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IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO
O episódio das palmadas
SOBRE O TEXTO No Livro Primeiro das "Confissões", que escreveu entre 1765 e
1770, Rousseau narra sua descoberta do erotismo ao ser punido com palmadas aos
oito anos por uma mulher de 30. Comentadores viram no trecho um prenúncio das
teorias de Freud, do masoquismo -ou, como quis Jean Cocteau, do romantismo.
JEAN-JACQUES ROUSSEAU
tradução PAULO WERNECK
COMO MADEMOISELLE Lambercier tinha por nós a afeição de uma mãe, tinha também a
autoridade, e às vezes a levava ao ponto de, quando merecíamos, nos infligir a
punição de filhos. Por um bom tempo ela ficou só na ameaça, e a mim essa ameaça
de um castigo totalmente novo me parecia apavorante; mas, depois da execução,
achei-o menos terrível do que a própria espera: e o que há de mais estranho é
que aquele castigo me fez criar ainda mais afeição por aquela que me o impôs.
Era preciso mobilizar toda a verdade dessa afeição e toda a minha docilidade
natural para impedir-me de procurar de volta o mesmo tratamento fazendo por
merecê-lo; pois eu encontrei na dor, na própria vergonha, uma mistura de
sensualidade que me deixou pleno mais de desejo do que de temor de experimentá-
lo de novo, pela mesma mão.
É verdade que àquilo se misturava, sem dúvida, algum instinto precoce do sexo, e
por isso o mesmo castigo dado pelo irmão não pareceria de modo algum prazeroso.
Mas, com o humor que ele tinha, praticamente não era o caso de temer essa
substituição: e se eu me abstinha de merecer a correção, era unicamente pelo
medo de irritar Mademoiselle Lambercier; pois em mim a benevolência, até mesmo
aquela que os sentidos dão à luz, impera de tal maneira, que sempre deu a lei em
meu coração.
A reincidência, que eu afastava sem temer, chegou sem que houvesse falta de
minha parte, quer dizer, sem que fosse por minha própria vontade, e eu a
aproveitei, posso dizer, com a consciência tranquila.
Mas a segunda vez também foi a última; pois Mademoiselle Lambercier, tendo
percebido por algum sinal que aquele castigo não atingia seu objetivo, declarou
que renunciaria a ele, que o deixava muito cansada. Até então, dormíamos no
quarto dela e, durante o inverno, até mesmo em sua cama. Dois dias depois,
fizeram-nos dormir em quartos separados, e a partir de então eu tive a honra,
que dispensaria de bom grado, de ser tratado por ela como um rapaz.
Quem poderia crer que aquele castigo infantil, recebido aos oito anos, das mãos
de uma mulher de 30, decidiria meus gostos, meus desejos, minhas paixões, a mim
mesmo pelo resto de minha vida, e precisamente no sentido oposto ao que deveria
acontecer naturalmente? Ao mesmo tempo que meus sentidos foram acendidos, meu
desejos mudaram de tal maneira que, limitados ao que eu havia experimentado, não
trataram mais de procurar outra coisa.
Com o sangue fervendo de sensualidade quase desde o meu nascimento, conservei-me
puro de toda sujeira até a idade em que os temperamentos mais frios e mais
tardios se desenvolvem. Atormentado por muito tempo sem saber por quê, devorava
com olho ardente as pessoas bonitas; minha imaginação as trazia à lembrança sem
cessar, unicamente para dispô-las do meu jeito, e fazer de todas elas
Mesdemoiselles Lambercier.
Até mesmo depois da idade núbil esse gosto bizarro, sempre persistente e levado
até a depravação, até a loucura, conservou-me os costumes honestos que ele
supostamente me tiraria. Se alguma educação foi modesta e casta, essa foi
justamente a que eu recebi.
Minhas três tias não eram apenas pessoas de uma sabedoria exemplar, mas de um
recato que há muito tempo as mulheres já não conhecem. Meu pai, homem de
prazeres, mas galante à moda antiga, nunca proferiu, perto das mulheres que ele
mais amava, palavras que pudessem ruborizar uma virgem; e nunca levou-se tão
longe quanto em minha família e diante de mim o respeito que devemos às
crianças. Não encontrei menos atenção na casa de Monsieur Lambercier nesse
quesito; e uma ótima servente foi posta na rua por uma palavra um pouco mais
saliente que pronunciou diante de nós.
Não apenas eu não tive, até a minha adolescência, uma ideia clara da união dos
sexos, mas essa ideia confusa sempre se ofereceu a mim na forma de uma imagem
odiosa e asquerosa. Eu tinha pelas mulheres públicas um horror que nunca se
apagou: não podia ver um depravado sem desdém, sem terror, até; pois ia até aí a
minha aversão pela depravação, desde que um dia, indo ao pequeno Sacconex por
uma vala, avistei, dos dois lados, cavidades na terra, onde, disseram-me, aquela
gente fazia seus acasalamentos. Todos os acasalamentos de cadelas que vi
vinham-me à mente pensando aos demais, e o coração me levava a essa única
lembrança.
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