

Por que o Tour de France faz a cabeça dos franceses

RESUMO O Tour de France, que teve sua edição 2010 encerrada no último domingo, não é apenas a mais tradicional competição do ciclismo mundial: ultrapassou o esporte para firmar-se entre os principais acontecimentos culturais na Europa, mobilizando público, jornalistas, esportistas e artistas que, ao longo do séc. 20, deram à prova caráter mitológico.

ALEXANDRE AGABITI FERNANDEZ

O TOUR DE FRANCE DESTE ANO, que terminou no último domingo, 25 de julho, foi um dos mais equilibrados da história da prova, disputada desde 1903. Depois de pedalar por 3.596 km -distância equivalente à que separa São Paulo de Rio Branco (AC)-, em 21 etapas, o espanhol Alberto Contador, 27, superou o luxemburguês Andy Schleck, 25, por meros 39 segundos e sagrou-se tricampeão do Tour -venceu também em 2007 e 2009. Escassa, a vantagem foi a quinta menor da história. No ano passado, a margem de Contador sobre o segundo colocado, o mesmo Schleck, foi de folgados 4 minutos e 11 segundos.
Os franceses não ganham desde 1985, mas ainda são os que mais venceram: 36 vezes, seguidos pelos belgas, com 18 triunfos. Ciclistas espanhóis já venceram 13 vezes; americanos, dez, e os italianos têm nove vitórias.
O Tour de France é uma das mais tradicionais competições esportivas do planeta. Apenas os Jogos Olímpicos -disputados desde 1896- e um campeonato de rúgbi, o Torneio das Seis Nações (o antigo Torneio das Quatro Nações), criado em 1883, são mais velhos do que a prova ciclística gaulesa.
O ciclismo de estrada é um esporte individual, mas que se disputa coletivamente. No Tour deste ano, deram a largada 198 ciclistas, defendendo 22 equipes, cada uma com nove atletas. Um deles, o líder, almeja a vitória na classificação geral -vence quem fizer o menor tempo na soma das etapas.
A cada etapa, o líder da classificação geral veste o "maillot jaune", a camiseta amarela que é o "manto sagrado" do ciclismo. Os outros membros da equipe têm a missão de trabalhar para o líder, o que pode ser dar o ritmo durante a subida de uma montanha, buscar água junto ao carro de apoio, ajudar o líder a voltar ao pelotão no caso de um pneu furado ou problema mecânico. Muitos dos que não têm ambições na classificação geral podem ter como objetivo vencer alguma etapa, o que lhes dá enorme projeção. Foi o caso do brasileiro Mauro Ribeiro, que mudou sua vida ao vencer uma etapa em 1992.
Todo ano, nas três primeiras semanas de julho, o Tour fascina os europeus de países onde a bicicleta é popular, como Itália, Espanha, Bélgica, Holanda e, especialmente, a França. Multidões acampam na beira da estrada para ver passar os ciclistas; os fãs passam as tardes na frente da TV, acompanhando o desenrolar das etapas. O Tour é assunto nas ruas, nos cafés, em dezenas de livros publicados a cada verão.
A imprensa também se agita. A televisão francesa transmite ao vivo as quatro últimas horas de cada etapa, com uma parafernália de câmeras colocadas em motos e helicópteros. Aqui no Brasil, desde 2006 a ESPN transmite ao vivo a última hora das etapas, com narração e comentários em português.

PEQUENA RAINHA Engenhoca eminentemente popular nas primeiras décadas do século passado, a bicicleta é venerada pelos franceses, que a chamam de "petite reine" (pequena rainha). Mais recentemente, a bicicleta voltou a se disseminar como meio de transporte nas grandes cidades europeias, fenômeno que tomou impulso em Paris, durante uma prolongada greve dos transportes públicos em 1995.
Se a bicicleta é um ícone cultural incontestável, o Tour, sua máxima celebração, é um fenômeno fortemente enraizado na cultura francesa. A extrema dificuldade da prova, que inclui etapas montanhosas nos Alpes e nos Pireneus, é uma das razões de sua enorme popularidade.
As etapas são diárias e podem ultrapassar os 200 km, sob temperaturas frequentemente superiores aos 30°C. Não é raro que uma etapa de montanha dure mais de seis horas. Por isso, o sofrimento físico dos atletas inspira tanto respeito e admiração. Pude provar um pouco desse sofrimento, pois pedalei durante uma semana nas estradas francesas durante o Tour deste ano, subindo algumas duríssimas montanhas dos Alpes. Respeito ainda mais os ciclistas depois desta experiência.
Os atletas podem ser classificados em três linhagens, segundo suas aptidões. Existem os "sprinters", de grande capacidade anaeróbica e explosão muscular, de enorme potência durante alguns segundos. Eles disputam a chegada das etapas com topografia plana, podendo atingir até 70 km/h. O melhor "sprinter" tem a honra de vestir uma camisa especial, de cor verde. Neste ano, o privilégio coube ao italiano Alessandro Petacchi. Um "sprinter" jamais pode vencer o Tour, pois ele tem mais dificuldade em passar pelas montanhas, que exigem maior capacidade aeróbica.
Os escaladores têm um biótipo diferente dos "sprinters": em geral são mais baixos, mais leves e se destacam assim que as montanhas entram no percurso. O escalador se caracteriza por uma ótima relação peso/potência. Ao melhor escalador cabe uma camiseta algo espalhafatosa: branca com bolinhas vermelhas. O rei das montanhas do Tour 2010 foi o francês Anthony Charteau.
O terceiro tipo de ciclista é o passista. Ele é capaz de pedalar longas distâncias em alta velocidade, girando as pernas com muita rapidez. O passista se dá bem nas etapas de contrarrelógio, quando cada ciclista larga e faz a prova sozinho, como acontece em um rali de automóveis. O melhor nesta especialidade é o suíço Fabian Cancellara, que venceu o contrarrelógio em 2010.
O vencedor do Tour costuma ser o ciclista mais completo; pode não ser o melhor passista ou o melhor escalador. O percurso -que muda a cada ano- é variado, incluindo etapas planas para os "sprinters", montanhas para escaladores e etapas de contrarrelógio para os passistas. Alberto Contador é um excelente escalador e se defende bem no contrarrelógio, sem ser brilhante. Por isso, venceu.

