São Paulo, domingo, 06 de junho de 2010

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Crítica

O romance na encruzilhada

Dickens, lírico e avassalador

RESUMO Nova tradução e estudo crítico renovam o interesse em torno de Charles Dickens (1812-70), que construiu sua obra na encruzilhada da representação histórica e da fabulação literária. Para além da literatura juvenil e de entretenimento, a releitura de sua obra mostra um romancista vivo e complexo.

MARCOS FLAMÍNIO PERES

"AQUELE FOI O MELHOR DOS TEMPOS, foi o pior dos tempos, foi a idade da razão, a idade da insensatez, a época da crença, a época da incredulidade, a estação da Luz, a estação das Trevas, [...] tínhamos tudo diante de nós, não tínhamos nada diante de nós" -poucos romances têm um início tão lírico e avassalador quanto "Um Conto de Duas Cidades", de 1859 [ed. Estação Liberdade, trad. Débora Landsberg, 480 págs., R$ 62], de Charles Dickens, passado pouco antes e durante a Revolução Francesa, e que ganha nova tradução brasileira.
Mas como um escritor tão experimentado -que dez anos antes já havia publicado "David Copperfield", sua obra-prima- pode iniciar um romance histórico sobre o acontecimento central para a Europa moderna com um juízo de valor tão evidente, beirando a fábula? Por que mergulha o tempo da história numa consideração de ordem geral, aplicável a quase tudo, como se quisesse transformá-lo em tempo a-histórico?
Os modelos de que Dickens dispunha à época buscavam se apegar à descrição dos fatos reais, de imediato localizando o enredo em tempo e espaço muito precisos. É o caso de Balzac em "Os Chouans" (1829) -"no início do ano 8º, no começo do Vindimiário ou, para ajustar ao nosso calendário, perto do final de setembro de 1799"- e de Mérimée na "Crônica do Reino de Carlos 9º" (1829) -"não longe de Étampes, indo em direção a Paris, vê-se um grande edifício quadrado, com janelas em ogiva ornadas com algumas esculturas grosseiras".
Ou mesmo de Madame de La Fayette, cujo "A Princesa de Montpensier" (1662) é considerado por Richard Maxwell o marco zero do gênero -"enquanto a guerra civil despedaçava a França sob o reino de Carlos 9º". Era imenso o esforço dos romancistas históricos para legitimar o gênero, situado na imbricação entre dois modos aparentemente antagônicos de apreensão do real.
Para os historiadores, tratava-se de fantasia; já para a maior parte dos escritores, o esforço de adesão aos fatos minava a capacidade fabulatória inerente à literatura.
Em "Represálias Selvagens - Realidade e Ficção na Literatura de Charles Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Mann" [Companhia das Letras, trad. Rosaura Eichenberg, 192 págs., R$ 39], estudo que está saindo no Brasil, Peter Gay definiu bem a encruzilhada epistemológica em que se encontravam esses escritores.
Para o historiador americano, eles travavam uma luta inclemente com a fidelidade a "fatos biográficos indiscutíveis e com os voos de sua imaginação literária".
Dickens também levava muito a sério o compromisso com os fatos. Sabe-se, por exemplo, que viajou à França para conhecer de perto os lugares onde se passaram os acontecimentos de 1789. Além disso, sua atuação destacada como jornalista, à frente do "Daily News" e de outras revistas que criou, contaminou o tom de suas obras, como "Oliver Twist" (1838) e "Tempos Difíceis" (1853), em sua crítica aguda da burocracia e das instituições inglesas.
Contudo não é o apego ao real o que faz de "Um Conto de Duas Cidades" seu romance mais lido até hoje; ao contrário, talvez seja o modo inovador como submerge o fato na fabulação, para daí tirar conclusões de cunho moral -e de efeito certeiro sobre seus leitores- a respeito de seu próprio tempo.
Sem a inspiração em Dickens, autor de dramas sociais capazes de enternecer corações de pedra, dificilmente os filmes da "Sessão da Tarde" teriam se infiltrado tanto no imaginário de gerações de adolescentes.
Ao lado de Walter Scott -que pinta o momento de formação de sua Escócia natal em livros como "Ivanhoé" (1819)- e de Alexandre Dumas -mobilizando seus espadachins em defesa da rainha de França em "Os Três Mosqueteiros" (1844)-, Dickens compõe a santíssima trindade do ócio juvenil.
