São Paulo, domingo, 03 de abril de 2011

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IMAGINAÇÃO

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Três verbetes de um dicionário

NOEMI JAFFE

DÁDIA - DEDO, dois, dar. Quando os homens ainda possuíam apenas dois dedos, no período ordoviciano, um deles servia para agarrar, prender e furar, enquanto o outro só tinha a função de apontar a caça e reunir os companheiros num grupo. Quando um membro do grupo feria um dos dedos e não podia exercer com perícia a prática da caça e do perfuramento dos ossos, usava os dois dedos para apontar as presas que porventura estivessem correndo em direções opostas. Foi de um desses dedos, por sinal, que nasceu o futuro polegar, o dedo opositor. Quando ocorria, entretanto, que do alto de uma árvore, o membro acidentado avistasse dois animais correndo simultaneamente na mesma direção, ele juntava os dois dedos, sinalizando então o número dois, que era o máximo que os homens conseguiam contar naquela época. Como sinal de agradecimento e reconhecimento ao doente que os ajudara, o grupo se reunia em torno dele, ao final da caça e lhe oferecia o melhor e maior pedaço da presa agarrada. O apontador, por sua vez, e sempre por polidez, recusava e o oferecia de volta ao grupo. É por esta razão que, na língua falada pelos ordovicianos, as palavras dedo, dois e dar são todas a mesma palavra: dádia. Mais tarde, assim como os dedos, esta palavra desmembrou-se e dividiu-se em várias outras, com acepções completamente diferentes.
ECO - ELEFANTE, tempo, memória. Quando todos ainda compreendiam a língua dos elefantes, o tempo ainda não havia sido dividido em passado, presente e futuro. Essa divisão foi resultado do tempo em que, lentamente, os seres não mais compreendiam o que os elefantes diziam. Naquela época, o tempo era uno e circular e os elefantes eram os inventores da língua completa, que, somente balbuciada, já era compreendida por todos, independentemente de algum aprendizado. Assim, quando um elefante se referia a um alimento, o local onde se poderia encontrá-lo e como fazer para adquiri-lo, todos os outros animais, os cisnes, os lagartos e os rinocerontes saíam em busca da comida e a encontravam exatamente no local designado. Ali sempre havia um elefante de guarida, que conduzia a repartição da comida e a distribuía igualitariamente entre todos. Depois da refeição, todos se sentavam em volta do gigante e escutavam suas histórias antigas, que naquele tempo eram exatamente atuais, porque a infância reaparecia assim que era contada. Dessa maneira, todos sabiam que os elefantes, o tempo e a memória eram a mesma coisa, chamada eco. Mais tarde, quando foi exterminada a língua dos elefantes, em favor de uma língua dividida e temporal, o eco transformou-se somente em repetição vazia de gritos errantes, e os elefantes ficaram conhecidos só por sua prodigiosa memória.
FAIM - FADO, flor, visão. Como se sabe, as flores possuem uma língua secreta, que combinaram, de forma também codificada, jamais revelar a qualquer animal, muito menos os da espécie humana. Nem mesmo os pássaros ou as abelhas conseguem decifrar ou compreender o que elas dizem. Sabe-se, entretanto, que elas dominam uma língua, pois os sinais por elas emitidos são claramente reconhecíveis, como as cores, as formas e algumas alterações súbitas, além de ruídos estranhos já relatados por diversos moradores das florestas e das campinas. Alguns habitantes privilegiados destas regiões souberam detectar, pela leitura lenta e aplicada dos sinais emitidos pelas flores, em algumas delas, códigos de boa fortuna e determinações infalíveis do fado das criaturas. Assim, por exemplo, se o pólen de uma margarida é derramado sobre uma plantação de algodão, nos primeiros dias da primavera, o algodão florescerá alvo, vicejante e terá uma resistência inigualável. Os moradores de melhor visão e escuta dizem que já discerniram, na língua secreta das flores, a palavra faim, a única até hoje decodificada, que, para todos eles, significa simultaneamente a sorte, ou fado, a própria flor e a visão afortunada que lhes permitiu reconhecer aqueles sinais.


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