São Paulo, domingo, 06 de fevereiro de 2011

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LITERATURA

O cão cego

Notas num diário, parte 2

RESUMO
No segundo de seis trechos exclusivos de seu diário (leia o primeiro em folha.com/ilustrissima), Ricardo Piglia faz anotações de sonhos e recordações íntimas; rememora encontros com conhecidos de Princeton; confessa a paixão pelo jazz; esboça ficções e discute as ideologias na literatura e o valor estético das séries de TV.

RICARDO PIGLIA
tradução PAULO WERNECK

SEGUNDA
Não faz sentido continuar, disse minha mãe. Nenhuma resignação. Não faz sentido continuar. Como se ela pudesse decidir o momento. A casa dos avós tinha o nome dela, e o nome dela foi o primeiro que aprendi a ler. "Ida, está vendo?", dizia ela, e indicava as letras no portal. Usava um vestido azul. Sua imagem na lembrança é mais nítida do que a luz desta luminária. Estava sempre alegre. No final, delírios leves, divagava. Perguntou: "O que é que você está dizendo?", e sorriu, antes de morrer. Eu não estava lá. Ah, mãe...

QUARTA
Preciso ligar para a minha mãe, penso de repente. Pensamentos soltos, pesadelos. (Sonho que sou um cachorro cego. Pequenos movimentos de terror, o focinho no ar.)

DOMINGO
O Gato Barbieri tocou à noite no Blue Note. Muita gente, tudo muito íntimo. Não o escutava desde 77, quando o vi num show em San Diego, em que ele apresentou "Ruby Ruby". Quero fazer com alguns amigos um documentário sobre o jazz em Buenos Aires. O Gato nas origens do free jazz; em meados dos anos 60 gravou "Symphony for Improvisers", pura improvisação, quase sem standards. O Steve Lacy ficou duro, sem grana, em Buenos Aires, em 1965 ou 66, e tocou no Jamaica, onde também tocavam Salgán e De Lio. Lembro que fomos ouvi-lo com o Néstor Sánchez, que naquela época queria levar a improvisação para a prosa: "Siberia Blues". Curiosamente, na literatura o jazz sempre esteve ligado ao estilo oral (Kerouac, Boris Vian, Cortázar etc.).

TERÇA
Ela tem a faculdade de fazer amizades, como quem diz que faz uma obra. Cada uma de suas amigas, definida por uma qualidade específica, tem um leve toque diferencial. A moça húngara que coordena cursos da ONU para parar de fumar, voltados a funcionários públicos de países em desenvolvimento; a jovem brasileira que se dedica a descobrir inesperadas galerias de arte no Bowery para colecionadores que pagam pelo tour; a mulher de meia-idade, ex-tenista profissional, que só se deita com negros.
A amizade entre mulheres tem a forma de uma sociedade fechada onde não há segredos. Claro que não há segredos, me diz ela, nem segredos, nem vida privada. É preciso viver na terceira pessoa. Olha pela janela, divertida. Aqui abundam os esquilos porque não há cachorros soltos, diz ela. Seria preciso importar cães de rua etc.

SEXTA
Longa conversa no bar do Lahiere's, com James Irby, lendário tradutor de Borges para o inglês, extraordinário professor de poesia em Princeton. Discutimos poemas de Lezama Lima, como "Ode a Julián del Casal", sobre o qual Jim escreveu um longo ensaio que ainda considera incompleto.
Você precisa fazer um livro sobre esse poema, digo a ele. Existe algum livro dedicado a apenas um poema? Lembramos o ensaio de Butor sobre um sonho de Baudelaire. Os versos são como o resto diurno do sonho, um tecido de imagens esfarrapadas, lembranças e palavras perdidas.
Calasso publicou agora um livro sobre o mesmo sonho de Baudelaire, disse Jim, mas sem citar Butor. A chave do trabalho de Jim é a análise de poemas escritos em língua estrangeira. A leitura é sempre incerta e indicial, as palavras parecem pedras num muro: o sentido depende do peso, do volume, da posição. Chamamos a esse modo de ler crítica concreta.
Na mesma direção, ele me faz notar que o final de "Alvo Noturno"1 alude à anáfora do poema "Metempsicosis", de Rubén Darío, que li muitas vezes, mas no qual não pensei enquanto escrevia o romance. Jim o recita, irônico, marcando a leve escansão dos endecassílados e o corte da estrofe: "Yo fui un soldado que durmió en el lecho/de Cleopatra la reina. Su blancura/ y su mirada astral y omnipotente./ Eso fue todo//Y crujió su espinazo por mi brazo;/y yo, liberto, hice olvidar a Antonio./(ˇOh el lecho y la mirada y la blancura!)/Eso fue todo."2 E, depois de uma pausa, pondo agora a ênfase no ritmo metálico do verso, disse a última estrofe: "Yo fui llevado a Egipto. La cadena/ tuve al pescuezo. Fui comido un día/ por los perros./ Mi nombre, Rufo Galo./ Eso fue todo."3 Esqueci duas ou três estrofes, disse ele quando ganhamos a rua. Às vezes a gente esquece para melhorar os poemas, digo a ele. Não foi o caso, sorri Jim. Lá fora já é noite. Você sabe que vêm fechar este bar, né, me diz ele, penalizado.
Enquanto tomava notas da conversa de há pouco com Irby, lembrei que a metempsicose -a palavra que Molly não entende no começo do meu romance- está na origem do "Ulysses" de Joyce. Bloom é a reencarnação do herói grego. Essa concepção define a trama.
Auden tem razão ao assinalar que os artistas mudam de visão de mundo para renovar sua poética. Explicava assim sua adesão ao marxismo, e também a paixão tardia de Yeats pelo espiritismo, ou a conversão ao catolicismo de Eliot, ou o populismo de Tolstói.
O escritor não inventa a ideologia, encontra-a pronta e a utiliza como material de trabalho. Antes de criticar os pensamentos de um escritor, é preciso analisar a função técnica que eles têm. As dúvidas de Hamlet servem para retardar a ação.