Mas, sob o ponto de vista das influências literárias, esses autores, sucesso absoluto de público em seu tempo, também compõem uma inesperada triangulação. Scott, o pioneiro, norteou toda a literatura europeia continental do período, além de EUA e Brasil. Apenas a Inglaterra, em parte devido ao histórico de confronto entre os dois países, se mostrou refratária à influência direta do autor escocês.
Desse modo, Scott penetraria em obras como "Um Conto de Duas Cidades" mediado pelas narrativas folhetinescas de Dumas. O próprio Dickens teve papel pioneiro no uso da serialização, publicando suas histórias capítulo a capítulo em jornais e revistas.
Contudo, de Scott a Dickens toma corpo gradativamente a ênfase na expressão dos sentimentos, palpável na construção de personagens e situações. Pois, assim como em boa parte de seus 14 romances e inúmeros contos e novelas, o autor de "Um Conto de Duas Cidades" bebeu em fontes populares, como os melodramas apresentados nos palcos londrinos.
Derivam daí cenas como a "procissão onírica e selvagem" (traduzida com menos força, na nova edição, por "louca e etérea procissão") ou a festa tribal dos revolucionários ao longo das ruas da capital, "dançando como 5 mil demônios".
Em registro mais contido, descreve o opressivo "baile de máscaras" da vida em meio aos nobres franceses. Ele próprio um ator consumado, Dickens costumava interpretar diante de um espelho os personagens que, posteriormente, iria desenvolver no papel.
Possuía um domínio sem igual das caracterizações, de que é exemplo a temível Madame Defarge: de tão poderosa que é, por vezes parece desequilibrar todo o conjunto da narrativa.
Moldada em Lady Macbeth, de Shakespeare, ela é "uma mulher assustadoramente formidável!". Como uma Parca mitológica, passa o dia tricotando, literalmente, o nome daqueles que devem morrer sob o peso da revolução prestes a eclodir.
Já Lucie Manette é sua antítese: a doce personagem deseja apenas manter-se reclusa em seu ninho familiar, numa pacata esquina do Soho -e não na rua desagregadora.
Passa seu tempo não a tecer a morte, mas "o fio de ouro" com que busca desesperadamente amarrar "a vida serena do seu lar". Assim como um melodrama, o romance avança o tempo todo por oposições: Londres/Paris, ilha/continente, estabilidade/desordem, classe média/aristocracia, pudor vitoriano/despudor revolucionário, economia industrial/economia rural. É nítido o favorecimento aos valores individualistas e vitorianos do liberalismo inglês.
Mas, pairando sobre todas essas oposições de corte realista, existe uma dialética entre "mundo luminoso" e "mundo oculto", que se alimentam de forma incessante. A representação da totalidade do mundo real, que Dickens aprendeu com Scott, nele se encontra sempre transfigurada no grotesco do "mundo oculto", de extração gótica e popular.
A mesma dialética seria incorporada por autores com Tolstói, Dostoiévski ou, para ficar no Reino Unido, pelo Lewis Carroll de "Alice no País das Maravilhas".
Esse é o grande nó para entender a originalidade e a persistência de sua obra até hoje. Primeiro grande "romancista social", tido ainda em vida como o "porta-voz dos excluídos", Dickens, ao mesmo tempo, manteve os dois pés na narrativa oral, na alegoria e no conto de fadas. Resgatou para o romance de cunho realista do século 19 o mundo sombrio e potencialmente psicanalisável da narrativa gótica inglesa da segunda metade do século 18.
Em oposição à crença estrita no realismo como "uma revelação da natureza" -e não como "uma retórica e uma ideologia"-, Dickens restabelece o romanesco como "princípio essencial da ficção". Ele mesmo sempre esteve muito consciente de sua posição e considerava sua obra o ápice cronológico do gênero, como demonstrou o crítico Ian Duncan.
A dialética entre o real e o romanesco (numa tentativa de aproximação da oposição, em inglês, entre "novel" e "romance") representa o grande triunfo de Dickens, aquilo que o fez ser redescoberto nas últimas décadas.
Assim como no caso do próprio gótico, sua reavaliação acadêmica foi fruto de trabalho de "scholars" americanos, como Edgar Johnson, Edmund Wilson e Steve Marcus.
Mas foi na Inglaterra, por meio do livro de F.R Leavis e Q.D. Leavis -"Dickens, the Novelist" [Dickens, o Romancista] (1970)- que se cristalizou sua nova e prestigiosa imagem de agudo crítico social e desbravador do mundo "oculto". Hoje, Dickens é o "Shakespeare do romance" -e a "Sessão da Tarde" prova escrever certo por linhas tortas.


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