São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2010

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LITERATURA

Ernesto Sábato, 99

Justiça, amizade, liberdade e compaixão

RESUMO Aos 99 anos, o escritor argentino Ernesto Sábato, Prêmio Cervantes de 1984, é tema de documentário sobre sua vida familiar e afetiva, dirigido por seu filho Mario, e tem o seu romance "Sobre Heróis e Tumbas" (1961), central na literatura latino-americana, relançado em edição crítica publicado na coleção "Archivos".

DENISE MOTA

É DOMINGO, A FAMÍLIA está reunida na biblioteca -ponto de encontro doméstico tradicionalmente escolhido para jogar conversa fora-, mas ainda falta o integrante mais ilustre do clã: Ernesto. A inquietação cresce. Subitamente a porta do corredor se abre, e surge um homem idoso, que caminha maquinal, em passadas rígidas e sincopadas, até o outro lado da casa, sem olhar ao redor, sem emitir palavra.
Segundos depois, corre no encalço de Ernesto uma menina pequena, aos gritos de "Vem cá, robô!". Ali, Ernesto Sábato, 99, não era tanto o romancista de "Sobre Heróis e Tumbas" (trad. Rosa Freire d'Aguiar, Companhia das Letras), Prêmio Cervantes de 1984, mas, simples e definitivamente, um avô.
Como muitas outras histórias da vida íntima de Sábato, também ensaísta e físico, essa passagem de sua existência é contada por seu filho, Mario Sabato, diretor de "Ernesto Sábato, Mi Padre", documentário recentemente lançado na Argentina sobre seu maior escritor vivo. Como diz o diretor, "não é um filme para historiadores, estudantes de letras, acadêmicos", mas um retrato íntimo, urdido entre quatro paredes, do "homem por trás do bronze", como afirma Mario à Folha.
Aos 65 anos, diretor de cinema e televisão, Mario Sabato tem 15 filmes em seu currículo, alguns deles baseados na obra do pai, como de "El Poder de las Tinieblas" (1979), que tem como ponto de partida o "Informe sobre Cegos", ou "El Nacimiento de un Libro" (1963), curta-metragem que dirigiu aos 18 anos, sobre o processo de criação de "Sobre Heróis e Tumbas" (1961).

COTIDIANO O filme cobre quase meio século do cotidiano do escritor, entre imagens recentes e momentos-chave da história familiar, como as viagens ao exterior empreendidas em 1962 ou os reparos no jardim da casa de Santos Lugares, nas imediações de Buenos Aires, no final da mesma década. Enxada na mão, um enérgico Sábato surge diante das câmaras, atarefado em cuidar da senhorial residência, onde vive até hoje.
"O fio condutor sou eu, que narro o filme", diz Mario Sabato, que se distingue do pai por ser cineasta e por não ter o sobrenome acentuado. "O mais importante é que o documentário não pretende ser um documentário. Eu carecia de objetividade, não tinha a distância necessária, mas decidi que essas duas limitações seriam a vantagem desse material. Escolhi que a árvore ocultasse o bosque."
O que se vê em "Ernesto Sábato, Mi Padre" é a essência de um homem austero, a gênese de seus valores mais caros -"justiça, amizade, liberdade e compaixão"- e a marca que uma educação extremamente severa imprimiu na personalidade do autor, obcecado pela ordem e econômico nos afetos. "Por muitos anos, tive pesadelos com meus pais", confessa o escritor no documentário, ao falar da infância. "Era tudo muito sério. O que fazer?"
Em outro momento, ele admite: "O relacionamento que tenho com meus netos é muito diferente do que tive com meus filhos." Mario Sabato sintetiza: "Meu pai proporcionava as tempestades. Minha mãe, os amanheceres."
A responsável pelos amanheceres é Matilde, "moça heroica" que fugiu de casa aos 17 anos para viver com o escritor. O momento em que ele lembra quando a conheceu é um dos pontos altos do filme, assim como o dia em que soube da morte do filho Jorge, em 1995, ou a narração da vida da família sob a ditadura de 1976-83.
Pois a vida polítíca do país se mistura à vida privada de Ernesto Sábato, que teve um importante trabalho na redemocratização argentina, como presidente da comissão de investigação de crimes cometidos durante o regime militar. Elaborou "Nunca Más", compêndio de provas e testemunhos que possibilitou o julgamento de chefes militares e que foi entregue ao Estado argentino em 1984. O relatório é conhecido no país como "Informe Sábato".
"Era o homem indicado [para elaborar o relatório], com objetividade, imparcialidade e uma grande sensibilidade", afirma o ex-presidente Raúl Alfonsín (1927-2009) no documentário. O trabalho da equipe coordenada pelo escritor foi realizado em "dois andares do teatro San Martín, com entradas vigiadas até mesmo quando já vivíamos em democracia", conta ele.

