São Paulo, domingo, 05 de junho de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

ARQUITETURA

Arqueologia modernista

A reabilitação de Warchavchik e Artacho Jurado

RESUMO
Expoente do modernismo arquitetônico, Gregori Warchavchik fez carreira à margem das obras públicas que marcaram o país sob o Estado Novo. Assim como o autodidata Artacho Jurado, vinculou-se ao mercado imobiliário, amargando o desprestígio entre pares e especialistas. Livros recuperam o legado de ambos.

RAUL JUSTE LORES

"Sua arquitetura gritava ante os bangalôs, chacrinhas neocoloniais, pudins, marmeladas e xaropes que andam por aí, com sua ignorância beata e beócia."
Mário de Andrade, "Exposição duma casa modernista (considerações)", "Diário Nacional", 05/04/1930

EM 1936, A PINTORA Tarsila do Amaral recordava, em entrevista ao "Diário de S. Paulo", o impacto da primeira casa moderna do Brasil, desenhada por Gregori Warchavchik em 1927. "Romarias de automóveis iam para a rua Santa Cruz, paravam, desciam, postavam-se diante do portão central, comentavam o absurdo de uma casa sem telhado, o absurdo de umas janelas inteiramente de vidro... Que loucura!"
O portfólio de Warchavchik (1896-1972) é extenso e variado. De casa de sapê no Guarujá a sedes sociais dos clubes Paulistano, Pinheiros e Hebraica. De vilas operárias na Mooca e no bairro carioca da Gamboa a edifícios residenciais icônicos do centro de São Paulo, como o Moreira Salles (1951), na av. São Luís, e o Cícero Prado (1954), na Rio Branco.
Ao se casar com Mina Klabin, foi adotado pelo círculo modernista de Oswald e Mário de Andrade. Seus clientes eram uma espécie do quem-é-quem da elite paulistana: Matarazzo, Klabin, Crespi, Silva Prado, Prado Jr., Jafet, Lafer.
Ímã de talentos, dividiu escritório com Lucio Costa no Rio, onde teve Oscar Niemeyer e Affonso Reidy como estagiários, e convidou João Vilanova Artigas para ser coautor dos dois únicos projetos para concursos de obras públicas de que participou. Esses nomes representam o "big bang" das escolas carioca e paulista, que colocaram o Brasil na vanguarda da arquitetura mundial.

ARQUITETO MENOR Mas, na história oficial, Warchavchik virou um arquiteto menor. Para muitos, dentro e fora da academia, sua importância se resume às casas modernistas da Vila Mariana e do Pacaembu. A arquitetura de grandes obras públicas, liderada por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, teve um efeito quase excludente para uma figura como ele. O último ensaio sobre Warchavchik foi publicado em 1965.
Em 2006, veio o início de uma lenta redescoberta, com a reunião de seus escritos em "Arquitetura do Século 20" [org. Carlos Ferreira Martins, Cosac Naify, 200 págs., R$37]. Seu neto, Carlos Warchavchik, recuperou e mora na casa da rua Itápolis, que o arquiteto ergueu em 1930; e está restaurando o edifício Mina Klabin, na alameda Barão de Limeira, o primeiro prédio do autor.
O pernambucano José Lira, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, acaba de lançar "Warchavchik - Fraturas da Vanguarda" [Cosac Naify, 552 págs., R$ 89], que investiga a carreira do judeu nascido em Odessa, na Ucrânia, que estudou na Itália com Marcelo Piacentini, o arquiteto de Mussolini, e se tornou um nome fundamental de um dos períodos mais fertilmente desvairados da arte brasileira.
O livro também levanta questões atuais sobre a distância e a incompreensão mútuas entre os mundos da arquitetura e da construção no Brasil, entre prestígio acadêmico e mercado imobiliário, que Warchavchik tentou conciliar nos altos e baixos de sua carreira, além da militância de um intelectual público numa época em que a arquitetura fazia barulho e se esforçava muito mais em se comunicar com a sociedade do que hoje.

