São Paulo, domingo, 03 de abril de 2011

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REPORTAGEM

Corrida maluca

Anarquia no trânsito moscovita

RESUMO
Com os maiores congestionamentos do planeta, cidadãos e autoridades de Moscou não encontram soluções para o caos do trânsito local, em muitos aspectos comparável ao de São Paulo. Táxis clandestinos, burocracia para emplacar automóveis e privilégios da elite fazem das ruas moscovitas um espelho da sociedade russa.


MARINA DARMAROS

"PREFIRO DIRIGIR em São Paulo. Me sinto muito mais segura." Quem escuta a declaração de Iulia Mikaelian, 25, pode ficar confuso quanto à origem da professora de idiomas que vive há seis meses no Brasil.
Já é um lugar-comum ouvir paulistanos que viajaram para o exterior dizer que o trânsito de Buenos Aires é muito melhor, que os motoristas londrinos são mais educados, que as ruas de Helsinque são bem mais limpas e que o asfalto e a organização alemães são um primor. Viria Iulia, então, de Cabul, Bagdá, Islamabad? Ela acaba de se mudar de Moscou, a capital do maior país do mundo, onde conheceu o marido brasileiro.
Os epítetos hiperbólicos tão russos se aplicam também ao trânsito moscovita: estudo de 2010 feito pela empresa de informática IBM que comparou dados de 20 metrópoles do mundo inteiro apontou as ruas locais como palco dos mais longos congestionamentos do mundo.
Não terá sido à toa que, num intervalo de pouco mais de dois meses, o recém-empossado prefeito Serguei Sobianin esboçou planos mirabolantes para desatar o nó do trânsito, segundo ele uma das prioridades de sua administração, ao lado do combate à corrupção. Os resultados em ambos os fronts ainda deixam a desejar.

TEMPO PERDIDO
Intitulada Global Commuter Pain Study, ou Estudo Global das Aflições do Viajante Casa-Trabalho, em tradução livre, a pesquisa da IBM revela que o moscovita sustenta o recorde mundial de tempo perdido em engarrafamentos: duas horas e meia diárias, em média. Essa parte do levantamento não inclui informações sobre São Paulo, cuja população regula com a de Moscou, 10 milhões de habitantes.
Segundo os principais meios de comunicação russos, na véspera do último Natal, a cidade beirou os 3.000 quilômetros de lentidão. Os dados, fornecidos pelo site yandex.ru, o principal monitor independente do país, não podem ser comparados com os da capital paulista, pois os sistemas de aferição são distintos.
"Mesmo se os 1.317 km de vias arteriais fossem inteiramente monitorados -o que não é o caso-, o congestionamento não poderia alcançar tais proporções", contesta o chefe do Instituto de Pesquisas Científicas do Transporte e de Vias, Mikhail Blinkin.
Enquanto São Paulo tem 17 mil km de vias -dos quais apenas cerca de 850 (5%) vigiados por câmeras ou agentes da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego)-, Moscou conta com uma malha de pouco mais de 4 mil km, segundo as respectivas prefeituras.
Se em São Paulo o caos no trânsito nasceu da falta de planejamento urbano, em Moscou o motivo pode ser o oposto: Moscou foi construída ao longo dos séculos dentro de fortalezas concêntricas, tendo o Kremlin como núcleo. Sob o governo de Stálin, a cidade ganhou largas avenidas se espraiando em todas as direções. Quando elas se encheram com os automóveis que vieram com o capitalismo, o sistema entrou em colapso.
Desde a queda da União Soviética, em 1991, o número de carros na capital russa quadruplicou. Os dados do GIBDD, órgão análogo à CET paulistana, mostram que a frota de veículos local já roça os quatro milhões (em São Paulo, segundo o Detran, já são 6,9 milhões). O número, que não inclui os carros emplacados em outras cidades, pode estar subestimado: a burocracia para registrar os veículos sugere que muitos mais circulem ilegalmente pelas ruas da cidade.