DOPING Até 1965 não havia, na França, controle em relação às substâncias absorvidas pelos ciclistas, que usavam cocaína, clorofórmio, álcool, arsênico. O surgimento dos controles antidoping não impediu a morte do inglês Tom Simpson, no Tour de 1967, durante a subida do monte Ventoux, por overdose de anfetamina. Campeões dos anos 1960 e 1970 foram flagrados no exame antidoping, como o francês Jacques Anquetil, o belga Eddy Merckx -o maior vencedor da história do ciclismo-, o espanhol Luis Ocaña, o holandês Joop Zoetemelk. O doping selvagem é o tema de "Le Vélo de Ghislain Lambert" (2001), filme de Philippe Harel, que narra as aventuras de um ciclista dos anos 1970 que sonha com a glória e acaba descobrindo o mundo das substâncias proibidas.
Hoje, o doping é científico, feito com ajuda de médicos. A autotransfusão de sangue, de difícil detecção, é o procedimento mais em voga, mas também se usam hormônios de crescimento e eritropoietina, hormônio que aumenta o número de glóbulos vermelhos. O número de controles cresceu, sua acuidade também, mas os trapaceiros parecem estar sempre um pouco à frente da evolução dos métodos de detecção.

EPOPEIA Desde o início, o Tour de France ultrapassou a esfera do noticiário esportivo para ganhar tratamento literário e cultural. O primeiro a ressaltar a dimensão épica da prova foi o jornalista e escritor Albert Londres (1884-1932), que cobriu o Tour de 1924 para o jornal "Le Petit Parisien". Em suas crônicas, recorreu ao vocabulário da gesta épica para descrever as façanhas dos atletas. O jornalista não era iniciado em ciclismo, por isso enxergou, principalmente, a dor no sofrimento dos atletas, sendo menos sensível à beleza e à generosidade do esforço físico. O tom amargurado e pomposo de seus relatos marcou época e influenciou gerações de jornalistas e leitores.
"Quando eles subiam o Izoard ou o Galibier", escreve Londres, citando duas montanhas dos Alpes com mais de 2.000 m de altura, "não pareciam mais pressionar os pedais, mas arrancar grandes árvores. Tiravam alguma coisa invisível de suas forças, algo escondido abaixo do solo, mas isso nunca aparecia."
"Quando o olhar deles encontrava o meu, lembrava o de um cachorro que tive e que, antes de morrer, me confiou sua profunda dor de ser obrigado a deixar a Terra. Depois, baixavam os olhos novamente e continuavam, curvados sobre os guidões, olhando fixamente para a estrada, como procurando saber se as gotas de água que semeavam eram de suor ou de lágrimas."
Londres só tinha visto uma coisa parecida com os esforços que os competidores fizeram para vencer os 5.425 km da prova daquele ano, divididos em 15 etapas: os trabalhos forçados dos condenados de uma colônia penal de Caiena, na Guiana Francesa, sobre a qual fez uma reportagem.
O jornalista forjou uma série de expressões que são ainda usadas, como "gigantes da estrada", "Tour do sofrimento". O bordão mais famoso, "condenados da estrada", não é de sua lavra, mas lhe foi atribuído e assim se consagrou. Reunidas em um volume, as crônicas de Londres sobre a prova são um sucesso editorial até hoje.

