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LITERATURA
Ernesto Sábato, 99
Justiça, amizade, liberdade e compaixão
RESUMO Aos 99 anos, o escritor argentino Ernesto Sábato, Prêmio Cervantes de
1984, é tema de documentário sobre sua vida familiar e afetiva, dirigido por seu
filho Mario, e tem o seu romance "Sobre Heróis e Tumbas" (1961), central na
literatura latino-americana, relançado em edição crítica publicado na coleção
"Archivos".
DENISE MOTA
É DOMINGO, A FAMÍLIA está reunida na biblioteca -ponto de encontro doméstico
tradicionalmente escolhido para jogar conversa fora-, mas ainda falta o
integrante mais ilustre do clã: Ernesto. A inquietação cresce. Subitamente a
porta do corredor se abre, e surge um homem idoso, que caminha maquinal, em
passadas rígidas e sincopadas, até o outro lado da casa, sem olhar ao redor, sem
emitir palavra.
Segundos depois, corre no encalço de Ernesto uma menina pequena, aos gritos de
"Vem cá, robô!". Ali, Ernesto Sábato, 99, não era tanto o romancista de "Sobre
Heróis e Tumbas" (trad. Rosa Freire d'Aguiar, Companhia das Letras), Prêmio
Cervantes de 1984, mas, simples e definitivamente, um avô.
Como muitas outras histórias da vida íntima de Sábato, também ensaísta e físico,
essa passagem de sua existência é contada por seu filho, Mario Sabato, diretor
de "Ernesto Sábato, Mi Padre", documentário recentemente lançado na Argentina
sobre seu maior escritor vivo. Como diz o diretor, "não é um filme para
historiadores, estudantes de letras, acadêmicos", mas um retrato íntimo, urdido
entre quatro paredes, do "homem por trás do bronze", como afirma Mario à Folha.
Aos 65 anos, diretor de cinema e televisão, Mario Sabato tem 15 filmes em seu
currículo, alguns deles baseados na obra do pai, como de "El Poder de las
Tinieblas" (1979), que tem como ponto de partida o "Informe sobre Cegos", ou "El
Nacimiento de un Libro" (1963), curta-metragem que dirigiu aos 18 anos, sobre o
processo de criação de "Sobre Heróis e Tumbas" (1961).
COTIDIANO O filme cobre quase meio século do cotidiano do escritor, entre
imagens recentes e momentos-chave da história familiar, como as viagens ao
exterior empreendidas em 1962 ou os reparos no jardim da casa de Santos Lugares,
nas imediações de Buenos Aires, no final da mesma década. Enxada na mão, um
enérgico Sábato surge diante das câmaras, atarefado em cuidar da senhorial
residência, onde vive até hoje.
"O fio condutor sou eu, que narro o filme", diz Mario Sabato, que se distingue
do pai por ser cineasta e por não ter o sobrenome acentuado. "O mais importante
é que o documentário não pretende ser um documentário. Eu carecia de
objetividade, não tinha a distância necessária, mas decidi que essas duas
limitações seriam a vantagem desse material. Escolhi que a árvore ocultasse o
bosque."
O que se vê em "Ernesto Sábato, Mi Padre" é a essência de um homem austero, a
gênese de seus valores mais caros -"justiça, amizade, liberdade e compaixão"- e
a marca que uma educação extremamente severa imprimiu na personalidade do autor,
obcecado pela ordem e econômico nos afetos. "Por muitos anos, tive pesadelos com
meus pais", confessa o escritor no documentário, ao falar da infância. "Era tudo
muito sério. O que fazer?"
Em outro momento, ele admite: "O relacionamento que tenho com meus netos é muito
diferente do que tive com meus filhos." Mario Sabato sintetiza: "Meu pai
proporcionava as tempestades. Minha mãe, os amanheceres."
A responsável pelos amanheceres é Matilde, "moça heroica" que fugiu de casa aos
17 anos para viver com o escritor. O momento em que ele lembra quando a conheceu
é um dos pontos altos do filme, assim como o dia em que soube da morte do filho
Jorge, em 1995, ou a narração da vida da família sob a ditadura de 1976-83.
Pois a vida polítíca do país se mistura à vida privada de Ernesto Sábato, que
teve um importante trabalho na redemocratização argentina, como presidente da
comissão de investigação de crimes cometidos durante o regime militar. Elaborou
"Nunca Más", compêndio de provas e testemunhos que possibilitou o julgamento de
chefes militares e que foi entregue ao Estado argentino em 1984. O relatório é
conhecido no país como "Informe Sábato".