CATALISADOR Com apenas cinco anos de Brasil, ele virou um catalisador da nova arquitetura nacional. O arquiteto desembarcou aqui em 1923, um ano depois da Semana de Arte Moderna e no mesmo ano em que chegava à cidade Lasar Segall, que viria a ser seu concunhado. O pintor lituano se casou com Jenny Klabin em 1925; amigo de Segall, Warchavchik conheceu a irmã de Jenny, Mina, no ano seguinte e casou-se com ela em janeiro de 1927, o mesmo ano em que se naturalizou brasileiro.
Agitador, publicou, a partir de 1925, manifestos na imprensa paulista e carioca a favor das tendências modernas vindas da escola Bauhaus e dos escritos do francês Le Corbusier. Lira observa que Warchavchik não chegou "pronto" ao Brasil, mas se formou e informou num novo continente, cercado por uma elite informada e novidadeira.
O jovem arquiteto, que trabalhava na Companhia Construtora de Santos, uma das maiores do país, se indignava com a macaqueação local do classicismo parisiense, "que o neoclassicismo redundara em trabalhos inexpressivos, frios, sem transcendência, sem razão de ser".
Entre 24 de março e 20 de abril de 1930, Warchavchik materializou sua militância doméstica com a "Exposição de uma Casa Modernista". Em terreno da família de Mina, na rua Itápolis (Pacaembu), o artista faz uma casa de três dormitórios e duas salas. Funcional, pura e despojada, durante um mês ela foi uma espécie de show-room modernista, que encerrava "o ciclo de combate à velharia, iniciado por um grupo audacioso em fevereiro de 1922", como descreveu Oswald.
Em vez do público reduzido e grã-fino que foi ao Teatro Municipal em 22, segundo os jornais da época, 20 mil pessoas visitaram a casa, decorada com esculturas de Brecheret e obras de Di Cavalcanti, Cícero Dias, Lasar Segall, Anita Malfatti e Tarsila.
O arquiteto se encarregou pessoalmente de mobília, esquadrias e luminárias, e até montou uma marcenaria no fundo da casa, com um mestre moveleiro alemão, onde eram produzidos todos os móveis.
No Rio, sua primeira obra teve abertura semelhante à da rua Itápolis. A casa do importador judeu alemão William Nordschild na rua Tonelero, em Copacabana, foi visitada até por Frank Lloyd Wright, já então o maior arquiteto americano (décadas depois, ele faria o museu Guggenheim em Nova York).
O carioca "Diário de Notícias" o definiu como um "colosso louro, de ombros largos, cara larga iluminada por dois olhos vivíssimos. Um sorriso permanente, como se a vida e os seus interlocutores fossem criaturas agradabilíssimas. Em São Paulo, toda a gente já aprendeu a pronunciar o seu nome. É que ele é o arquiteto que soube realizar na Pauliceia caprichosa essas casas que a gente moderna deseja".

EXTREMISMOS Nem sempre, no entanto, Warchavchik estava na hora e no lugar certos. As questões de linguagem do modernismo pré-Vargas deram espaço a projetos ideológicos de identidade nacional, de um novo Brasil e de extremismos de direita e de esquerda.
Os antigos salões aristocráticos antropofágicos de São Paulo, de limitado alcance, sobretudo depois da crise de 1929, cedem espaço à indústria cultural patrocinada pela ditadura Vargas.
Poucos projetos de vulto lhe foram encomendados nos anos 30, época em que São Paulo adotou a monumentalidade neoclássica típica dos fascismos europeus, da sede das indústrias Matarazzo, no vale do Anhangabaú, aos portais do túnel Nove de Julho e ao estádio do Pacaembu. Warchavchik sofreu antissemitismo e xenofobia declarados por parte de colegas às vésperas da Segunda Guerra e viu as encomendas escassearem.
Enquanto isso, no Rio, a obra pública já tinha abraçado o modernismo, erguendo o aeroporto Santos Dumont (1937-44) e a sede da Associação Brasileira de Imprensa (1936-39). Belo Horizonte preparava a Pampulha de Niemeyer (1941-44).
O Ministério da Educação (1937-45), prédio de 14 andares criado por uma equipe que reunia Oscar Niemeyer, Lucio Costa e Burle Marx, entre outros, sob consultoria de Le Corbusier, transformava qualquer casa modernista em São Paulo em singela miniatura. Obras de vulto multiplicaram as possibilidades da escola carioca.
Warchavchik participou de dois concursos públicos em São Paulo, com o então recém-formado João Vilanova Artigas, para a reforma da praça da República (foi desclassificado) e para a construção da nova prefeitura (o projeto jamais foi construído, mais ou menos como ainda acontece na São Paulo de hoje, com projetos vencedores sendo engavetados).
Some-se esse ocaso das vanguardas paulistanas à condição familiar do arquiteto. A família da mulher era liderada pela matriarca Berta e pelas três filhas, Mina, Jenny e Luisa. Elas herdaram terrenos por toda a cidade, mas pertenciam a um ramo dos Klabin que perdeu espaço nos dividendos fabris da indústria de papel por não ter um sucessor do sexo masculino. Jenny e Luisa eram casadas com um pintor (Segall) e um médico.
As Klabin esperavam que Gregori usasse seus conhecimentos de arquiteto e de construtor para aumentar a rentabilidade dos terrenos. Os ímpetos e a militância do jovem vanguardista competiam com as obrigações de jovem pai de família; o vigor inventivo foi parcialmente substituído pela necessidade comercial.
Warchavchik começou a testar novas opções para o mercado imobiliário numa São Paulo que se verticalizava e se espraiava no Guarujá. O arquiteto participou da verticalização da avenida São Luís com uma torre de 19 andares, incorporação do banqueiro e diplomata Walter Moreira Salles. No seu maior edifício, o Cícero Prado, na avenida Rio Branco, usou balcões de concreto armado, com peitoris ornamentados e jardineiras suspensas, dialogando com o maior sucesso imobiliário da época, o autodidata João Artacho Jurado (1907-83).

