São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2010

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ECONOMIA

Sustentabilidade equivocada

Gerações futuras e o discurso de hoje

RESUMO
O debate sobre sustentabilidade e desenvolvimento econômico é foco de livros recentes que ora buscam reorientações conceituais dentro do atual quadro político, ora propõem um abandono da atual concepção de progresso em favor de ideias que se conciliem com os dilemas éticos e ecológicos do século 21.

JOSÉ ELI DA VEIGA

SCHOPENHAUER DIZIA que toda verdade passa por três estados: primeiro é ridicularizada; depois, violentamente combatida; e por fim aceita como evidente. Com a sustentabilidade um ciclo bem semelhante se completou em menos de três decênios.
Até os anos 1980, o adjetivo "sustentável" era jargão de engenheiros agrônomos, florestais ou de pesca, para evocar a possibilidade de um ecossistema permanecer robusto e estável (resiliente), apesar de agredido por alguma exploração humana. O exemplo mais óbvio é o da pesca que não compromete a reprodução dos cardumes. Por extensão, alguns raros economistas se serviam do termo para exprimir a ideia de estabilidade da taxa de aumento do PIB, em oposição a crescimento econômico oscilante ou volátil.
Hoje, devido a uma evolução que ainda vai demandar tempo para ser entendida, a palavra sustentabilidade passou a ter amplíssimo uso para exprimir ambições de continuidade, durabilidade ou perenidade, todas remetendo ao futuro da espécie humana. Está em curso a legitimação de um novo valor, cujo sentido essencial é de responsabilidade pelas condições de vida das futuras gerações.
Esse processo, que agora faz tanta gente se sentir responsável pelo amanhã, só começou 30 anos depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (promulgada em 1948). E bastaram outros 30 anos para que o termo sustentabilidade invadisse o vocabulário coloquial. Mas isso não quer dizer que também tenha sido célere a evolução cognitiva sobre o que mais contribui para a insustentabilidade global.
Não houve mudança significativa no entendimento dos determinantes do progresso, da prosperidade ou do desenvolvimento. Continuam a ser vistos como resultado direto, proporcional, linear e unívoco do desempenho econômico, medido pelo crescimento do produto bruto.
Essa inércia é tão forte que estragou até a recente incursão no tema feita pelo sociólogo britânico Anthony Giddens, "A Política da Mudança Climática" [trad. Vera Ribeiro, Zahar, 320 págs., R$ 49]. Afirma que o crescimento econômico nunca cessará, sem nem sequer mencionar o imenso acúmulo teórico e empírico sobre a tese oposta. Desde contribuições do genial economista romeno Georgescu-Roegen (1906-94) até o relatório "Prosperidade sem Crescimento", lançado em abril de 2009 pela Comissão de Desenvolvimento Sustentável do Reino Unido. E passando, é claro, por tudo o que foi publicado nos últimos 22 anos nas páginas do periódico científico "Ecological Economics".
Esse tipo de omissão é imperdoável. E a mesma atitude se repete em sua noção de desenvolvimento, como se não existissem pontos de vista opostos. Por exemplo, o do Prêmio Nobel de Economia Amartya Sen no livro "Desenvolvimento como Liberdade" (Companhia das Letras).
Muitos já devem ter esquecido que Giddens, em parceria com seu colega alemão Ulrich Beck, atacou o pós-modernismo com a ideia de modernização reflexiva -tese igualmente extravagante, de que a modernização teria entrado numa fase em que a "lógica" da produção de riscos dominaria a "lógica" da produção de riqueza. Etapa em que o acúmulo de poder do "progresso" tecnológico-econômico seria cada vez mais ofuscado pela produção de riscos, da qual não haveria exemplo mais emblemático do que a geração de eletricidade por usinas nucleares, como teria mostrado o desastre nuclear de Tchernobil, em 1986. As aspas são do próprio Ulrich Beck em "Sociedade de Risco - Rumo a uma Outra Modernidade" [trad. Sebastião Nascimento, ed. 34, 368 págs., R$ 49].
O problema é que a dupla Giddens-Beck mistura risco e incerteza, como se essa distinção não tivesse sido claramente estabelecida há quase 90 anos por Frank Knight em "Risk, Uncertainty and Profit" [Risco, Incerteza e Lucro, 1921]. Já faz tempo que qualquer manual de introdução à economia ensina que não se deve falar em risco quando as probabilidades de ocorrência forem desconhecidas.
Essa é a diferença essencial entre as duas noções. E é justamente na questão da mudança climática, o recente interesse de Giddens, que a ideia de incerteza mais importa, justamente por ser impossível estabelecer as probabilidades de que inúmeras variáveis ocorram.
