São Paulo, domingo, 06 de fevereiro de 2011

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IMAGINAÇÃO

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Durante a imensidão

Do amanhecer até depois do cair do sol

BEATRIZ BRACHER

Por medo do leão, antes de partir para o estrangeiro, o condutor de caravana deixou seus bens aos filhos.
Na cidadela encontrou um jovem sentado no chão, as pernas esticadas e os olhos fechados virados para o sol. O porteiro da oficina disse que a vida do fabricante de esteiras, seu primo, era mais miserável que a de uma mulher, o dia inteiro com o joelho no estômago, sem ar para respirar. "Se ele perde um dia sem tecer, recebe cinquenta golpes de chicote. Para que possa sair à luz do sol, precisa me dar um copo de vinho." O porteiro bebeu o vinho até o final, lavou o copo e cutucou o jovem com o pé. Ele levantou-se sem conseguir esticar a coluna e voltou à oficina de esteiras.
No entardecer, a caravana chegou ao deserto. Os homens montaram o acampamento, esticaram os tapetes e sentaram-se em volta do fogo. Ele entrou na tenda, ouviu o murmúrio da conversa. O crepitar das achas cessou, o mundo era só o vento fraco sobre grãos de areia. Um pássaro assobiou notas curtas. De manhã ele contou ao velho escriba o sonho da noite: "Eu vi a mim mesmo olhando a minha cama que pegava fogo". O velho falou: "Isso é mau. Significa a esposa se afastando".
A caravana passou por três nobres montados a cavalo, acompanhados por um arqueiro magro, um cozinheiro gordo e quatro mulas. Os nobres responderam ao cumprimento do chefe da caravana com um gesto lento de cabeça e seguiram em frente. O arqueiro ia atrás com uma vassoura de galhos limpando as pegadas dos cavalos, mulas e homens, e enterrando as fezes dos animais. O barulho dos galhos na areia sumiu.
Nessa noite, o velho e o condutor dormiram juntos e ouviram o canto de notas curtas. O escriba disse: "O dia será ruim. No pôr do sol serei morto por uma serpente". Quando o sol surgiu, o acampamento já estava desmontado. Quando o sol se pôs, a caravana seguia em direção ao poente. A serpente deu o bote antes que o escriba tirasse os arreios de seu animal. O condutor cortou a perna envenenada do velho fora. Os homens armaram as tendas longe do homem mutilado e da areia manchada de sangue.
O condutor amparou o escriba até debaixo da tamareira. Trouxe a perna e deixou atrás de si o rastro de três pés e a areia vermelha. O escriba mandou que o condutor colocasse sua perna na beira do rio. A água ficou rosa e novamente limpa. Caranguejos mordiscaram, um grupo de íbis chegou perto, uma ave de cada vez bicou a perna e se afastou. Apenas uma ficou até depois de a noite chegar.
O sol nasceu e iluminou a tíbia limpa de carne. A íbis se aproximou do escriba e começou a bicar o toco de onde a perna fora arrancada. O condutor espantou a ave, ela saltitou para longe e voltou devagar. O escriba mandou o homem se afastar e vigiar para que ninguém se aproximasse. "Esse é o dia que os deuses recebem meu coração."
O barulho do bico da ave na carne e nos ossos do velho durou o dia e a noite. O sol da manhã iluminou seu esqueleto branco. A íbis voou alto no céu, o condutor cavou com as mãos embaixo da tamareira e enterrou os ossos limpos. Fez um colar com os quatro dentes do escriba, pegou a tíbia da perna arrancada e colocou-a em sua saca, junto com um cacho de tâmaras maduras.
Iniciou a viagem de volta para casa. A íbis pousou a seu lado e os dois seguiram juntos a caminhada.


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