MITOLOGIA A dimensão épica foi aprofundada três décadas depois por Roland Barthes. Em seu ensaio sobre a competição, incluído no livro "Mitologias", o crítico observou que "a geografia do Tour é, ela também, inteiramente submetida à necessidade épica da prova. Os elementos e os terrenos são personificados, pois é com eles que o homem se mede e, como em toda epopeia, é importante que a luta oponha medidas iguais: o homem é, portanto, naturalizado, e a Natureza, humanizada".
Seria possível fazer uma antologia razoavelmente robusta sobre a presença do Tour e da bicicleta na literatura francesa. Alguns escritores estabeleceram uma relação afetiva com o ciclismo, como Alfred Jarry (1873-1907). O pai de Ubu e da patafísica desenvolveu uma teoria extravagante, bem ao seu estilo: "a bicicleta exoesqueleto", que explicava assim: "O homem percebeu tarde que seus músculos podiam mover, por pressão e não mais por tração, um esqueleto exterior a si mesmo. A bicicleta é um novo órgão, é um prolongamento mineral do sistema ósseo do homem".
A bicicleta aparece em vários escritos, como no romance "O Supermacho" e em crônicas como "A paixão considerada como uma corrida de montanha" e "A mecânica de Ixion". Ávido por exercício físico e novas sensações, Jarry jamais ficava longe da bicicleta.
Outro escritor-ciclista foi Louis Nucéra (1928-2000), que em 1985 refez o percurso do Tour de 1949 para sentir na pele as agruras dos ciclistas. Amigo de ícones das artes do século 20 como Picasso, os escritores Jean Cocteau e Vladimir Nabokov e o compositor Georges Brassens, Nucéra escreveu sobre a vida dos imigrantes italianos, a amizade, sua infância em Nice e a generosidade do ciclista René Vietto, herói do Tour de 1934, que sacrificou suas ambições pela vitória de Antonin Magne, companheiro de equipe. Nucéra morreu aos 72 anos, atropelado por um motorista enquanto pedalava pela ensolarada Provença.
Em "Je me Souviens", antologia de fragmentos de lembranças de infância e juventude publicada em 1978, o escritor Georges Pérec (1936-82) anotou: "Eu me recordo de ter conseguido, no Parque dos Príncipes, um autógrafo de Louison Bobet". Bobet, grande ícone do torneio, foi o vencedor em 1953, 1954 e 1955.
Em 1947, quando o orgulho nacional francês ainda sofria as feridas da guerra, o poeta Louis Aragon (1897-1982) escreveu: "O Tour é a festa de um verão de homens, e é a festa de todo o nosso país". O antropólogo Marc Augé, pesquisador da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), rasgou a seda no jornal "Le Monde Diplomatique": "O Tour de France é uma viagem, é a 'Odisseia'. Mas também é a 'Ilíada', o combate cotidiano no qual os campeões se enfrentam no pé das escarpas".

CHANSON E CINEMA Na música francesa também não faltam referências ao Tour e ao ciclismo. Um dos grandes sucessos de Yves Montand, "À Bicyclette", é um bom exemplo, com seu ritmo saltitante, que emula a cadência das pedaladas. Outros nomes consagrados da "chanson française", como Mireille Mathieu, Georges Brassens e Joe Dassin, também louvaram a bicicleta.
A atriz e cantora Arletty gravou, com Michel Simon, "Viens, Viens Madeleine", crônica sobre as tribulações de um casal de ciclistas. Alain Bashung, expoente do pop-rock, compôs a delirante "L'Arrivée du Tour". Até mesmo grupos punk celebraram o esporte: um dos maiores sucessos da banda Ludwig Von 88 é "Louison Bobet Forever", homenagem ultrassarcástica ao campeão francês.
A cinematografia francesa relacionada à bicicleta tem obras importantes. O primeiro filme sobre ciclismo é "Le Roi de la Pédale" (1925), de Maurice Champreux, ficção rodada em pleno Tour de France, com atores e ciclistas verdadeiros. "Pour le Maillot Jaune" (1940), de Jean Stelli, também mistura atores e ciclistas para falar do doping como se fosse a coisa mais natural do mundo. Stelli fez outro filme sobre o tema, o policial "Cinq Tulipes Rouges" (1948).
Um dos mais belos filmes é "Carrossel da Esperança" (1949), de Jacques Tati, que encarna um carteiro meio maluco, ousadíssimo em suas manobras com a bicicleta, que, em uma cena, ultrapassa todo o pelotão do Tour de France. Outra comédia marcante é "Les Cracks" (1968), filme cult de Alex Joffé, com protagonista que inventa uma bicicleta revolucionária para que seu cunhado vença uma prova entre Paris e San Remo, na Itália, em 1901.
Outro filme importante sobre o ciclismo é conhecido do público brasileiro: "As Bicicletas de Belleville" (2002), animação de Sylvain Chomet que conta a história de um menino tristonho que se apaixona pelo ciclismo e decide treinar para participar do Tour de France.
Salvador Dalí, que viveu por muitos anos na França, sintetizou a sensação de que a prova é um sinônimo da alegria que toma o país nessa época do ano. "Quando acaba o Tour de France", disse o pintor, espanhol como o campeão de 2010, "tenho uma espécie de depressão [...], sinto que me falta alguma coisa: grande parte do encanto paradisíaco do meu verão acaba de terminar".


Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Literatura: Ernesto Sábato, 99
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.