TABU No livro, ao fazer a comparação, José Lira chama Artacho de "importante nome da arquitetura moderna de São Paulo", uma quebra de tabu que vai muito além do resgate de Warchavchik.
João Artacho Jurado foi o construtor, imobiliário e arquiteto de edifícios residenciais emblemáticos de São Paulo e de Santos. O Bretagne, na avenida Higienópolis, o Parque das Hortênsias, na Angélica, ou o Cinderela, na rua Maranhão, saíram de sua delirante (e kitsch) prancheta.
Filho de imigrantes espanhóis (o pai dirigia bonde puxado a burro), Artacho só estudou até os dez anos de idade. Começou como letrista de publicidade, fazendo neons e letreiros no Rio de Janeiro. Ao voltar para São Paulo, no final dos anos 20, desenhou e construiu pavilhões para exposições industriais no parque da Água Branca. Também construiu casas na Pompeia e um bairro inteiro, a Cidade das Monções, no então periférico Brooklin.
Só em meados dos anos 40 começou a fazer prédios e a firmar um estilo próprio. Na virada dos anos 50, torna-se um sucesso imobiliário ""vendia todas as unidades em uma semana. Fez de quitinetes nos edifícios Viadutos e Planalto, em frente à Câmara Municipal, a espaçosos apartamentos em Higienópolis. Desenhava a planta ao gosto do freguês, o que explica algumas salas pequenas, na era pré-televisão, e cozinhas enormes, além de generosas áreas de serviço.
Seus prédios viraram uma espécie de clube social para a classe média emergente de então ""quando clubes eram exclusividade da elite. Foram os primeiros na cidade com piscina, salão de festas, playground, jardins e até bares internos, bisavós dos atuais "lounges" e "espaços gourmet".

ESTÉTICA Mas foi na estética que Artacho causou mais comoção ""sucesso mercadológico que provocou náuseas entre os demais arquitetos. Sua antropofagia não canibalizava apenas as vanguardas da elite europeia, mas também o cinema, o pop e a cultura americana. Ao lado de pérgulas e coberturas onduladas que citam Niemeyer, Artacho usava pastilhas coloridas ""roxas, azuis, cor de rosa, amarelas"" que pareciam saídas do cenário technicolor de "O Homem que Sabia Demais", de Alfred Hitchcock.
Exilados pelos modernistas, que privilegiavam o concreto bruto, os adornos voltaram com força em suas obras, o que faz de Artacho talvez um dos primeiros pós-modernos no Brasil. Grandes varandas desenhadas, salões de festas que lembram amebas gigantes ou até paredes decoradas com ventosas e flores-de-lis, sem a menor função além da decorativa. Mais para o Cassino Quitandinha, em Petrópolis, do que para a austeridade corbuseriana.
Pelo kitsch, pela influência americana ou por ser 100% "business", Artacho não era considerado "arquiteto" por seus pares até muito recentemente. Sem diploma, nem pôde assinar os projetos que criou.
Ainda ignorado na academia, hoje Artacho virou pop em outras áreas. Moda, publicidade e cinema adotaram os cenários do arquiteto como referência colorista da São Paulo cinzenta. Um solitário livro se debruça em sua obra, "Artacho Jurado - Arquitetura Proibida" [editora Senac, 336 págs., R$ 98], do arquiteto santista Ruy Debs Franco.
O arquiteto Isay Weinfeld diz que adora o "humor" e a "fantasia" dos prédios de Artacho. "Ele misturou materiais sem preconceito e sem medo de ser feliz. Estava mais interessado em tocar as pessoas do que em entrar para a história da arquitetura", diz. "Para alguns, só Bergman é sério. Artacho é para quem, além de Bergman, acha sério Pedro Almodóvar", compara.

