São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2011

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IMAGINAÇÃO

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Baudelaire em Buenos Aires

DAMIÁN TABAROVSKY
tradução ALEXANDRE BARBOSA DE SOUZA
ilustração RAFAEL CAMPOS ROCHA


NO DIA 19 de dezembro de 2001, estavam tirando um cisto do meu braço. Lá fora começava a revolução, mas eu estava todo dolorido, doente, com febre e um pouco drogado em uma clínica particular no Barrio Norte. Na verdade, era um cisto sebáceo que eu tinha desde a adolescência, que havia infeccionado em Paris, seguramente por causa do frio. Eu tinha ido a Paris para aproveitar os últimos momentos da convertibilidade (um peso = um dólar). Viajar era muito barato, ganhávamos em dólar.
Poucos dias depois já não havia dólares, nem pesos, nem moeda, nem nada. Ou quase nada.
Saí da clínica aturdido: batiam panelas, a classe média indignada prestes a perder a poupança. Meu amigo Alejandro escreveu uma coluna no "Página/12" onde dizia que nunca havia ocorrido uma revolução por causa de poupanças. Não sei se era a revolução, mas em todo caso, eu olhava para ela na televisão: os antibióticos estavam destruindo meu estômago.
Estava confuso, cansado, tinha voado 11 horas de avião (Paris fica longe, longe demais) e naquele mesmo dia, na clínica, a febre havia começado a subir.
A Mirta passou em casa com uma panela, saímos para o jardim (havia um jardim no térreo do prédio, onde os vizinhos jogavam coisas) e pela janela se ouviam os gritos, os aplausos, mais gritos, panelaços. A televisão mostrava as pessoas na Plaza de Mayo pedindo "Fora com todos eles!". No primeiro plano estava Hernán, o desenhista da revista que eu dirigia, atirando pedras no Congresso. Alejandro me telefonou e disse que não apoiaria porque "isso não é Maio de 68, não é uma festa, é um tragédia". Houve mortos, sim, sempre há mortes na vida argentina.
Eu havia acabado de me recuperar quando tudo explodiu. Os desempregados se organizavam e fechavam passagens e ruas. Simpatizei com eles. O presidente De la Rúa já tinha ido embora de helicóptero (uma das minhas primeiras lembranças de infância é a foto na revista "Gente" de Isabel Perón sendo levada de helicóptero, em março de 76, pelo golpe militar). Depois veio um presidente e depois outro e mais outro, em uma única semana. Saímos no livro "Guinness" dos recordes.
Saímos? Bem, de todo modo eu saí. Saí na rua uma semana depois e era uma outra cidade. Ou era a mesma. Jamais saberei. A mesma classe média que havia apoiado a conversibilidade, que havia tirado proveito dela, essa mesma classe média que antes havia apoiado a ditadura, agora saía às ruas para... para continuar pedindo a mesma coisa: queriam suas poupanças. E queriam que fosse um para um: mas o dólar já estava valendo quatro pesos (se tivessem devolvido o dinheiro, o que eles teriam feito? Passar as férias de janeiro no Brasil como sempre? Alugar uma casinha em Florianópolis? O que teriam feito aqueles garotos de 20 anos que saíam para protestar vestidos de surfistas? E essas senhoras que mandam os filhos para escola particular e pedem mais policiamento na cidade?).
Aquilo não era um show de rock cancelado em que se devolvia o dinheiro das entradas. Aqui ninguém devolve nada. Os bancos não devolviam o dinheiro das poupanças (já tinham feito esse dinheiro girar em suas centrais na Suíça ou nas ilhas Cayman) e as pessoas iam com martelos bater na porta das agências (puseram portas de metal sobre as portas de verdade). Vi um grafite que dizia "A Argentina tem uma única saída: o aeroporto".
Juan compôs um concerto de música eletroacústica baseado no som dos tiros na praça. Foi um sucesso. Adrián fez seu primeiro filme sem atores de verdade, nas ruas. Foi um sucesso. Um jornalista francês veio escrever uma nota sobre a surpreendente vitalidade cultural de Buenos Aires. Com a desvalorização do peso já não se encontrava quase nenhum produto importado. E os meus cigarros Gitanes com filtro? E o meu uísque J&B? Não, não se faz nenhuma revolução em nome das poupanças.
Mas aquela não era uma revolução, mas o longo, o longuíssimo começo de uma formidável etapa de normalização, de controle social, de intervenção sobre os corpos, que continua ainda hoje. O Instituto Goethe organizou uma mostra que se chamava "Ex Argentina". Um jornalista da TV e narcotraficante (hoje convertido em um bem-sucedido empresário neo-oficialista) propunha que não houvesse mais governo, e que o FMI fosse o governo.
A desvalorização, ao que parece, favoreceu a reativação da economia. Ou, em todo caso, mais grana começou a circular. Especialmente entre aqueles que tinham dólar. Os milionários traziam dólares de suas contas na Suíça: quando roubaram a grana, o dólar valia um peso, mas agora valia quatro. Um negócio muito bom. A economia voltava a caminhar. Maxi criou um suplemento cultural e foi um sucesso. Eu publiquei "Literatura de Izquierda" e foi um sucesso. Um jornalista belga veio escrever uma nota sobre a surpreendente vitalidade cultural de Buenos Aires. Naquela época, em cada duas pessoas, uma era pobre, e a cada três, uma era indigente. Os pobres roubavam papelão das lixeiras e revendiam, passaram a ser chamados de "cartoneros" (os poetas não deixaram de escrever sobre eles: era como se Baudelaire estivesse em Buenos Aires).
Alguns advogados também tinham dólares. Queriam parecer cultos e criaram uma editora independente. Essa foi a década do boom das editoras independentes. Os advogados me contrataram e acabei trabalhando como editor (mas nunca publiquei nenhum romance meu nessa editora). Um dia eles se aborreceram, e, subitamente, nos mandaram embora e fecharam a editora. Ficaram alguns contratos de autores por cumprir.
Esses contratos serão afinal cumpridos? Antes, com 23% dos votos, Néstor Kirchner havia vencido uma eleição presidencial com o slogan "Por um país a sério". A primeira coisa que ele fez foi censurar os programas de humor da televisão. Vários romances meus foram traduzidos para o francês, o alemão, o russo e o grego. Da Grécia sempre me pedem que escreva matérias comparando a crise argentina com a grega (na Argentina, Nutella é mais cara do que na Europa, e além do mais Messi é argentino).
Nunca se fez nenhuma revolução por causa de poupanças. Na área de sociologia da Universidade de Buenos Aires, 57 alunos estão fazendo doutorado sobre a crise de 2001. Tudo isso aconteceu há dez anos, isto é, há mais de 38 mortes. Apareceu um cisto no meu outro braço, mas ainda não fui ver. O jornal espanhol "El País" publicou um artigo que perguntava quanto falta para a próxima crise argentina. Um jornalista brasileiro veio escrever uma matéria sobre a surpreendente vitalidade cultural de Buenos Aires.


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