"Era o homem indicado [para elaborar o relatório], com objetividade,
imparcialidade e uma grande sensibilidade", afirma o ex-presidente Raúl Alfonsín
(1927-2009) no documentário. O trabalho da equipe coordenada pelo escritor foi
realizado em "dois andares do teatro San Martín, com entradas vigiadas até mesmo
quando já vivíamos em democracia", conta ele.
ENTRE ALGODÕES Às vésperas de completar cem anos, Ernesto Sábato mantém uma
rotina simples, pontuada pelo encontro com os parentes próximos -especialmente
os três bisnetos, de 11, nove e quatro anos-, ao lado de livros de pintura e sob
os cuidados de uma enfermeira.
"Limito-me a dizer o que é certo e suficiente: o mantemos isolado e protegido,
rodeado pelas coisas e pessoas de que gosta. Impedimos visitas que poderiam
perturbá-lo e até exercemos uma certa censura televisiva: os filmes substituem
os noticiários, porque sabemos que ele tem direito a descansar e a não se
angustiar mais por um mundo que não é aquele que sonhou", diz o filho. "Está
entre algodões, não deixamos que o incomodem."
A censura não é apenas televisiva. De "Ernesto Sábato, Mi Padre" o escritor viu
apenas os primeiros dez minutos. Para poupar o pai de emoções fortes, o
realizador interrompeu a projeção sob a alegação de que o aparelho de DVD havia
quebrado. "O mais importante é que termine sua vida em paz."
O recente aniversário foi celebrado como os três anteriores: apenas parentes e
amigos muito próximos, decisão tomada em 2006, quando o escritor, aos 95 anos,
achou por bem fechar a casa de Santos Lugares para as comemorações
multitudinárias que costumavam acontecer a cada 24 de junho (dia do seu
aniversário). A última delas está reproduzida no documentário.
O filme mostra o presente que o escritor recebeu da cantora Mercedes Sosa, morta
em 2009 aos 74 anos: ela cantou "Romance de la Muerte de Lavalle". A canção, com
letra de Sábato, integrava o repertório da artista de Tucumán. A celebração dos
98 anos também aparece no filme, ainda que em uma passagem bastante rápida. "Fiz
muito poucas imagens atuais. Respeito as vontades que meu pai sempre teve. É
vaidoso e não quer se mostrar. Não queremos alterar seu estado emocional."
MILAGRE Os bisnetos e a pintura continuam a ser duas das molas mestras que
acalentam a existência de Sábato, crescentemente ocupada por um sem-fim de
recordações, como deixa transparecer o documentário em cada fotograma. "Ter
ganhado um bisneto foi como um milagre para ele", diz o filho sobre o
ressurgimento emocional que viu no pai em 1998.
No documentário, Sábato apresenta, como um mestre de cerimônias, uma paixão
bissexta: a pintura. Conta como passou a se interessar pelas artes plásticas,
rememora casos divertidos e surpreendentes de sua amizade com artistas como o
cubano Wifredo Lam (1902-82) e mostra suas telas.
As pinceladas fortes, de marcada inspiração expressionista, revelam outra
obsessão do autor: o interesse pelo retrato e, a partir dele, o fascínio pela
representação dos olhos, não raro transfigurados em expressões de angústia e
pavor. "Sim, são bastante horríveis", diz o artista. "Não os colocaria na sala
de jantar, obviamente."
Se a comemoração dos 99 anos foi discreta no âmbito pessoal, em termos
literários o centenário de Ernesto Sábato não passará em branco. De publicação
recente, a edição crítica de "Sobre Heróis e Tumbas" apresenta, em suas 1.036
páginas, análises sobre a gênese do texto e a recepção na Argentina dos anos 60,
além de múltiplas leituras que oferecem diferentes perspectivas do livro.
No conjunto, os materiais iluminam as diversas camadas que compõem a narrativa a
partir de abordagens em que se cruzam disciplinas como a filosofia ou a
psicanálise. Publicado na prestigiosa coleção "Archivos", da Unesco, pela
editora argentina Alción, o trabalho reúne duas dezenas de estudiosos da obra do
autor e foi coordenado pela pesquisadora e escritora María Rosa Lojo, doutora em
filosofia e letras pela Universidade de Buenos Aires.
Da edição também fazem parte ensaios que contextualizam o escritor e sua
trajetória pública no panorama cultural e intelectual argentino, como o que
discorre sobre o posicionamento político do autor de "O Túnel" (trad. Sérgio
Molina, Companhia das Letras) ou o que estabelece vínculos entre sua obra e a de
Jorge Luis Borges (1899-1986).
Para Sábato, porém, já nada disso importa. "Gostaria de ser lembrado como um
vizinho por vezes rabugento, mas boa gente", diz singelamente no documentário do
filho. "Aí está um homem terno, divertido, inseguro, com menos certezas do que
parece ter", pondera o diretor. "Mais comum e mais profundo."
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