SEGUNDA
Foi ao vernissage de uma exposição de León Ferrari no Filo e, quando estava de saída, encontrou Miguel, amigo da vida inteira, e com ele ficou. Começaram a beber em diferentes bares e, primeiro Julia, depois a menina que estava com Miguel, os deixaram sós. Os dois eram -ou foram- bons escritores, mas pararam de publicar, e as lembranças da juventude ajudavam a seguir adiante.
Mal-entendidos, piadas sangrentas, referências equívocas. Conversas errantes, difíceis de transmitir: torcidas pela dupla temporalidade da ironia, por sua captação diferida. Acabaram ao amanhecer num dos únicos bares abertos, atrás do cemitério da Recoleta, e despediram-se como se nunca mais fossem se encontrar.
Emilio voltou a seu apartamento, Julia não estava lá, tinha ficado farta daquelas histórias de bêbados. Sentia-se enjoado, insone; buscou uma garrafa de água na geladeira; depois desceu para comprar cigarros e, quando atravessava a rua Ayacucho na direção da avenida Santa Fe, viu a igreja.
Fazia quantos anos que não entrava numa igreja? A quietude, as mulheres sentadas nos bancos de madeira, a pia de água benta, um sacerdote atrás das cortininhas do claustro, palavras em latim, murmúrios. Então vai até o confessionário, ajoelha-se.
O conto termina aí? Ou inclui o que diz ao se confessar?

SEXTA
David Simon, o criador da série "The Wire", é um grande narrador social. Incorpora à trama policial os fatos do presente (o ajuste econômico de Bush, a manipulação das campanhas políticas, a legalização das drogas). No piloto de "Treme", sua nova série de TV que vi uma noite dessas, o marco é New Orleans depois do Katrina: os desastres nunca são naturais, essa é a poética de Simon.
A narração social se deslocou do romance para o cinema e depois do cinema para as séries, e agora está passando das séries para os facebooks e twitters e demais redes da internet. O que envelhece e perde a vigência fica solto e mais livre: quando o público do romance do século 19 se deslocou para o cinema, foram possíveis as obras de Joyce, de Musil e de Proust.
Quando o cinema é relegado como meio de massa pela TV, os cineastas dos "Cahiers du Cinéma" resgatam os velhos artesãos de Hollywood como grandes artistas; agora que a TV começa a ser substituída massivamente pela web, valorizam-se as séries como forma de arte.
Em breve, como o avanço tecnológico, os blogs e os velhíssimos e-mails e as mensagens de texto serão exibidos nos museus. Que lógica é esta? Só se torna artístico -só se politiza- o que caduca e está "atrasado".

TERÇA
Na esquina de Witherspoon e Paul Robeson, um homem de jeans e camisa de flanela xadrez levanta um cartaz de apoio ao candidato republicano nas eleições legislativas. Acrescentou uma bandeira americana, sinal de que pertence à direita nacionalista. Faz propaganda aproveitando o longo sinal vermelho. Eu nunca tinha visto um ato proselitista de um homem só. Aqui tudo se individualiza.
Assim também funcionam os atentados políticos. Lee Harvey Oswald; o assassino de Martin Luther King; o que disparou contra a congressista americana no Arizona. Não passam de atos de um indivíduo perturbado, "singular".
Essa personalização extrema é a "aparência puramente estética" do mundo social, como dizia Marx, falando de Robinson Crusoé. Não se veem as lutas sociais, mas sua ausência se expressa alegoricamente: um empregado dos correios, em Ohio, dispensado de seu emprego, sobe numa torre e mata os que passam na rua. Outro exemplo é a decisão da Suprema Corte dos EUA que aprovou (caso Citizens United) a lei que obriga a considerar cidadãos individuais as poderosas corporações econômicas.
A utopia do capitalismo norte-americano é que os grupos de poder e as forças sociais sejam considerados pessoas isoladas. Todos os indivíduos seriam iguais, cada um deles um Robinson que lê a Bíblia em sua ilha deserta.

Notas do tradutor
1. "Alvo Noturno", de Ricardo Piglia, será publicado em maio pela Companhia das Letras.
2. Tradução literal: "Fui um soldado que dormiu no leito/de Cleópatra, a rainha. Sua brancura/ e seu olhar astral e onipotente./ Isso foi tudo//E roçou sua espinha no meu braço;/ e eu, liberto, fiz esquecer Antonio./ (Oh, o leito do olhar e da brancura!)/ Isso foi tudo."
3. Tradução literal: "Fui levado ao Egito. A corrente/ tive no pescoço. Fui comido um dia/ pelos cães./ Meu nome, Rufo Galo./ Isso foi tudo."




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