TÁXIS CIGANOS
Sasha Abdulaiev, 34, deixou Baku, a capital da ex-república soviética do Azerbaijão, há cerca de 15 anos para trabalhar como taxista em Moscou. "Uma vez, fiquei oito horas num congestionamento do Terceiro Anel [uma espécie de anel rodoviário que circunda Moscou]. Quando cheguei em casa, vi minha cara na TV", conta ele. Abdulaiev dirige um "pitiorka", modelo Lada dos anos 80 que é o mais barato do mercado russo.
Fora dos padrões ecológicos Euro-2, o automóvel que Sasha pilota é um "táxi cigano", ou seja, não faz parte da frota dos sete mil táxis moscovitas com alvará (em São Paulo, são mais de 32 mil táxis, diz a secretaria dos Transportes -não há estimativas sobre o número de "geladeiras", como são conhecidos os "táxis ciganos" daqui). A exemplo de milhares de cidadãos fora do mercado de trabalho legal, provenientes sobretudo da CEI (Comunidade dos Estados Independentes), é do "táxi cigano" que Sasha tira seu sustento. "Em Moscou, só tem alvará quem trabalha para companhias de táxi", diz o imigrante.
Foi a bordo de um "táxi cigano" que o curdo Hussam Daner, 30, deixou Moscou, onde pretendia fazer seu mestrado, apenas uma semana depois de chegar à cidade. No final de dezembro, Daner foi embarcado pelos amigos num "táxi cigano" às 17h30, para não perder seu voo para Irbil, capital do Curdistão (Iraque), marcado para as 22h. Do alojamento da Universidade da Amizade entre os Povos, no sul de Moscou, até o aeroporto Sheremetyevo, ao norte, ele levou três horas, tendo percorrido 50 quilômetros a uma velocidade média de 16,5 km/h (semelhante à registrada em São Paulo nos picos da tarde).

CORRUPÇÃO
Os planos de combate à corrupção e ao trânsito do prefeito Serguei Sobianin podem fracassar pelo simples fato de que os dois problemas se cruzam. "Aqui tudo se compra. Os funcionários são vendidos, a corrupção engoliu o país. Mesmo a análise técnica dos carros se pode comprar. Enquanto não se resolver o problema da corrupção, nada mudará", vaticina Serguei Kanaev, diretor da FAR (Federação dos Automobilistas da Rússia), organização sem fins lucrativos que se intitula defensora dos direitos dos motoristas.
Exemplo disso é a controvérsia envolvendo o "giroflex", sirene de emergência colocada sobre ambulâncias, alguns carros oficiais e veículos de magnatas. Os detentores do sinalizador têm uma faixa central exclusiva nas vias expressas e circulam por Moscou em alta velocidade, protagonizando diversos acidentes com mortes. "Não são apenas os funcionários da administração do presidente que usam o 'giroflex'. Apresentadores e executivos de TV, cineastas e diretores de banco também", explica Kanaev.
O problema do trânsito está ultrapassando o campo da política tradicional e já mobiliza a criatividade dos jovens artistas moscovitas. Em protesto contra a farra do "giroflex", em julho passado o coletivo de artistas engajados Voiná organizou uma performance pelas ruas da cidade: com baldes azuis na cabeça, eles se puseram a dançar em cima de carros do Serviço de Segurança Federal dotados do aparato, como se fossem "giroflex" humanos. "Foi um grande 'dane-se' do grupo para esse sistema corrompido, destruidor total da democracia e dos direitos humanos no país", empolga-se uma das idealizadoras, Natália Sokol.
Em qualquer dia da semana, é possível ver, na capital russa, milhares de carros estacionados sobre as calçadas, em fila dupla ou trancando as ruas. Por isso, no último verão, grupos de jovens resolveram colar, nos vidros de carros estacionados irregularmente, enormes adesivos redondos, em forma de placa de trânsito, com dizeres como "Não estou nem aí! Paro onde quiser!".

Estudo de 2010 da IBM, com dados de 20 metrópoles apontou as ruas moscovitas como palco dos mais longos congestionamentos

Em qualquer dia da semana, é possível ver, na capital russa, milhares de carros estacionados sobre as calçadas, em fila dupla ou trancando ruas


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