ENTRE ALGODÕES Às vésperas de completar cem anos, Ernesto Sábato mantém uma rotina simples, pontuada pelo encontro com os parentes próximos -especialmente os três bisnetos, de 11, nove e quatro anos-, ao lado de livros de pintura e sob os cuidados de uma enfermeira.
"Limito-me a dizer o que é certo e suficiente: o mantemos isolado e protegido, rodeado pelas coisas e pessoas de que gosta. Impedimos visitas que poderiam perturbá-lo e até exercemos uma certa censura televisiva: os filmes substituem os noticiários, porque sabemos que ele tem direito a descansar e a não se angustiar mais por um mundo que não é aquele que sonhou", diz o filho. "Está entre algodões, não deixamos que o incomodem."
A censura não é apenas televisiva. De "Ernesto Sábato, Mi Padre" o escritor viu apenas os primeiros dez minutos. Para poupar o pai de emoções fortes, o realizador interrompeu a projeção sob a alegação de que o aparelho de DVD havia quebrado. "O mais importante é que termine sua vida em paz."
O recente aniversário foi celebrado como os três anteriores: apenas parentes e amigos muito próximos, decisão tomada em 2006, quando o escritor, aos 95 anos, achou por bem fechar a casa de Santos Lugares para as comemorações multitudinárias que costumavam acontecer a cada 24 de junho (dia do seu aniversário). A última delas está reproduzida no documentário.
O filme mostra o presente que o escritor recebeu da cantora Mercedes Sosa, morta em 2009 aos 74 anos: ela cantou "Romance de la Muerte de Lavalle". A canção, com letra de Sábato, integrava o repertório da artista de Tucumán. A celebração dos 98 anos também aparece no filme, ainda que em uma passagem bastante rápida. "Fiz muito poucas imagens atuais. Respeito as vontades que meu pai sempre teve. É vaidoso e não quer se mostrar. Não queremos alterar seu estado emocional."

MILAGRE Os bisnetos e a pintura continuam a ser duas das molas mestras que acalentam a existência de Sábato, crescentemente ocupada por um sem-fim de recordações, como deixa transparecer o documentário em cada fotograma. "Ter ganhado um bisneto foi como um milagre para ele", diz o filho sobre o ressurgimento emocional que viu no pai em 1998.
No documentário, Sábato apresenta, como um mestre de cerimônias, uma paixão bissexta: a pintura. Conta como passou a se interessar pelas artes plásticas, rememora casos divertidos e surpreendentes de sua amizade com artistas como o cubano Wifredo Lam (1902-82) e mostra suas telas.
As pinceladas fortes, de marcada inspiração expressionista, revelam outra obsessão do autor: o interesse pelo retrato e, a partir dele, o fascínio pela representação dos olhos, não raro transfigurados em expressões de angústia e pavor. "Sim, são bastante horríveis", diz o artista. "Não os colocaria na sala de jantar, obviamente."
Se a comemoração dos 99 anos foi discreta no âmbito pessoal, em termos literários o centenário de Ernesto Sábato não passará em branco. De publicação recente, a edição crítica de "Sobre Heróis e Tumbas" apresenta, em suas 1.036 páginas, análises sobre a gênese do texto e a recepção na Argentina dos anos 60, além de múltiplas leituras que oferecem diferentes perspectivas do livro.
No conjunto, os materiais iluminam as diversas camadas que compõem a narrativa a partir de abordagens em que se cruzam disciplinas como a filosofia ou a psicanálise. Publicado na prestigiosa coleção "Archivos", da Unesco, pela editora argentina Alción, o trabalho reúne duas dezenas de estudiosos da obra do autor e foi coordenado pela pesquisadora e escritora María Rosa Lojo, doutora em filosofia e letras pela Universidade de Buenos Aires.
Da edição também fazem parte ensaios que contextualizam o escritor e sua trajetória pública no panorama cultural e intelectual argentino, como o que discorre sobre o posicionamento político do autor de "O Túnel" (trad. Sérgio Molina, Companhia das Letras) ou o que estabelece vínculos entre sua obra e a de Jorge Luis Borges (1899-1986).
Para Sábato, porém, já nada disso importa. "Gostaria de ser lembrado como um vizinho por vezes rabugento, mas boa gente", diz singelamente no documentário do filho. "Aí está um homem terno, divertido, inseguro, com menos certezas do que parece ter", pondera o diretor. "Mais comum e mais profundo."


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