REAVALIAÇÃO Segundo José Lira, Artacho ainda enfrenta resistências, mas precisa ser reavaliado ""exatamente como fez com Warchavchik. Hoje, parte das críticas ao trabalho do ucraniano naturalizado brasileiro cheiram a Guerra Fria. Suas casas modernistas foram atacadas por não representar a habitação popular, feita em série, democrática, que o modernismo preconizava. O modernismo era um experimento ainda cheio de defeitos.
Aos puristas, o professor Lira responde que não existe arquitetura sem concessões. "Tem o usuário, o cliente, o público, as leis, o orçamento, há mil limites no fazer arquitetônico. É obra coletiva", diz.
Os nacionalistas o acusavam de importar ideias estrangeiras e de não abrasileirar as suas formas ""ainda que toda a arquitetura brasileira, da neocolonial de Lucio Costa até os anos 30 ao modernismo de Le Corbusier, tenha vindo do outro lado do Atlântico.
"Há várias linhagens no modernismo, como a de Le Corbusier, a de Mies van der Rohe, a de Alvar Aalto, outra na Europa Central que teve particular influência sobre Warchavchik", diz o crítico André Correa do Lago, membro do Conselho de Arquitetura do MoMa (Museu de Arte Moderna de Nova York). "No Brasil, parece que só uma, a corbusieriana, é a legítima."
Para o professor Lira, "assim como o mercado construiu o centro e Higienópolis, fez Alphaville e a Berrini. Não dá para dizer que é tudo igual, que não tem diferenças", prossegue. "Quem fez Higienópolis e o centro foram os arquitetos, como Warchavchik e dezenas de anônimos, que buscavam respostas contemporâneas às limitações impostas. Precisamos reestudar o diálogo entre mercado e arquitetura."
O livro de José Lira fala de um mercado imobiliário onde ainda havia espaço para arquitetos que experimentavam novas linguagens para as massas ""ao contrário da atual linha de montagem que produz neoclássicos e contemporâneos em série.
"A distância entre consagrados pela academia e pelo mercado nunca foi tão radical como hoje", diz Lira. "Mas o prestígio de quem trabalha para o Estado, em grandes obras públicas, sempre foi muito superior do que quem constrói residências ou prédios de escritórios."

BIOGRAFIAS Para Fernanda Barbara, arquiteta do escritório Una e professora da Escola da Cidade, o livro sobre Warchavchik é bem-vindo. "A obra dele tem grande mérito, mas não como a de Artigas ou Rino Levi. Ele foi um grande divulgador do modernismo. O problema é que só recentemente começamos a publicar biografias decentes de arquitetos no Brasil. Espero que muitos outros, como Heep, Palanti, Reif e Korngold, também tenham livros editados".
O impacto da arquitetura é outro. A agitação dos modernistas ""e mesmo do Estado Novo"" tinha os arquitetos como catalisadores e porta-vozes do tal combate às velharias. Warchavchik, entre outros em São Paulo, assim como Lucio Costa e Niemeyer, no Rio, lideraram um momento de transformações que ansiava criar uma nova cara para o Brasil.
Os arquitetos no Brasil de hoje decididamente têm uma influência mais modesta. A sede do Instituto dos Arquitetos do Brasil, em São Paulo, obra de um grupo liderado por Rino Levi, vive uma decrepitude silenciosa há anos. A Bienal de Arquitetura foi cancelada de maneira abrupta, sem maiores consequências.
Em seus bangalôs, pudins, marmeladas e neoclássicos, a elite paulistana pouco fala de arquitetura.

O livro também levanta questões atuais sobre a distância e a incompreensão mútuas entre os mundos da arquitetura e da construção no Brasil, entre prestígio acadêmico e mercado imobiliário


Texto Anterior: Literatura: Telescópio satírico
Próximo Texto: Perfil: Comigo, não!
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.