Pior: é com base nesse equívoco que Giddens supõe ter refutado o polêmico "princípio da precaução", que sempre se referiu a incertezas, jamais a riscos. Quem faz crítica pertinente a tal princípio é Jean-Pierre Dupuy em "Pour un Catastrophisme Éclairé - Quand l'Impossible est Certain" [Por um Catastrofismo Esclarecido, 2002]. A partir de seus estudos sobre o processo de dissuasão nuclear, insiste que o comportamento dos agentes com poder de decisão só se altera se acreditam no pior, se veem a catástrofe como inelutável. Assim, o simples anúncio do futuro pode alterá-lo,se for crível.
Como os humanos se tornaram capazes de destruir a biocapacidade dos ecossistemas dos quais dependem, para Dupuy só há esperança de que não encurtem o processo de extinção de sua espécie se a inevitabilidade da catástrofe for conscientemente assumida pelos políticos. Em direção oposta, Giddens tenta fazer crer que os políticos agiriam de forma mais efetiva em favor da mitigação do aquecimento global se colocados diante das impossíveis avaliações de risco expressas em simples porcentagens.
Ele não está sozinho em supor que os graves problemas socioambientais deste século poderiam ser analisados no âmbito disciplinar, sem necessidade de abordar questões prévias e bem mais abstratas sobre o modo com que a humanidade lida com o restante da natureza. Exemplo disso é a afirmação de Jeffrey D. Sachs na revista "Scientific American Brasil": "O controle climático não é um jogo moral, mas um desafio tecnológico prático e solucionável".
É comum que sociólogos e economistas nem sequer percebam que nenhuma de suas opções metodológicas está profundamente enraizada numa das grandes famílias da filosofia moral, como mostra Dale Jamieson em "Ética e Meio Ambiente - Uma Intro-dução" [trad. André Luiz Alvarenga, ed. Senac SP, 336 págs., R$ 50], livro que disseca os discursos dos pensadores que mais influenciaram o socioambientalismo contemporâneo.
Para orientar comportamentos individuais e coletivos diante das graves questões socioambientais contemporâneas, Jamieson não propõe que se escolha alguma opção de filosofia moral, uma das inúmeras religiões, ou mesmo espiritualidade a la Leonardo Boff. Nem chega a dizer que os avanços científicos no âmbito ecológico apontam para a necessidade de uma ruptura com os limites de todas as atuais correntes éticas. Manifesta, porém, clara preferência por certo ecletismo, que prefere chamar de "pluralismo". Algo que junte os pontos mais fortes de cada corrente para apontar as ações que respondam ao principal desafio do século 21: o desenvolvimento sustentável.
E o melhor exemplo está, outra vez, na mudança climática. O debate filosófico travado em revistas como "Environmental Values" e "Environmental Ethics" gerou amplo consenso sobre os três critérios que devem orientar toda proposta de ação.
O primeiro: não há como apagar as "responsabilidades históricas" nesse fenômeno eminentemente cumulativo que é a concentração, na atmosfera, de gases que provocam o efeito estufa. Por mais que seja difícil pôr esta diretriz em prática, seria inadmissível exigir de populações que muitas vezes ainda nem tiveram acesso à eletricidade o mesmo esforço de contenção de emissões.
Coisa semelhante ocorre como o segundo critério, que se refere às atuais diferenças de "capacidade" de que países e grupos sociais dispõem para obter mais eficiência energética, reduzir seu consumo, sequestrar carbono ou evitar emissões. E o terceiro critério é relativo ao futuro, inteiramente embutido na noção de sustentabilidade. O que está em jogo aqui são as tão faladas, mas quase sempre desdenhadas, gerações futuras.
O problema seria bem mais simples se esses três critérios convergissem em vez de conflitar. Todavia, o que se constata é o contrário. Particularmente no da sustentabilidade. A depender do grau de concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, e da decorrente inevitabilidade de elevação da temperatura média do globo, os outros dois critérios deixarão de ter tanta pertinência.
Diante de cenário catastrófico, poderá se tornar imoral enfatizar as diferenças pretéritas entre as nações, ou mesmo admitir que as emissões sejam reduzidas somente pelos que já têm capacidade de fazê-lo.

Não houve mudança significativa no entendimento dos determinantes do progresso, da prosperidade ou do desenvolvimento. Continuam a ser vistos como resultado direto do desempenho econômico

Hoje, a palavra sustentabilidade passou a ter amplíssimo uso para exprimir ambições de continuidade, durabilidade ou perenidade, todas remetendo ao futuro da espécie humana


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