São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2010

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DIÁRIO DE PARIS
O MAPA DA CULTURA

O 'enfant terrible' voltou

Houellebecq, lúcido e desesperado

SERGE KAGANSKI
tradução PAULO WERNECK

A CADA OUTONO, um estranho fenômeno se produz na França: a "rentrée littéraire", a nova temporada literária. De setembro a dezembro, mais de 700 romances, franceses ou estrangeiros, vão disputar a atenção dos leitores (cada vez menos numerosos). Desta vez, o acontecimento da "rentrée" é evidentemente o romance "La Carte et le Territoire" ("O Mapa e o Território", Ed. Flammarion), de Michel Houellebecq.
O "enfant terrible" da literatura francesa faz um balanço do mundo na era pós-industrial, da França transformada em terra de serviços turísticos, e desenha seu autorretrato através de dois personagens: um artista chamado Jed Martin... e um escritor chamado Michel Houellebecq!
Houellebecq morre selvagemente -no livro. Jed Martin ganha glória e fortuna, primeiro com uma série de fotos de mapas rodoviários da Michelin, depois com um conjunto de pinturas realistas sobre as profissões. Mas nem sua arte, nem o dinheiro, nem a celebridade, nem o amor de uma bela russa parecem comovê-lo.
Fiel a si mesmo, talvez ainda mais desencantado e resignado, Houellebecq dá uma visão utilitária e tecnicista do mundo, descabelando, através de seu herói indiferente e sem afetação, uma humanidade sem deus nem transcendência, reduzida às suas funções básicas (comer, dormir, transar, ganhar a vida e morrer), condenada ao envelhecimento e à morte.
"La Carte et le Territoire" é um romance poderoso, lúcido e desesperado. Uma maldade tranquila, sem pathos, por vezes ressaltada pelo humor à la Houellebecq, ou seja, engraçadíssimo e terrível.
A "rentrée littéraire" sempre traz uma questão: quem ganhará o prêmio Goncourt? Este ano, Houellebecq é o favorito, sobretudo após as surpreendentes derrotas de "As Partículas Elementares" (1998) e "A Possibilidade de uma Ilha" (2005). Se ganhar agora, podemos apostar que o escritor vai desdenhar: a distinção vem tarde demais.

ESTRELA PARADOXAL
Ele emenda um hit atrás do outro, faz enorme sucesso com sua música, que flerta aqui e ali com o experimental, e com sua atitude, mais a de um punk ou de um palhaço surrealista que a de um ícone das paradas: Philippe Katerine é a estrela mais paradoxal da canção francesa. Do tipo que posa numa revista ("Les Inrocks"), nu e maquiado como uma diva, usando apenas colares de pérolas e um cinto de bananas, feito Josephine Baker.
Em seu novo disco, ele põe seus pais para cantar, cita Marcel Duchamp ou Agnès Varda, sonha "chupar Johnny" (velho ícone do rock francês) e faz a seguinte declaração de amor à namorada, a atriz Jeanne Balibar: "Amo a sua bunda, o seu fígado, o seu estômago, os seus intestinos, a sua bexiga e o seu útero", tudo sobre um "groove funky lo-fi".
O disco traz também os hits de costume, como "La Banane", que pôs os franceses para cantar e dançar durante o verão inteiro. Na mistura ingênua de verve melódica, textos transgressivos, humor regressivo, surrealismo e patafísica, Katerine sopra um vento de suave loucura na canção francesa e num país que anda precisando dela.

BOA NOTÍCIA
Três meses depois do grande prêmio do júri em Cannes, "Des Hommes et des Dieux" ("Homens e Deuses") estreou na França, com sucesso impressionante (com 900 mil espectadores em duas semanas, o filme certamente vai somar entre 1,5 milhão e 2 milhões de espectadores).
Inspirado num fato real (o assassinato de monges franceses nas montanhas argelinas, crime que até hoje não se sabe se foi cometido por rebeldes islâmicos ou pelo exército local), o filme de Xavier Beauvois narra as últimas semanas dos monges, sua imersão num vilarejo argelino, o diálogo tranquilo entre cristianismo e islã, a escolha metafísica dos religiosos: manterem-se solidários à população do vilarejo, correndo o risco de morrer assassinados, ou ir para um local protegido.
Partindo de um tema árido, uma direção depurada, influenciada por John Ford ou Roberto Rossellini, com ausência total de efeitos espetaculares ou digitais, zero concessão artística, "Des Hommes et des Dieux" faz um sucesso digno de um "blockbuster". Esse paradoxo é uma boa notícia para o cinema.


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